sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Medo da intervenção:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

A política no Distrito Federal está sendo feita à sombra das decisões, atuais e futuras, do Supremo Tribunal Federal, desde a imprevisível permanência na prisão do governador José Roberto Arruda até a abertura de processo de impeachment contra ele e seu vice, Paulo Octávio.

A Câmara Distrital, com a maioria de seus membros atolada até o pescoço nas falcatruas, desistiu de arrostar a sociedade e abandonou o governador preso e seu vice em exercício, que, por sua vez, desistiu surpreendentemente de renunciar ao cargo. Todos agindo com um único objetivo: tentar evitar a decretação de uma intervenção federal em Brasília pelo Supremo.

A intervenção, no entanto, parece a cada dia mais inevitável, diante da constatação de que a classe política do Distrito Federal está completamente contaminada pelo mesmo grupo político que domina a capital mesmo antes de a Constituinte de 1988 estabelecer o voto direto para a escolha do governador e criar a figura dos deputados distritais.

Essas constatações trazem de volta à discussão o papel do Poder Judiciário nas modernas democracias. O “ativismo judicial” deve ser diferenciado da “judicialização da política”, fenômeno que indica a expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas, expressão originalmente utilizada por Carl Schmitt, na sua crítica ao controle de constitucionalidade de feição política.

Para o constitucionalista Luiz Roberto Barroso, a “judicialização” seria uma consequência do modelo constitucional brasileiro, com uma Constituição muito abrangente.

Já o ativismo estaria caracterizado quando o Supremo toma uma decisão política sobre situações que não foram expressamente previstas, nem na Constituição nem na lei.

Diretor do Instituto de Direito Europeu e Cultura Jurídica de Bayreuth e do Centro de Pesquisa de Direito Constitucional Europeu, o constitucionalista alemão Peter Häberle, considerado um dos principais formuladores do moderno constitucionalismo mundial, em entrevista publicada no site Consultor Jurídico, mostrase “contente” com o ativismo judicial praticado pelos tribunais constitucionais que “obrigam os demais Poderes a atuar.” Para Häberle, a atuação do Judiciário não deve ser permanente, “mas é necessária quando os Poderes Legislativo e Executivo estão ocupados demais na briga pelo poder para cuidar de suas obrigações para com o povo que elegeu seus representantes”.

Na sua concepção, “sistemas presidencialistas em países jovens requerem o contrapeso de fortes tribunais constitucionais”.

O professor alemão é defensor da popularização da Constituição, e dá como exemplo a Corte Suprema alemã: “O Tribunal Constitucional Federal alemão procede de maneira pragmática e desde há muito tempo outorga a palavra a grupos pluralistas, como sindicatos, organizações empresariais, a Igreja e outras comunidades religiosas em alguns processos judiciais importantes, em audiências públicas”, diz ele, elogiando a adoção no Brasil da mesma sistemática.

O constitucionalista Luiz Roberto Barroso, como pesquisador visitante na Harvard Kennedy School, a escola de política e governo da Universidade Harvard, publicou recentemente um estudo sobre a judicialização da política e os riscos da hegemonia judicial, com o título genérico de “Direito e política no Brasil contemporâneo”.

Ele adverte que a ascensão institucional do Poder Judiciário, um fenômeno marcante das modernas democracias, não pode transformar juízes e tribunais “em uma instância hegemônica, comprometendo a legitimidade democrática de sua atuação, exorbitando de suas capacidades institucionais e limitando impropriamente o debate público”.

A jurisdição constitucional, para Barroso, “não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social e os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes”.

Ele adverte que a pretensão de autonomia absoluta do Direito em relação à política “é impossível de se realizar”, pois as soluções para os problemas “nem sempre são encontradas prontas no ordenamento jurídico, precisando ser construídas argumentativamente por juízes e tribunais”.

Nesses casos, ressalta, a experiência demonstra que “os valores pessoais e a ideologia do intérprete desempenham, tenha ele consciência ou não, papel decisivo nas conclusões a que chega”.

A conclusão do constitucionalista Luiz Roberto Barroso é a de que o Direito “pode e deve ter uma vigorosa pretensão de autonomia em relação à política”, o que é essencial para a “subsistência do conceito de Estado de direito e para a confiança da sociedade nas instituições judiciais”.

Mas essa autonomia será sempre relativa, caracterizando “uma relação complexa, na qual não pode haver hegemonia nem de um nem de outro”.

Para Barroso, “a razão pública, de um lado, e a vontade popular, de outro — o Direito e a Política —, são os dois polos do eixo em torno do qual o constitucionalismo democrático exerce seu movimento de rotação. Dependendo do ponto de observação de cada um, às vezes será noite, às vezes será dia”.

A atual crise política na representação do Distrito Federal está demonstrando que a ação do Poder Judiciário provoca efeitos imediatos, pelo menos pela exemplaridade.

A permanência na prisão do governador José Roberto Arruda, por tentativa de obstrução das investigações, serviu para enquadrar toda a sua base aliada, que teimava em obstruir as investigações na Câmara Distrital.

Mesmo que o plenário do Supremo venha a liberá-lo da prisão, é praticamente certo que ele não reassumirá o governo.

A precariedade do atual governo, com Paulo Octávio dando demonstrações de fragilidade política e emocional, e os presidente e vice da Câmara Distrital sem condições mínimas para assumirem o governo, deixa nas mãos do Supremo a solução para esse impasse político.

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