sábado, 20 de fevereiro de 2010

Tocqueville em tempos de populismo:: Ricardo Vélez Rodríguez

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Editora Martins Fontes publicou, no final do ano passado, O Antigo Regime e a Revolução (tradução de Rosemary C. Abílio, São Paulo: Martins Fontes, 2009, 286 páginas), de Alexis de Tocqueville (1805-1859), livro que viu a luz, pela primeira vez, em 1856.

Precedentemente, com a publicação de A Democracia na América, em 1835, Tocqueville havia logrado notável sucesso na recuperação do ideal democrático. A democracia fora associada à anarquia (e à correlata instabilidade política) instaurada pela Revolução Francesa. O livro viera comprovar que esta não se vinculava à instauração do governo representativo, mas às elucubrações de Jean-Jacques Rousseau, num modelo conhecido como democratismo. Essa distinção ficaria muito nítida depois da Revolução de 1848, na França, na medida em que já se dispunha de termo de comparação. A Revolução de 1830 introduzira, em caráter pioneiro no país, instituições liberais. Entre outras coisas, o confronto iria evidenciar que o democratismo continuava atuante, preservada a sua capacidade demolidora.

Tocqueville parte do registro de que, em 1789, os franceses se propuseram a cortar em dois o seu destino. Imaginavam poder separar por um abismo o que haviam sido até então do que queriam ser dali em diante. Pessoalmente, acreditava que haviam tido menos sucesso do que imaginavam. A fim de testar essa hipótese, era mister "interrogar em seu túmulo uma França que não existe mais" e tentar reconstituir, com base na documentação preservada, os traços essenciais do Antigo Regime. Descreve as dificuldades encontradas nessa investigação e resume os principais resultados. "O que é válido dizer", escreve, "é que destruiu inteiramente ou está destruindo (pois perdura) tudo o que, na antiga sociedade, decorria das instituições aristocráticas e feudais, tudo o que de algum modo se ligava a elas, tudo o que trazia delas, em qualquer grau que fosse, a menor marca. Conservou do antigo mundo apenas o que fora alheio a essas instituições ou podia existir sem elas. (...) A Revolução (...) pegou o mundo de surpresa, é bem verdade, e, entretanto era apenas o complemento do mais longo trabalho, o encerramento súbito e violento de uma obra na qual dez gerações de homens haviam trabalhado. Se não tivesse acontecido, o velho edifício social não teria deixado de cair em todo lugar, aqui mais cedo, ali mais tarde; apenas teria continuado a cair parte por parte em vez de desmoronar de uma só vez. A Revolução concluiu bruscamente, por um impulso convulsivo e doloroso, sem transição, sem precaução, sem complacência, o que teria se encerrado pouco a pouco, por si mesmo ao longo do tempo. Essa foi a sua obra" (ed. cit., páginas 24-25).

Basicamente, O Antigo Regime e a Revolução viria comprovar que o centralismo cartorial constituiu traço marcante da política no século 18 e nas décadas que se seguiram à Revolução Francesa. Ao contrário do que se alardeava, a Revolução não se fizera para debilitar o poder político. O registro da tradição acha-se expresso com as seguintes palavras: "Um estrangeiro, a quem fossem entregues hoje todas as correspondências confidenciais, que enchem os arquivos do Ministério do Interior e das administrações departamentais, logo ficaria sabendo mais sobre nós do que nós mesmos. Como se verá ao ler este livro, no século XVIII, a administração pública já era muito centralizada, muito poderosa, prodigiosamente ativa. Estava incessantemente auxiliando, impedindo, permitindo. Tinha muito a prometer, muito a dar. Já influía de mil maneiras, não apenas na condução geral dos assuntos públicos, mas também na sorte das famílias e na vida privada de cada homem. Ademais, era sem publicidade, o que os levava a não terem receio de expor a seus olhos até as fraquezas mais secretas" (ed. cit.; Prefácio, página XLIII).

Tocqueville chamava a atenção para o efeito político que esse centralismo causava na sociedade francesa: o despotismo. O centralismo tirava da sociedade a sua iniciativa e a transformava em eterno menor de idade perante o Estado todo-poderoso. O grande mal causado à França pelo centralismo era antigo. A substituição paulatina do velho direito consuetudinário germânico pelo direito romano situava-se nas origens de todos os males, e era como que a fonte jurídica legitimadora do processo centralizador, que se alastrou depois por todos os aspectos da vida social. O despotismo é, na sua essência, centralizador.

Atrelada assim à diretriz norteadora do Estado moderno (substituir a descentralização feudal pelo centralismo monárquico), graças à influência dos "philosophes", Rousseau à frente, a Revolução Francesa abriu uma senda distanciada do que efetivamente de novo trouxera a Revolução Gloriosa inglesa: o governo representativo, que, progressivamente, iria incorporar o ideal democrático. Na preservação deste, no continente, seria igualmente decisiva a contribuição de Alexis de Tocqueville.

O processo revolucionário fez ruir um governo e um reino, mas sobre essas cinzas ergueu um Estado muito mais poderoso que o anterior. Algo semelhante ao que ocorre, atualmente, com os movimentos populistas latino-americanos, que alegam estar libertando os seus povos do neoliberalismo, dando ensejo a propostas cada vez mais estatizantes, fenômeno do qual não escapa o Brasil, levando em consideração os últimos pronunciamentos do presidente Lula e da sua candidata à sucessão, Dilma Rousseff, que apregoam claramente a volta do antigo estatismo como solução mágica para todos os nossos problemas.

Ricardo Vélez Rodríguez é coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

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