sábado, 13 de fevereiro de 2010

Villas Bôas-Corrêa::A reforma política começa por Brasília

DEU NO JORNAL DO BRASIL

Certamente não será para já que o tema inevitável da reforma política ocupe o espaço do bate-boca entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o presidente Lula, com a participação do restante do elenco, que inclui a ministra-candidata Dilma Rousseff. Basta um banho frio de chuveiro, alguns minutos de serenidade para acompanhar o raciocínio de simplicidade franciscana. Vamos recuar no tempo.

Como repórter político, acompanhei os debates no Congresso sobre a mudança da capital para Brasília, como determinava a Constituição. A bancada goiana pegou o pião na unha e foi alimentando o debate até ganhar a parada. O então deputado Emival Caiado, físico de campeão de boxe, foi um dos líderes. Mas a mudança da capital pagaria o alto tributo pela leviandade de nascença e em todo o enredo da novela. Não constava entre as metas do programa de campanha de Juscelino Kubitschek, o candidato mineiro de simpatia irradiante e que entrou na brecha da teimosia de Pereira Lira, paraibano chefe do gabinete do presidente Dutra e que vetou a candidatura do senador Nereu Ramos, do PSD, que teria o apoio de Getulio Vargas.

Em meio à campanha de JK, num comício em Goiás, um eleitor pediu a palavra e encostou o candidato na parede: uma vez eleito, cumpriria o dispositivo constitucional que determinava a mudança da capital para o cerrado? JK aderiu de estalo: “Não só construirei a nova capital como farei a mudança”. O resto é sabido. JK aprovou o projeto singelo de Lúcio Costa para o traçado em cruz da capital. E o gênio de Oscar Niemeyer, lúcido e em plena atividade na sinfonia de curvas que pousam no chão com a leveza de borboletas, transformou a futura capital num patrimônio da humanidade. JK raspou o erário da Viúva, contou com a competência e a honradez do senador Israel Pinheiro mas não concluiu a nova capital no prazo. Juscelino não hesitou: Brasília será inaugurada em 21 de abril de 1960, inaugurada antes de ficar pronta, um canteiro de obras no lamaçal do cerrado.

Poucos se dispunham a enfrentar a aventura de mudar com a família para a capital inacabada. O jeitinho brasileiro venceu resistências com a larga distribuição de vantagens na cascata das mordomias: passagens aéreas para a recordista muamba inédita de senador e deputado exercerem o mandato e passarem o fim de semana com a família, do Acre ao Rio Grande do Sul, semana de três dias úteis, gabinetes individuais com 30 assessores e todo um cacho de privilégios. A desmoralização do mais democrático dos poderes passou pelos vexamos da ditadura militar e o azar da morte do presidente Tancredo Neves antes de tomar posse.

A sucessão de escândalos, do mensalão, do caixa 2, das propinas, agora bateu os seus recordes com o flagrante da distribuição de pacotes de dinheiro pelo expelido governador de Brasília, José Roberto Arruda, à sua corriola. E nem assim os parlamentares do Congresso recordista da rejeição popular despertaram para a evidência de que a prioridade natural, urgente, inadiável da reforma política é o enquadramento de Brasília como a capital do país e, como tal, uma capital enxuta, sede dos três poderes e seus órgão auxiliares. Deformá-la pelas maroteiras como estado, com as quinquilharias de governador, com ministros e secretários, Assembleia Legislativa – como se não bastassem os escândalos do Congresso – Câmara Municipal com vorazes vereadores é um deboche com o país, um escárnio com a população que paga as contas.

Se os candidatos incluírem a recuperação de Brasília nas suas plataformas eleitorais, teremos dado o primeiro passo. A própria campanha, nos debates e no horário de propaganda eleitoral, abrirá as picadas no atoleiro. O passo seguinte seria a convocação de uma Assembleia Constituinte Extraordinária para enquadrar Brasília como a capital do Brasil e não uma das maravilhas do mundo cercada de favelas.

Não fazer nada é mais fácil. Mas continuaremos com o mesmo Congresso das mordomias, dos escândalos, das vantagens, da semana de três dias úteis, dos pacotes de notas nas cuecas e nas meias, o atalho para uma nova ditadura.

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