segunda-feira, 15 de março de 2010

Engrossando o coro:: Fábio Wanderley Reis

DEU NO VALOR ECONÔMICO


Não há como deixar de ecoar o clamor que se levantou contra as declarações do presidente Luís Inácio Lula da Silva a propósito dos presos políticos em Cuba e da morte de Orlando Zapata em greve de fome. Certamente não cabe aceitar a mistificação frequente em que a categoria " crime político " serve para nobilitar a violência criminosa de quem quer que tenha uma ideia na cabeça sobre as mudanças " revolucionárias " a trazer a um país. De minha parte, reitero a adesão à definição de crime político da professora Janaína Paschoal, da USP, de que aqui falei há algum tempo a propósito do caso Cesare Battisti ( " crime político deve ser entendido como ato de manifestação de pensamento, indevidamente criminalizado como intuito de perseguição " ), em que o crime surge, de fato, na atuação do regime autoritário ou antidemocrático que realiza a perseguição. Em vez disso, a posição de Lula (apesar de possivelmente causada pela mera incapacidade de situar-se sofisticadamente diante do dilema a que foi exposto com a infeliz visita a Cuba, antes que pelo esquerdismo que lhe andou sendo atribuído - o que não traz melhor lustre à coisa) elimina a distinção entre regimes democráticos ou antidemocráticos, em que os direitos liberais são garantidos ou atropelados, e iguala a condição dos submetidos à coerção estatal num caso e noutro.

O episódio nos põe diante do pior Lula, aquele que, na crise maior de seus dois mandatos, o turbilhão provocado pelas denúncias sobre o "mensalão " em 2005, vimos inseguro e emudecido ao longo de vários meses, incapaz de qualquer ato de liderança consistente e consequente. Esse Lula, ou essa face de Lula, é a razão de que me pareça impróprio,como tenho manifestado às vezes, contar com nosso presidente como o agente consciente de um processo de construção institucional eventualmente bem sucedido. Felizmente, isso não impede de reconhecer, contra o ânimo de alguns, o que vêm tendo de grandemente positivo para o país o acesso de Lula à Presidência da República e o fato de que ele se encaminhe para o fim de seu segundo mandato não apenas em condições de normalidade institucional, mas contando igualmente com grande apoio e popularidade - e, tudo somado, o fato inegável do bom governo realizado. Os benefícios produzidos se referem não só ao plano institucional, com o aspecto (banal, afortunadamente, visto na perspectiva de agora) do novo patamar que nossa democracia alcança após o " teste " lulista e o aprendizado que esse teste propicia; dá-se também que, à parte as disputas sobre a quem se deve a iniciativa decisiva quanto a este ou aquele programa, o experimento Lula-presidente terminou por transformar de vez nossa questão social em tema efetivo do jogo político-eleitoral e por impor atenção para a desigualdade e as políticas destinadas a enfrentá-la.

Naturalmente,a manifestação relativa a Cuba se enquadra na área de política externa,onde outra manifestação em termos inaceitáveis ocorreu meses atrás, a propósito das eleições no Irã, com a tola tradução em termos futebolísticos dos confrontos que as cercaram. Neste caso, porém,descontada a leitura em si das eleições, é importante ponderar que há muito a ser dito em favor da posição geral de ampliar tanto quanto possível a disposição de recorrer à negociação, posição que o Brasil tem sustentado e que tem sido avaliada internacionalmente de maneira favorável por analistas respeitáveis.

De toda maneira, ponderados com realismo, e especialmente com os olhos postos nas asperezas e dificuldades de nossa história política recente,os resultados de Lula são com certeza muito melhores que a encomenda.Alargada a perspectiva, e bem pesadas as coisas, não faria sentido pretender que, ao cabo de uma longuíssima história de desigualdade e exclusão e da operação de um sistema educacional vastamente deficiente,o migrante nordestino que chega a torneiro mecânico em São Paulo e acaba por realizar a proeza de esbarrar na Presidência da República fosse um primor de sofisticação intelectual. Demo-nos por contentes como fato de que o simbolismo e o carisma que o revestem e suas habilidades pessoais tenham podido representar ajuda importante em alguns avanços rápidos no processo político e social positivo do pós-1985, e reconheçamos que, afinal, os aspectos negativos do contexto longamente construído não podem deixar de condicionar mesmo o que haja de melhor nos avanços que se realizem. O paralelo mais óbvio e revelador a respeito é talvez o de Barack Obama nos Estados Unidos.Combinando o background racial justamente com especial sofisticação intelectual, as características pessoais de Obama são elas próprias claro indício de avanços de crucial importância na democratização da sociedade americana. Mas o lado feio do país, com o nacionalismo militarista e as projeções políticas do peculiar fundamentalismo religioso que o marca e da " guerra cultural " correlata, não deixa de produzir um presidente de discurso certamente nunca tosco, mas frequentemente de coerência precária e discutível fidelidade ao candidato brotado da democratização.

FábioWanderley Reis é cientista político e professor emérito da UniversidadeFederal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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