quinta-feira, 25 de março de 2010

EUA, Brasil e o guarda-chuva nuclear iraniano:: Nelson Ascher

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Governo Obama, na ótica do PT, abre vácuo de poder para que o partido coloque em prática sua verdadeira política externa, refratária à ordem internacional estabelecida

No último dia 16, Otavio Frias Filho publicou artigo criticando a política externa brasileira, sobretudo sua ativa reorientação no Oriente Médio e seu intrigante apoio ao programa nuclear do Irã. As ressalvas que fez são tão justas quanto oportunas, mas, argumentando que a intenção do Itamaraty seria só se opor aos EUA, ele resumiu de maneira não menos intrigante as razões que levariam estes a se envolverem naquele canto do mundo: "Os EUA estão atolados até o pescoço na região porque sua economia é dependente do petróleo local (...) e sua comunidade judaica exerce peso desproporcional nas eleições americanas".

Pouco menos da metade do petróleo consumido pelos EUA é extraída no próprio país. A Arábia Saudita, seu quarto maior fornecedor (após Canadá, México e Nigéria) responde, em conjunto com a Argélia, o Iraque e o Kuait, por cerca de 10% do total. Os países mais dependentes do petróleo são os exportadores, que nada mais têm a vender. Se a dependência que os EUA têm do petróleo médio-oriental é menor do que se supõe, então o peso "desproporcional" do voto judaico seria não só a causa praticamente única da guerra do Iraque e da intervenção no Afeganistão (parte do assim chamado Grande Oriente Médio), como viria também determinando há décadas a política americana na região.

Proporcionalidade aqui é um conceito difícil de entender e medir. Os judeus são 2% da população dos EUA, e o jornalista provavelmente se referia ao apego da maioria deles a Israel.

O que equivaleria, no entanto, a 2% da política externa de uma democracia cuja sociedade civil se organiza de acordo com critérios e grupos os mais diversos (econômicos, ideológicos, étnicos, regionais, profissionais e religiosos nem sempre exclusivos ou isolados uns dos outros e manifestando-se por meio de ONGs, lobbies legais, instituições variadas, dos meios de comunicação etc.)? Como traçar linhas diretas e singulares entre causas e efeitos?

A verdade é que, se há algo que, desde a era Roosevelt, determina o grosso do voto judaico, trata-se de sua fidelidade canina ao Partido Democrata, algo ilustrado pelos quase 80% desse voto obtidos por Barack Obama, o presidente americano mais hostil a Israel desde Jimmy Carter. O grupo mais favorável a Israel no país é o dos sionistas cristãos, em geral republicanos, bem mais numerosos e influentes do que os judeus. Ademais, quase dois terços dos americanos simpatizam com o Estado judeu independentemente de quem esteja na Casa Branca. Os EUA começaram a se envolver no Grande Oriente Médio na época da Primeira Guerra da Beberia (1801-1804), nunca mais deixaram de fazê-lo e se posicionaram amiúde contra os interesses israelenses.

Acontece que há no mundo 57 países islâmicos, dos quais 22 são árabes, e a descoberta em alguns destes de imensas jazidas petrolíferas, elevando-os a agentes indispensáveis do sistema internacional, levou-os a serem disputados por ambos os blocos rivais da Guerra Fria.

Sua relevância cresceu ainda mais no ano-chave de 1979, quando os soviéticos invadiram o Afeganistão, o xá do Irã foi deposto e, fato não muito conhecido, mas central, a grande mesquita de Meca foi tomada por fundamentalistas que pretendiam derrubar a monarquia saudita. Foi então que, além de petróleo e investimentos, o Oriente Médio passou também a exportar seus problemas.

Não obstante o alto grau de violência interna desses países e entre eles, o que os caracteriza é uma férrea estabilidade (visível num país como o Egito, que vive sob o mesmo regime fundado em 1956 por Nasser).

A região mantém-se espantosamente imutável exportando instabilidade sob a forma de migrantes (em especial norte africanos) e extremistas que, como os oriundos da Península Arábica ou do golfo Pérsico, são instigados a promover sua jihad "longe de casa" (por exemplo, a partir de 1979, no Afeganistão e, desde 2003, no Iraque).

Regime revolucionário que é, o Irã teocrático vem há muito difundindo sua ideologia no exterior. Como, corruptos e incompetentes, os aiatolás lhe arruinaram a economia, gerando uma instabilidade interna que os ameaça, eles buscam livrar-se dela exportando-a também, antes de mais nada, aos vizinhos, os quais precisam, portanto, de uma superpotência que os proteja. E é, na melhor das hipóteses, para impedir uma intervenção estrangeira não contra o país ou seu povo, mas, sim, contra seus detestados dirigentes, que o Irã deseja um "guarda-chuva nuclear".

Caso os teocratas não tenham metas apocalípticas, a bomba lhes permitirá perpetuar-se no poder e "vender proteção" aos vizinhos, enquanto os dirigentes desses buscarão, por seu turno, preservar-se exportando para outros lugares parcelas ainda maiores de seu terror doméstico e de seu superavit de fervor religioso.

E o Brasil com isso? Os interesses da nação e os do regime lulista não coincidem necessariamente. O PT vê a atual ordem mundial como obstáculo tanto a seu anseio de continuar governando quanto ao de capitanear uma ordem alternativa.Apesar de não terem mostrado mais cedo suas cartas, agora que há um presidente americano do qual não se sabe se é fraco ou se deseja abolir o papel hegemônico de seu país na manutenção do sistema internacional em vigor, os petistas entenderam que o vácuo de poder assim criado, abrindo um leque de oportunidades, permite-lhes enfim pôr em ação sua verdadeira política externa.

Nelson Ascher é poeta, ensaísta e tradutor. É autor, entre outras obras, de "Parte Alguma" (2005, Cia das Letras).

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