domingo, 7 de março de 2010

Jogados ao deus-dará:: José de Souza Martins*

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Moradores de rua são uma modalidade extrema e dramática de desempregado, com pouca chance de ressurreição

SÃO PAULO - Os sumários dados preliminares do novo censo decenal dos moradores de rua da cidade de São Paulo, realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, confirma que o problema se agrava. Se no ano de 2000 havia 8.706 moradores de rua, agora eles são 13 mil, 49,3% mais. Seu número cresceu dez vezes mais do que o número de habitantes da cidade.

A notícia vem acompanhada da crítica, necessária, mas insuficiente, ao número desproporcional de vagas nos albergues. No período, no entanto, o número de vagas nos albergues dobrou, mesmo que com redução no último ano. Mais da metade dessa população dorme na rua. Mas, nos albergues sobram vagas. Por várias razões, há moradores de rua que preferem ficar na rua.

Entre outras, a de que os albergues não são lugares de moradia. Mesmo os mantidos por entidades religiosas, como as católicas, as evangélicas e as espíritas, são lugares em que as pessoas podem tomar banho, jantar, dormir e tomar o café da manhã, devendo deixá-los em seguida para buscar uma nova vaga no final da tarde.

O morador de rua é uma modalidade extrema e dramática de desempregado. O censo entre eles realizado, em 2000, mostrou que apenas 31,9% não trabalham, 54,1% são ambulantes, 24,9% vivem de esmolas e apenas 1,2% não têm renda alguma. Muitos trabalham na coleta para reciclagem dos abundantes resíduos urbanos do centro da cidade, a mais forte razão para ficarem naquela área. São trabalhadores, mal pagos até pela cidade que de seu trabalho de limpeza se beneficia. Antes de se tornarem moradores de rua, apenas 3,3% não trabalhavam, 36,6% tinham ocupações de baixa classe média (uns poucos tinham curso superior), 19,9% vinham da construção civil e apenas 4,3% vinham de ocupações agrícolas. Portanto, uma população cultural e ocupacionalmente urbana.

Numa época em que eram dramáticas as condições de desenraizamento ocupacional dos trabalhadores rurais, momento da expansão da população dos chamados boias-frias, no Sudeste, e clandestinos, no Nordeste, não foi propriamente entre eles que se recrutaram os moradores de rua. Mas eu não deixaria de levar em conta a acentuada imigração sazonal desses trabalhadores rurais precários e instáveis para grandes cidades como São Paulo e Rio como um dos fatores da crescente população de moradores de rua, um terço dos quais originários da própria cidade de São Paulo.

Os migrantes temporários, morando em condições precaríssimas em favelas e cortiços, barateiam acentuadamente a mão de obra justamente nos setores cujo desemprego está na origem dos moradores de rua. Uma espécie de tsunami social, em que os vagalhões da precarização do trabalho na agricultura transferem populações temporárias para as cidades, que, ao se submeterem a salários ínfimos, acabam provocando desemprego permanente nas ocupações já mal remuneradas do mercado de trabalho urbano, nas funções menos qualificadas e mais vulneráveis. Reforça essa suposição o dado de que, dos moradores de rua de São Paulo, do ano 2000, 74,8% provinham de 2 anos ou mais de emprego estável, 26,2% de 10 anos ou mais de emprego e 8,9% de 20 anos ou mais. Expressões de uma rotação da mão de obra e consequente descarte do estável pelo precário, como é comum em diversas ocupações, especialmente na construção civil, que está na origem de um quinto dos moradores de rua.

A onda atinge seletivamente suas vítimas. Uma grande parte desses moradores, 39,5%, tinha 41 ou mais anos de idade, a idade crítica nas relações de emprego, o que se confirma pelo fato de que 83,6% deles eram do sexo masculino, justamente os mais atingidos pela idade no desemprego precoce. Um estudo de Maria Antonieta da Costa Vieira mostrou que os moradores de rua são majoritariamente homens que vivem sem família, com idade média de 44 anos, sendo grande o contingente de idosos. Nasceram em outros Estados 65% deles, mas vivem há muitos anos na cidade de São Paulo. Um número significativo é doente.

O insuficiente serviço de albergues estimula outra seletividade. É maior a proporção de homens que dormem nos albergues do que a de mulheres, que na maioria dormem na rua. É maior a proporção de brancos que a de negros. Há mais brancos morando nas ruas do que negros, se não juntarmos aos negros (nem aos brancos) os pardos. Portanto, a distribuição desigual da injustiça social se multiplica na perversidade de uma diferenciação social na qual se supõe que já não há lugar para diferenciações.

Num outro plano, a crise social se desdobra e se multiplica no abismo que separa o morador de rua da sociedade da qual se origina. A socióloga belga Marie-Ghislaine Stofells, que fez sua pós-graduação na Universidade de São Paulo, sob orientação do professor Lúcio Kowarick, aqui realizou uma das mais importantes pesquisas sobre moradores de rua, de que resultou o livro Os Mendigos na Cidade de São Paulo, publicado em 1977. No período mais repressivo do regime militar, Marie-Ghislaine decidiu morar na rua para fazer seu trabalho. Estrangeira e culta, foi presa mais de uma vez, suspeitíssima de atividades subversivas. Colheu precioso material sobre o drama dessa população. Na rua, as pessoas passam por três etapas: a da defesa, a da revolta, a da resignação. Sociologicamente, a conversão do cidadão em morador de rua impõe-lhe um processo de progressiva dessocialização, de perda de suas referências sociais e, finalmente, seu conformismo com o modo de vida anômalo da rua, a exclusão por renúncia.

Agora, seu número aumentou, sobretudo, em decorrência de outro efeito da onda: a desorganização da família e o apelo ao álcool e à droga. Pode-se dizer que a inclusão das vítimas da crise do trabalho no mundo da rua constitui uma forma de morte social, em que é pequena a possibilidade da ressurreição. Há muita hipocrisia e muito oportunismo na redução do problema do morador de rua à questão do número de vagas nos albergues noturnos. É reduzir a tragédia de uma vida ao drama de uma noite, que nem por isso é menos real e menos doloroso.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto)

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