DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Quem diria? O embate eleitoral relativo à Presidência da República encaminha-se para ser travado tendo como foco principal o papel do Estado na economia. A má notícia é que os discursos do governo e da oposição são singularmente distorcidos ou omissos quanto ao tema.
Na melhor tradição brasileira, a eleição caminha para ser de fato decidida com base na saturação de propagandas eleitorais baseadas em prestidigitações de especialistas em embromação de eleitorado. O embate que interessaria, em torno de programas de governo alternativos, como indicação de amadurecimento dos partidos políticos, fica adiado sine die. Talvez para quando mensalões deixarem de ser regra e passarem a ser exceções.
Lula e sua candidata são explícitos em relação ao papel do Estado: denunciam a postura "privatizante" do governo FHC, demonstram ter memória seletiva quanto a experiências anteriores e enfatizam o papel crucial que a ação do Estado deverá ter para assegurar o futuro bom desempenho da economia. A vitória de Dilma Rousseff implicará economia movida a ação direta do Estado, com o uso de instrumentos "legítimos", tais como subsídios maciços ao setor privado, indevidamente postos de lado em meio a excessos neoliberais.
Dilma Rousseff , ironicamente, dado o seu passado de opositora radical da ditadura militar, sempre se distinguiu por adotar posições extremadamente estatizantes, ao feitio do Brasil Grande dos anos 70. Já Lula até recentemente foi comedido, e sua volte-face pode ser classificada, com simpatia, como manifestação de faceta camaleônica hiperdesenvolvida e, sem tanta simpatia, como abertamente oportunista e eleitoreira.
Durante os anos iniciais do governo Lula, quando não parecia conveniente a defesa explícita de subsídios, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) defendeu a tese de que seus financiamentos não envolviam subsídios, pois a taxa cobrada dos mutuários, baseada na Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), era superior à taxa que remunerava a sua principal fonte de recursos, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
A argumentação do BNDES já era incorreta. Seus financiamentos envolviam subsídios que correspondiam, no mínimo, à diferença entre a TJLP e a taxa Selic. Agora, quando o governo elegeu os subsídios como motor do crescimento e fez maciços aportes diretos do Tesouro ao BNDES, as coisas são ainda mais transparentes.
Para transferir recursos ao BNDES, o Tesouro capta recursos à taxa Selic; o BNDES cobra de seus mutuários a TJLP; a taxa Selic é superior à TJLP. Não há dúvida de que há subsídio.
O que interessa avaliar é se o subsídio faz sentido em cada caso específico. Subsídios generalizados são desperdício de recursos que certamente teriam melhor aplicação alternativa. Pior, criam voraz clientela que lutará com unhas e dentes por sua perpetuação. Não adianta berrar em palanque: a defesa sem qualificações do subsídio como instrumento de política econômica é um retrocesso descomunal. É tão primitiva quanto a ideia de que nenhum subsídio faz sentido.Subsídios fazem sentido quando os mercados funcionam mal. Seja deixando de estimular a oferta de determinados bens e serviços que geram benefícios sociais, como, por exemplo, avanços tecnológicos de difícil apropriação privada, seja deixando de penalizar a demanda de bens que acarretam custos sociais, como por exemplo poluindo o meio ambiente. Não é por acaso que as disciplinas multilaterais reconhecem o uso legítimo de subsídios quando relativos à inovação tecnológica, poluição e desigualdades regionais.
O pano de fundo que poderia justificar a renovada crença quanto à eficácia do Estado tem que ver com a crise econômica mundial e as respostas de vários governos de economias desenvolvidas, aumentando o peso do Estado tanto no setor financeiro quanto no industrial.
Há confusão entre o diagnóstico de crise da economia mundial que ocorreu na esteira de má regulação, especialmente no setor financeiro, e crise do capitalismo, que requereria rebalanceamento nos papéis do Estado e do setor privado na provisão de bens e serviços. O mais provável é que haja reforma de aparatos regulatórios, seguida de gradual privatização das empresas estatizadas na crise. Lula e Dilma estão trabalhando com o segundo cenário e optaram pela estratégia baseada no Estado produtor de bens e serviços.
Nos anos 70 e, em menor medida, nos 80, a estratégia econômica brasileira foi calcada no uso indiscriminado de subsídios e na ênfase no papel condutor do Estado. A julgar pelo entusiasmo de Lula e Dilma quanto à eficácia da ação do Estado, o fracasso dessa estratégia foi apagado da memória. Já não se lembram do congelamento da correção monetária nos empréstimos do BNDES, da Lei da Informática, da ineficiência de muitas estatais. E, no entanto, não há evidência de que a eficácia governamental agora possa ser maior do que a demonstrada no passado.
O pior é que a oposição, na defensiva, mal se atreve a romper o silêncio ditado por sua estratégia eleitoral e se limita a tartamudear que durante o governo FHC nunca se pretendeu privatizar o Banco do Brasil e a Petrobrás. Não há defesa coerente da privatização de empresas estatais antes e durante o governo FHC. Nem de denúncia do enfraquecimento sistemático das agências reguladoras promovido desde 2003. É como se endossasse a posição extrema da candidata oficial e de seu criador em relação ao papel do Estado na economia.
Será que, de fato, há contraste relevante entre os principais candidatos presidenciais em relação a esses temas?
*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
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