DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Pouco explorada atualmente, temática da falta de representação e capacidade de ação das pessoas nos rumos da sociedade é o grande empecilho que a Justiça precisa eliminar
As teorias vigentes sobre a Justiça na filosofia política dominante de hoje são muito dependentes de uma maneira de pensar iniciada por Thomas Hobbes no século 17, concentrada excessivamente num hipotético "contrato social" que pessoas de um Estado soberano tenham endossado. Esse contrato supostamente identifica as "instituições justas" necessárias. A abordagem "contratualista" é a influência dominante na filosofia política contemporânea e seu foco limitado estreitou indevidamente a análise da Justiça ? e distanciou a teoria do real.
Ao contrário da tradição contratualista, outros teóricos iluministas (Adam Smith, o marquês de Condorcet, Mary Wollstonecraft, Karl Marx e John Stuart Mill, por exemplo) adotaram uma diversidade de abordagens que compartilhava um interesse comum, centrado na vida real.
O que ocorre às pessoas depende não só de instituições, mas também de outras influências - em particular, o comportamento e as interações sociais dessas pessoas.
Essa abordagem alternativa tem muito a oferecer à filosofia política contemporânea e também a nossas práticas e políticas reais.
Se nossa atenção deve ser nas vidas das pessoas, a questão que imediatamente surge é como compreender a riqueza e a pobreza. A perspectiva que tentei seguir se concentrou, sobretudo, nas várias formas de liberdade de que as pessoas desfrutam. Isso difere enormemente de outras abordagens para avaliar as demandas de Justiça: por exemplo, olhar o cumprimento de certos direitos formais que as pessoas deveriam ter e se esses direitos são ou não realmente exercidos.
Muitos desses direitos podem ter uma regra instrumental para promover vidas sociais mais livres. No entanto, a busca de Justiça certamente não deveria parar por aí.
As liberdades individuais podem ser vistas como um compromisso social. E isso requer que o Estado desempenhe um papel realmente ativo na promoção da liberdade, para as pessoas fazerem o que valorizam.
Liberdade e potencialidades. Se é importante não se restringir à leitura da liberdade dentro do libertarismo, a necessidade de ir além do pensamento utilitário para satisfazer prazeres ou desejos não é menos forte. Mesmo que pessoas cronicamente carentes - os irremediavelmente pobres ou os que estão há muito tempo desempregados - aprendam a aceitar e a se acomodar alegremente a seus estilos de vida carentes, essa alegria cultivada não eliminará a privação real de liberdade que continuam a padecer.
Um sistema de eliminação da pobreza que se concentre apenas no baixo nível da renda, em particular se a renda de uma pessoa - ou de uma família - está abaixo da linha de pobreza, considerará a limitação de ganho, mas não a limitação de conversão. Isso poderá comprometer basicamente o programa de alívio da pobreza.
O que dizer do poder, conceito que se relaciona estreitamente à ideia de liberdade?
Dizer que uma pessoa é desprovida de poder para reverter o tipo de negligência que vem sofrendo também pode ser expresso numa linguagem de potencialidade: ela não é capaz de reverter a negligência que sofre.
Mas há algum vigor evocativo e força retórica na linguagem do poder, particularmente ao tratar da falta de poder, à qual a palavra "potencialidade", que é realmente um termo da arte, não consegue se equiparar. Analisar "poder" e "falta de poder" deve ajudar a se alcançar uma melhor compreensão do mundo dividido em que vivemos.
A ira e amarga ironia de Mary Wollstonecraft sobre a submissão de mulheres complementou seu raciocínio frio contra a hierarquia de gênero em seu clássico A Vindication of the Rights of Woman ("Em defesa dos direitos da mulher", em tradução livre), de 1792.
Ou tomem-se as observações de Steve Biko sobre "falta de poder" na África do Sul refém no apartheid nos anos 1970. "A falta de poder produz", disse Biko, "uma raça de mendigos que sorri para o inimigo e o xinga no santuário de seu banheiro. Que grita "Baas" (senhor) voluntariamente durante o dia e chama o homem branco de cachorro em seus ônibus quando vai para casa."
Se a falta de potencialidade de qualquer tipo é motivo de preocupação, as relacionadas à incapacidade da pessoa de agir livremente ou falar abertamente por causa do poder alheio têm uma urgência especial. Essa é uma preocupação importante na promoção de liberdade e potencialidade, pois as sociedades envolvem conflitos além de camaradagem e apoio mútuo. A busca de justiça na promoção de liberdades e potencialidades nas vidas das pessoas precisa estar viva em ambas.
Tradução: Celso M. Paciornik
economista indiano, recebeu o Nobel de economia em 1998
Pouco explorada atualmente, temática da falta de representação e capacidade de ação das pessoas nos rumos da sociedade é o grande empecilho que a Justiça precisa eliminar
As teorias vigentes sobre a Justiça na filosofia política dominante de hoje são muito dependentes de uma maneira de pensar iniciada por Thomas Hobbes no século 17, concentrada excessivamente num hipotético "contrato social" que pessoas de um Estado soberano tenham endossado. Esse contrato supostamente identifica as "instituições justas" necessárias. A abordagem "contratualista" é a influência dominante na filosofia política contemporânea e seu foco limitado estreitou indevidamente a análise da Justiça ? e distanciou a teoria do real.
Ao contrário da tradição contratualista, outros teóricos iluministas (Adam Smith, o marquês de Condorcet, Mary Wollstonecraft, Karl Marx e John Stuart Mill, por exemplo) adotaram uma diversidade de abordagens que compartilhava um interesse comum, centrado na vida real.
O que ocorre às pessoas depende não só de instituições, mas também de outras influências - em particular, o comportamento e as interações sociais dessas pessoas.
Essa abordagem alternativa tem muito a oferecer à filosofia política contemporânea e também a nossas práticas e políticas reais.
Se nossa atenção deve ser nas vidas das pessoas, a questão que imediatamente surge é como compreender a riqueza e a pobreza. A perspectiva que tentei seguir se concentrou, sobretudo, nas várias formas de liberdade de que as pessoas desfrutam. Isso difere enormemente de outras abordagens para avaliar as demandas de Justiça: por exemplo, olhar o cumprimento de certos direitos formais que as pessoas deveriam ter e se esses direitos são ou não realmente exercidos.
Muitos desses direitos podem ter uma regra instrumental para promover vidas sociais mais livres. No entanto, a busca de Justiça certamente não deveria parar por aí.
As liberdades individuais podem ser vistas como um compromisso social. E isso requer que o Estado desempenhe um papel realmente ativo na promoção da liberdade, para as pessoas fazerem o que valorizam.
Liberdade e potencialidades. Se é importante não se restringir à leitura da liberdade dentro do libertarismo, a necessidade de ir além do pensamento utilitário para satisfazer prazeres ou desejos não é menos forte. Mesmo que pessoas cronicamente carentes - os irremediavelmente pobres ou os que estão há muito tempo desempregados - aprendam a aceitar e a se acomodar alegremente a seus estilos de vida carentes, essa alegria cultivada não eliminará a privação real de liberdade que continuam a padecer.
Um sistema de eliminação da pobreza que se concentre apenas no baixo nível da renda, em particular se a renda de uma pessoa - ou de uma família - está abaixo da linha de pobreza, considerará a limitação de ganho, mas não a limitação de conversão. Isso poderá comprometer basicamente o programa de alívio da pobreza.
O que dizer do poder, conceito que se relaciona estreitamente à ideia de liberdade?
Dizer que uma pessoa é desprovida de poder para reverter o tipo de negligência que vem sofrendo também pode ser expresso numa linguagem de potencialidade: ela não é capaz de reverter a negligência que sofre.
Mas há algum vigor evocativo e força retórica na linguagem do poder, particularmente ao tratar da falta de poder, à qual a palavra "potencialidade", que é realmente um termo da arte, não consegue se equiparar. Analisar "poder" e "falta de poder" deve ajudar a se alcançar uma melhor compreensão do mundo dividido em que vivemos.
A ira e amarga ironia de Mary Wollstonecraft sobre a submissão de mulheres complementou seu raciocínio frio contra a hierarquia de gênero em seu clássico A Vindication of the Rights of Woman ("Em defesa dos direitos da mulher", em tradução livre), de 1792.
Ou tomem-se as observações de Steve Biko sobre "falta de poder" na África do Sul refém no apartheid nos anos 1970. "A falta de poder produz", disse Biko, "uma raça de mendigos que sorri para o inimigo e o xinga no santuário de seu banheiro. Que grita "Baas" (senhor) voluntariamente durante o dia e chama o homem branco de cachorro em seus ônibus quando vai para casa."
Se a falta de potencialidade de qualquer tipo é motivo de preocupação, as relacionadas à incapacidade da pessoa de agir livremente ou falar abertamente por causa do poder alheio têm uma urgência especial. Essa é uma preocupação importante na promoção de liberdade e potencialidade, pois as sociedades envolvem conflitos além de camaradagem e apoio mútuo. A busca de justiça na promoção de liberdades e potencialidades nas vidas das pessoas precisa estar viva em ambas.
Tradução: Celso M. Paciornik
economista indiano, recebeu o Nobel de economia em 1998
Gilvan sou pesquisador do Pensamento de Sen. Podemos trocar e-mail e trocarmos informações.
ResponderExcluirAbraço
Neuro (neurojose@hotmail.com)