segunda-feira, 1 de março de 2010

O joio e o joio:: Fábio Wanderley Reis

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em 2005, inspirado na lembrança de um velho artigo de jornal de Wanderley Guilherme dos Santos ("O Trigo e o Trigo"), usei o título acima em ensaio relacionado com a crise do chamado "mensalão". A intenção era contrapor-me à separação, a que figuras de destaque de diferentes orientações políticas vinham recorrendo (num consenso que sugere uma torta "cultura" em operação), entre o "joio" de ilegalidades como as que eram desvendadas pela crise e o suposto "trigo" das ilegalidades - "menores" e sem importância real... - relacionadas com o financiamento de campanhas, o caixa dois. A atuação da Justiça Eleitoral, mesmo se de maneira embaraçosamente pesada e lerda que seria preciso aperfeiçoar, vem contribuindo, como se vê agora na cassação do prefeito Gilberto Kassab e sua vice e de diversos vereadores em São Paulo, para por fim ao que o Valor chamou, em editorial de 24 de fevereiro, de "relativização do delito eleitoral".

O financiamento de campanhas, ou da atividade política em geral, é um item entre outros da reforma política que se tem discutido no Brasil. Mas é grande sua importância de um ponto de vista doutrinário orientado pelo ideal democrático: é patente a necessidade de compor a igualdade do direito de votar, amplamente assegurado, com a igualdade no direito de ser votado, ou de candidatar-se com perspectivas de êxito a cargos eleitorais, direito este quanto ao qual o peso do dinheiro privado se faz sentir de forma que, ao contaminar e distorcer o processo eleitoral, representa forte estímulo à corrupção na administração pública. De todo modo, sejam quais forem as dificuldades para erigir mecanismos de execução e controle eficientes do financiamento público tornado exclusivo (idealmente a solução adequada do problema geral), ou para o recurso a formas democratizadas de financiamento privado que vimos acionadas com êxito na campanha de Barack Obama, é inadmissível que continue operando indefinidamente entre nós a aceitação ligeira da transposição do limite da legalidade contida na "relativização" de que fala o Valor. Uma vez feita a transposição, não há como superar a turvação em que a própria legalidade como tal se tornará em princípio irrelevante, preservando-se a cultura propícia não só às formas usuais de corrupção, mas também a coisas mais sinistras: é provavelmente desnecessário lembrar, por exemplo, os indícios que apontam, no assassinato de Celso Daniel, o desdobramento de práticas escusas de financiamento partidário e caixa dois.

Mas eventos recentes nos Estados Unidos merecem destaque quanto ao alcance maior tanto dos dispositivos que se acolham para o financiamento da atividade política como da disposição a jogar com a seriedade com que as leis haverão de ser tomadas. O primeiro aspecto é ilustrado pela recente decisão da Suprema Corte em que se relaxam restrições vigentes há muito para a participação das corporações no financiamento de campanhas políticas. O debate a respeito acaba (ou, de fato, começa, pois isto surge já na fundamentação da decisão) por envolver questões constitucionais relativas à própria liberdade de expressão - não obstante os críticos da decisão ressaltarem convincentemente, como em editorial do "New York Times" de 22 de janeiro, a impropriedade legal da assimilação entre corporações e cidadãos como titulares do direito à livre expressão. Na verdade, Linda Greenhouse, em comentário na edição eletrônica de 28 de janeiro do mesmo jornal, elabora o que a decisão da Suprema Corte envolveu de manobra, bem como o risco de que ela termine por questionar a constitucionalidade até da fundamental conquista democrática da Lei dos Direitos Civis, tal como emendada em 1991 - de maneira que colocaria a Corte não só contra o Congresso, mas contra o conjunto unânime de decisões dela própria que a ação do Congresso consolidou naquele ano.

O outro aspecto, quanto os riscos envolvidos na "relativização" do apego às leis, se ilustra com as dificuldades de que o presidente Obama se vê cercado na área de segurança e na gradual retomada de uma perspectiva mais afim a Bush com respeito à "guerra ao terror". Além dos vários casos em que se evidenciam essas dificuldades, tomemos Guantánamo, com o simbolismo de que se reveste, e a recente decisão do governo Obama de manter lá indefinidamente 50 prisioneiros. Tal como noticiadas pela "Folha de S. Paulo" em 23 de janeiro, as razões citadas para a decisão alegam que os prisioneiros "são considerados perigosos demais para a soltura devido a laços com redes extremistas. Mas o governo acha impossível julgá-los, em geral porque a cadeia de provas foi corrompida - por exemplo com confissões obtidas mediante tortura". Em outras palavras: como há ilegalidade na obtenção de provas, cometamos a ilegalidade maior de prender indefinidamente sem julgamento as pessoas envolvidas. Admita-se o que há de complicada novidade, para os Estados Unidos (e o mundo), no enfrentamento da ameaça para a qual o país despertou sob o trágico impacto do 11 de setembro; não há como negar, contudo, o exemplo que a decisão em questão representa da deriva a que a saúde legal e a adesão aos princípios liberais são submetidas quando se aceita tergiversar quanto à lei e relativizá-la.

Voltando ao Brasil, o vigor da lei como referência efetiva da conduta provavelmente depende, em última análise, da vigência real de uma cultura favorável. Mas a alternativa à longa e incerta espera do amadurecimento da boa cultura é fazer boas leis e vigiar com rigor a sua observância. O que talvez acabe até produzindo a boa cultura.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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