Christian Carvalho Cruz
A despeito dos críticos e bem longe da toga, Denise Frossard defende a beleza e a sabedoria do tribunal do júri
SÃO PAULO - A juíza aposentada e ex-deputada federal Denise Frossard rega diariamente sua fama de durona. Não é vaidade. Tá bom, um pouco pode ser. Mas é, antes, força do hábito, assentamento de biografia. São tantos anos com um "corajosa" colado ao nome que ela não pode mais se livrar do adjetivo - nem se quisesse. Então, dá-lhe ardidez da mulher que em 15 anos de magistratura e quatro de Parlamento enfrentou bandidinho e bandidão, bicheiro, mensaleiro e todo tipo de cara feia.
Nessa semana em que o julgamento do caso Isabella levantou um debate paralelo sobre a legitimidade do tribunal do júri para casos de assassinato, Denise, de 59 anos, vem dizer: ele não só é bom como deveria ser ampliado; e juiz que critica o poder do povo de decidir o destino de seus pares está é se mordendo de ciúme.
Mas bravura tem limite. Não adianta insistir, ela detesta que contem que seu nome inteiro é Denise Frossard Pavarotti Loschi. Morre de medo de que as pessoas, conhecendo seu parentesco distante com o falecido tenor italiano, lhe peçam para cantar. Pois bem, não falemos mais disso. A seguir, trechos da entrevista que Denise Frossard concedeu, por telefone, ao Aliás.
Ciúme de vocês
"Sou absolutamente favorável ao tribunal do júri, mas restrito àqueles crimes que qualquer um de nós pode cometer, como o homicídio. Um homem de bem dirá: ‘Eu jamais estuprarei uma mulher’. Mas quem pode afirmar que nunca cometerá um homicídio? Ninguém. De modo que ser julgado por seus pares é muito bom, instrutivo. Sei que estou desacompanhada de dois dos maiores expoentes da magistratura brasileira: Nelson Hungria (ministro do Supremo Tribunal Federal nos anos 50 e 60) e Wálter Maierovitch, meu grande amigo. O Nelson Hungria era contra o júri popular porque, segundo ele, ‘o jurado entende tanto de lei quanto o pinguim entende de geladeira’. O Wálter, um juiz tecnicamente perfeito, argumenta que os jurados condenam ou absolvem arbitrariamente, sem precisar fundamentar sua decisão, o que é impossível ao juiz togado em qualquer tipo de caso, sob o risco de nulidade do julgamento. Não compartilho dessa opinião. O que vejo, na realidade, é que o juiz togado morre de ciúme do conselho de sentença, formado pelos jurados. Porque o juiz estuda a vida inteira, adquire todas as ferramentas intelectuais e técnicas, se submete a um concurso público dificílimo e, na hora de julgar o crime maior, não pode bater o martelo.
Seleção Brasileira I
"A excelência do tribunal do júri está na mão do juiz togado, na sua condução do julgamento e, principalmente, na seleção que ele faz dos jurados. É ele quem escolhe os jurados do seu tribunal, de acordo com a população de sua comarca. Por exemplo, são de 800 a 1.500 jurados em comarcas de mais de 1 milhão de habitantes. Essa seleção - e o termo não é à toa, porque numa seleção só entram os melhores - é da maior importância para o êxito do tribunal do júri. Em comarcas pequenas, de 15 mil habitantes, digamos, o tribunal popular é perfeito. O juiz sabe quem é quem na cidade, os jurados conhecem bem o réu, sabem se ele matou ou não.
Em grandes metrópoles não dá para ao juiz conhecer de perto os escolhidos. Mas ele pode buscar informações objetivas sobre eles, pedir indicações. Eu pedia indicações a professores universitários, em repartições públicas, no Banco do Brasil, a gente da minha confiança. Até para meu médico eu perguntava se ele conhecia cidadãos de bem, equilibrados, que pudessem ser bons jurados no meu tribunal. Evitava pegar advogados, religiosos e trabalhadores autônomos como pedreiros e pintores de parede, porque, para estes últimos, atuar no júri representaria perder dias de trabalho, comprometeria seu sustento.
Seleção Brasileira II
"Feita essa seleção, os nomes vão para a urna geral e mês a mês o juiz sorteia os 25 que atuarão nos casos do mês seguinte. Isso acontece antes da publicação da pauta de julgamentos, portanto os 25 não sabem de antemão em que casos vão trabalhar. Nesse momento eu convocava uma reunião. Falava da importância deles, que eles julgariam no lugar de um profissional que dedicou a vida a isso, mas estava impedido por lei de fazer a parte do trabalho que mais desejava. Cabe ao juiz esclarecer também que a recusa de jurados no dia do julgamento não é um ato desabonador. Trata-se apenas de estratégia da defesa ou da acusação, o jurado não precisa se sentir diminuído se uma vez for recusado. O juiz deve deixar isso claro, para que o jurado continue dando a devida importância a sua participação, afinal pode vir a precisar dele em julgamentos futuros.
O peso da mídia
"Eu insisto: é a mão do dono da casa, o juiz presidente, que garante o sucesso do júri popular, inclusive em relação ao maior dos temores de hoje, que é o jurado influenciado pela mídia em casos de grande repercussão. Ele até pode chegar ao julgamento com uma avaliação pronta do caso, já achando que sabe como deve julgar. Mas na hora vai ter conhecimento dos autos, das provas técnicas, dos depoimentos, do comportamento do réu durante a audiência, de uma porção de fatos novos capazes de desmontar uma eventual avaliação prévia que tenha trazido de fora. Antes do julgamento o jornalista pode vender muito jornal. Mas ali dentro a história é outra. Eu nunca tive surpresa quanto à capacidade de um jurado discernir esse tipo de coisa.
O peso da tradição
"Há também o juramento, do qual decorre a seriedade dos jurados. É importantíssimo que o juiz mantenha o ritual e faça do juramento um momento solene. O peso da tradição deve se fazer sentir, tudo para aumentar a percepção da responsabilidade dos jurados. Ao lado da leitura da sentença, a constituição do júri é o momento mais importante do julgamento. O juiz diz: ‘Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir vossa decisão de acordo com vossa consciência e os ditames da Justiça’. Ao que os jurados, um por um, devem responder: ‘Assim o prometo’. Dali em diante eles farão justiça, devem se sentir juízes. E se sentem. Eu não me lembro de ter visto, no meu tribunal, uma decisão do júri que eu considerasse estapafúrdia. Foram todas da máxima sabedoria.
Técnica versus consciência
"Não é necessário ter conhecimento técnico das leis para julgar crimes contra a vida. O questionário, de cujas respostas sai a decisão dos jurados, é baseado estritamente nos fatos. São perguntas formuladas de forma simples e direta, às quais se deve responder ‘sim’ ou ‘não’. Isso é a fundamentação. As perguntas são feitas a partir das teses da acusação e da defesa. Portanto, o jurado responde sobre fatos. Sobre aquele fato e nenhum outro. Não precisa saber de exemplos anteriores nem posteriores. Além do mais, o réu sempre conhece a acusação. Ele sabe perfeitamente por que está ali. Portanto, há fundamentação, sim. Veja a beleza disso tudo. Vamos supor que esteja ali um réu que matou o estuprador da filha dele, meses depois do estupro. Um homem de bem até então, que nunca tinha cometido nenhum tipo de infração. Nesse caso ele é réu confesso de um homicídio. Se eu tiver de julgá-lo jamais poderei absolvê-lo, porque na letra fria da lei eu teria que lascar uma sentença condenatória nele. Mas o júri pode, porque decide de acordo com sua consciência, como determina a lei. Eu discordo que isso seja não justiça. Pelo contrário. A lei diz que, no tribunal do júri, os jurados são soberanos para fazer justiça segundo suas consciências, portanto podem se valer de seu histórico de vida, de suas crenças e convicções, para decidir.
Sem goleada
"Nos Estados Unidos é o juiz quem decide se o caso vai ou não ao grande júri. É uma boa ferramenta. Outra característica deles, melhor que a nossa, é a condenação por unanimidade. No Brasil, com sete jurados, pode ocorrer um 4 a 3. Uma condenação por maioria simples significa uma grande dúvida do júri. E não é dúvida sobre multa de trânsito. É dúvida que pode resultar em 30 anos de cadeia. O 4 a 3 pode comprometer o princípio que diz in dubio pro reo. Por isso considero o sistema americano melhor. Ele também permite que os jurados debatam entre eles até chegar a um consenso. Se não chegar, o juiz anula o processo e o promotor que venha com novos fatos. Se não vier, arquiva-se. Isso é muito civilizado.
A lenda
"No Brasil, o tribunal do júri só pode ser usado para crimes contra a vida e suas tentativas. Eu vejo apenas mais uma possibilidade para ele: crimes contra algo tão importante quanto a vida: a honra. Crimes contra a honra praticados pela imprensa. Porque corre uma lenda no Judiciário de que o juiz togado não gosta de condenar jornalista nem jornal. Porque o jornalista com uma penada julga, condena e aí não tem mais jeito. Eu não tenho problema com isso. Acho até que não é bom, pois avilta a imagem da imprensa, faz parecer que ela é sempre irresponsável. Mas, se a lenda for verdadeira, o tribunal do júri seria bom para esses casos. Você tiraria isso da mão do magistrado togado."
Seleção Brasileira I
"A excelência do tribunal do júri está na mão do juiz togado, na sua condução do julgamento e, principalmente, na seleção que ele faz dos jurados. É ele quem escolhe os jurados do seu tribunal, de acordo com a população de sua comarca. Por exemplo, são de 800 a 1.500 jurados em comarcas de mais de 1 milhão de habitantes. Essa seleção - e o termo não é à toa, porque numa seleção só entram os melhores - é da maior importância para o êxito do tribunal do júri. Em comarcas pequenas, de 15 mil habitantes, digamos, o tribunal popular é perfeito. O juiz sabe quem é quem na cidade, os jurados conhecem bem o réu, sabem se ele matou ou não.
Em grandes metrópoles não dá para ao juiz conhecer de perto os escolhidos. Mas ele pode buscar informações objetivas sobre eles, pedir indicações. Eu pedia indicações a professores universitários, em repartições públicas, no Banco do Brasil, a gente da minha confiança. Até para meu médico eu perguntava se ele conhecia cidadãos de bem, equilibrados, que pudessem ser bons jurados no meu tribunal. Evitava pegar advogados, religiosos e trabalhadores autônomos como pedreiros e pintores de parede, porque, para estes últimos, atuar no júri representaria perder dias de trabalho, comprometeria seu sustento.
Seleção Brasileira II
"Feita essa seleção, os nomes vão para a urna geral e mês a mês o juiz sorteia os 25 que atuarão nos casos do mês seguinte. Isso acontece antes da publicação da pauta de julgamentos, portanto os 25 não sabem de antemão em que casos vão trabalhar. Nesse momento eu convocava uma reunião. Falava da importância deles, que eles julgariam no lugar de um profissional que dedicou a vida a isso, mas estava impedido por lei de fazer a parte do trabalho que mais desejava. Cabe ao juiz esclarecer também que a recusa de jurados no dia do julgamento não é um ato desabonador. Trata-se apenas de estratégia da defesa ou da acusação, o jurado não precisa se sentir diminuído se uma vez for recusado. O juiz deve deixar isso claro, para que o jurado continue dando a devida importância a sua participação, afinal pode vir a precisar dele em julgamentos futuros.
O peso da mídia
"Eu insisto: é a mão do dono da casa, o juiz presidente, que garante o sucesso do júri popular, inclusive em relação ao maior dos temores de hoje, que é o jurado influenciado pela mídia em casos de grande repercussão. Ele até pode chegar ao julgamento com uma avaliação pronta do caso, já achando que sabe como deve julgar. Mas na hora vai ter conhecimento dos autos, das provas técnicas, dos depoimentos, do comportamento do réu durante a audiência, de uma porção de fatos novos capazes de desmontar uma eventual avaliação prévia que tenha trazido de fora. Antes do julgamento o jornalista pode vender muito jornal. Mas ali dentro a história é outra. Eu nunca tive surpresa quanto à capacidade de um jurado discernir esse tipo de coisa.
O peso da tradição
"Há também o juramento, do qual decorre a seriedade dos jurados. É importantíssimo que o juiz mantenha o ritual e faça do juramento um momento solene. O peso da tradição deve se fazer sentir, tudo para aumentar a percepção da responsabilidade dos jurados. Ao lado da leitura da sentença, a constituição do júri é o momento mais importante do julgamento. O juiz diz: ‘Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir vossa decisão de acordo com vossa consciência e os ditames da Justiça’. Ao que os jurados, um por um, devem responder: ‘Assim o prometo’. Dali em diante eles farão justiça, devem se sentir juízes. E se sentem. Eu não me lembro de ter visto, no meu tribunal, uma decisão do júri que eu considerasse estapafúrdia. Foram todas da máxima sabedoria.
Técnica versus consciência
"Não é necessário ter conhecimento técnico das leis para julgar crimes contra a vida. O questionário, de cujas respostas sai a decisão dos jurados, é baseado estritamente nos fatos. São perguntas formuladas de forma simples e direta, às quais se deve responder ‘sim’ ou ‘não’. Isso é a fundamentação. As perguntas são feitas a partir das teses da acusação e da defesa. Portanto, o jurado responde sobre fatos. Sobre aquele fato e nenhum outro. Não precisa saber de exemplos anteriores nem posteriores. Além do mais, o réu sempre conhece a acusação. Ele sabe perfeitamente por que está ali. Portanto, há fundamentação, sim. Veja a beleza disso tudo. Vamos supor que esteja ali um réu que matou o estuprador da filha dele, meses depois do estupro. Um homem de bem até então, que nunca tinha cometido nenhum tipo de infração. Nesse caso ele é réu confesso de um homicídio. Se eu tiver de julgá-lo jamais poderei absolvê-lo, porque na letra fria da lei eu teria que lascar uma sentença condenatória nele. Mas o júri pode, porque decide de acordo com sua consciência, como determina a lei. Eu discordo que isso seja não justiça. Pelo contrário. A lei diz que, no tribunal do júri, os jurados são soberanos para fazer justiça segundo suas consciências, portanto podem se valer de seu histórico de vida, de suas crenças e convicções, para decidir.
Sem goleada
"Nos Estados Unidos é o juiz quem decide se o caso vai ou não ao grande júri. É uma boa ferramenta. Outra característica deles, melhor que a nossa, é a condenação por unanimidade. No Brasil, com sete jurados, pode ocorrer um 4 a 3. Uma condenação por maioria simples significa uma grande dúvida do júri. E não é dúvida sobre multa de trânsito. É dúvida que pode resultar em 30 anos de cadeia. O 4 a 3 pode comprometer o princípio que diz in dubio pro reo. Por isso considero o sistema americano melhor. Ele também permite que os jurados debatam entre eles até chegar a um consenso. Se não chegar, o juiz anula o processo e o promotor que venha com novos fatos. Se não vier, arquiva-se. Isso é muito civilizado.
A lenda
"No Brasil, o tribunal do júri só pode ser usado para crimes contra a vida e suas tentativas. Eu vejo apenas mais uma possibilidade para ele: crimes contra algo tão importante quanto a vida: a honra. Crimes contra a honra praticados pela imprensa. Porque corre uma lenda no Judiciário de que o juiz togado não gosta de condenar jornalista nem jornal. Porque o jornalista com uma penada julga, condena e aí não tem mais jeito. Eu não tenho problema com isso. Acho até que não é bom, pois avilta a imagem da imprensa, faz parecer que ela é sempre irresponsável. Mas, se a lenda for verdadeira, o tribunal do júri seria bom para esses casos. Você tiraria isso da mão do magistrado togado."
A entrevista da Denise é uma aula de quem entende do riscado. Excelente comparação ela faz entre os sistemas brasileiro e americano, com vantagens para o americano. Sem o peso da disputa por mandatos, a Denise retorna aos poucos ao debate das questões que, de fato, interessam à política e à melhor matéria-prima de seu exercício: o povo.Parabéns Gilvan, pela reprodução da matéria.
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