sexta-feira, 30 de abril de 2010

As tragédias anunciadas :: Carlos Lessa

DEU NO VALOR ECONÔMICO

O terremoto de janeiro em Porto Príncipe, no Haiti, produziu mais de 200 mil mortes, devastou de alicerces às habitações feitas com folhas de lata e às débeis instituições do mais pobre e infeliz país latino-americano. Sob a luz intensa da mídia internacional, houve um primeiro lugar indesejado pelo Haiti, promovido pela tragédia sísmica a centro de um espetáculo de dor que mobilizou milhares de manifestações de solidariedade. Sucedido pelo terremoto chileno, o Haiti perdeu a centralidade da mídia e das manifestações de solidariedade. Há poucas semanas, aconteceu um terremoto em Qinghai, na China. A sucessão midiática naturaliza a tragédia, e cada uma vai perdendo o sabor de novidade.

Em Santa Catarina, as chuvas de novembro de 2008 deixaram 135 mortes e muita destruição. Na virada de 2009, em Angra dos Reis, deslizamentos mataram 52 pessoas. Os 288 mm de precipitação pluviométrica nas 24 horas do dia 5 para 6 deste mês de abril na Região Metropolitana do Rio de Janeiro mataram mais de 250 pessoas. Todas essas tragédias tiveram seu momento de destaque na mídia nacional. Inspiraram horror, manifestações de solidariedade, mas tendem a ser apagadas da grande memória social. A naturalização impregna Ana Júlia de Souza, moradora do Morro do Fubá, que declarou à Folha de São Paulo: "o que tiver que acontecer, vai acontecer, seja com o rico ou com o pobre, porque casas de ricos estão desmoronando também". No Morro do Fubá houve mortes na mesma ocasião da tragédia de Angra dos Reis, porém o drama do Fubá não foi para a ribalta. Ana Júlia foi removida da área de risco do Fubá, porém retornou e apela para a providência divina: "tenho fé de que Deus vai nos proteger".

Cada tragédia suscita uma sequência de ações emergenciais e uma rica retórica de projetos de médio e longo prazos a serem implantados. Contudo, ao ceder posição no podium das tragédias, rebaixada pela tragédia subsequente, mergulha progressivamente no anonimato. Isso dá origem à naturalização do trinômio máxima energia, retórica evanescente e diferimento dos projetos.

As favelas do município do Rio de Janeiro, na grande Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, foram reestruturadas pelo Programa Favela Bairro. Na Nova República, fui diretor da área social do BNDES. Apoiamos, com recursos do Finsocial, a reestruturação integral de uma favela de Olinda denominada Ilha dos Ratos. Apoiamos a prefeitura de Curitiba na consolidação e urbanização de duas favelas. Estivemos em Joinvile, Natal, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Foi possível, a partir dessas experiências, fazer um ensaio tipológico de favelas, avaliar algumas tecnologias especiais de estruturação e estimar (a partir dos trabalhos de Ricardo Bielschowsky) os custos unitários para equacionar o suprimento de água e coleta de esgoto e lixo, levantar a "malha viária" da comunidade para aperfeiçoar a circulação interna e externa dos moradores e instalar alguns equipamentos públicos básicos.

Ulysses Guimarães entendia ser um compromisso básico da Constituição de 1988 integrar todas as famílias no corpo social. Sabia ser a residência o perímetro-chave dessa plena integração. A qualidade de vida digna para todos os brasileiros foi meta de seu programa como candidato à Presidência da República. Se propôs, como candidato, a converter todas as favelas em bairros populares. A proposta desse programa nacional de Ulysses se converteu no programa municipal iniciado em 1993 com o nome de Favela-Bairro. O Rio teve o apoio do Banco Mundial e foi premiado como o melhor programa de integração das comunidades faveladas. O Programa foi executado em sua totalidade, porém não inspirou os demais municípios da região metropolitana, nem tampouco nas zonas clássicas de migração para a metrópole carioca. O Favela-Bairro não foi sequenciado com a indispensável remoção das residências em áreas de risco ou de hiper dispendiosa urbanização.

Desde então, dois novos fenômenos urbanísticos ameaçaram as favelas do Rio. A melhor qualidade das comunidades do Rio acentuou a migração intra-metropolitana. Houve a valorização das áreas trabalhadas pelo Favela-Bairro. Deu origem a uma verticalização, pelo comércio do "direito de laje", pelo qual parcelas unifamiliares se convertem em mini prédios com três, quatro ou mais famílias. Essa verticalização instala um novo problema sanitário, pois a calha estreita das vielas e escadarias deixam de receber adequadamente luz solar.

Nas zonas de risco, aumenta a densidade da ocupação e, se houver mata ou alagadiço a ser ocupado, o perímetro da comunidade é ampliado. À época, estimou-se que 20% das residências estavam em zonas de risco e seria necessária uma grande área bem localizada para a remoção digna dessas famílias. Era óbvia a potencialidade das cercanias do retro velho Porto do Rio de Janeiro. Alguém estimou que lá seria possível situar 200 mil famílias, no centro da metrópole. Alternativamente e\ou simultaneamente, deveria ter prioridade absoluta a melhoria e a extensão do sistema metroviário e ferroviário urbano. Os ramais da antiga Central do Brasil e Leopoldina deveriam ser convertidos em um sistema de metrô de superfície que, ao reduzir o tempo de deslocamento residência-trabalho-residência e ao oferecer a baixo custo um transporte confiável e de qualidade, seria um multiplicador de terrenos para a construção de residências populares dignas. Isso retiraria a pressão sobre as áreas de risco.

Nada disso aconteceu. Houve silêncio quanto a programas de remoção, que costumam gerar fortes resistências e desgastes políticos para seus proponentes e executores. O Governo Federal não cedeu nem destinou o gigantesco latifúndio urbano que possui nos fundos do Porto do Rio para habitação popular. Persistem, com baixa prioridade, em um PAC insuficiente e pouco pensado, as metrópoles e seus sistemas de transporte coletivo.

Os juros de Meirelles têm total prioridade. Parece que os executivos de um banco de investimentos norte-americano deverão receber US$ 5 bilhões pela "recuperação" do banco. O Haiti, em marcha acelerada para um anonimato, não recebeu sequer US$ 1 bilhão em promessas. Parece que o presidente Obama está escandalizado. No Brasil, a realização de um favela-bairro nacional, como pretendia Ulysses, teria um custo de uns US$ 10 bilhões, uma fração dos juros que o Banco Central paga a partir da política monetário-financeira do presidente Meirelles. Esperemos que a mídia faça a conexão entre a crise permanente das metrópoles brasileiras, as tragédias visíveis e a política econômica oficial. Esperemos que entidades como FAFERJ, a Pastoral de Favelas e a Fundação Bento Rubião saibam dispor de uma pauta que vá além da queixa e situe a prioridade metropolitana em seu devido lugar.


Carlos Francisco Theodoro M. Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.

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