DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
A homenagem prestada pelo Departamento de Ciência Política da USP a Gildo Marçal Brandão foi emocionante. À altura do personagem.
Centenas de pessoas se aglomeraram no anfiteatro da História, na tarde do dia 19 de março, para recordar o colega, amigo e companheiro. A banca que o examinaria no concurso de Professor Titular estava presente e pela palavra de Gabriel Cohn, seu porta-voz, tornou público o que todos esperavam: “Entende esta comissão que, por sobrados méritos, cabe a Gildo Marçal a condição de professor titular da USP, e que, doravante, toda referência a esse nosso muitíssimo prezado e saudoso colega deverá ser como titular, que ele aqui passa a ser, por méritos substantivos ainda quando não por designação formal”.
Na ocasião, ao lado de outros, fiz um pequeno depoimento, que reproduzo abaixo.
Não sabemos bem de que modo nascem e crescem as amizades.
Sabemos que partem de pequenas e sucessivas aproximações, afinidades e contrastes que se atraem. Depois, ganham vida própria. Um belo dia, certas pessoas se convertem em parceiras do destino de outras. Incorporam-se à experiência delas.
São famosas as duplas, ou trios, ou quartetos, de amigos que se completam, se complementam e se negam a vida inteira.
Amizades também são feitas de silêncios, hiatos, distâncias, crises, brigas e esquecimentos. São humanas, dinâmicas, contraditórias, imperfeitas. Carregamos muitas culpas por falhas ou desatenções nesse terreno.
Há amigos de diferentes tipos, gêneros e graus. Amigos de parte da vida e amigos da vida inteira.
A homenagem prestada pelo Departamento de Ciência Política da USP a Gildo Marçal Brandão foi emocionante. À altura do personagem.
Centenas de pessoas se aglomeraram no anfiteatro da História, na tarde do dia 19 de março, para recordar o colega, amigo e companheiro. A banca que o examinaria no concurso de Professor Titular estava presente e pela palavra de Gabriel Cohn, seu porta-voz, tornou público o que todos esperavam: “Entende esta comissão que, por sobrados méritos, cabe a Gildo Marçal a condição de professor titular da USP, e que, doravante, toda referência a esse nosso muitíssimo prezado e saudoso colega deverá ser como titular, que ele aqui passa a ser, por méritos substantivos ainda quando não por designação formal”.
Na ocasião, ao lado de outros, fiz um pequeno depoimento, que reproduzo abaixo.
Não sabemos bem de que modo nascem e crescem as amizades.
Sabemos que partem de pequenas e sucessivas aproximações, afinidades e contrastes que se atraem. Depois, ganham vida própria. Um belo dia, certas pessoas se convertem em parceiras do destino de outras. Incorporam-se à experiência delas.
São famosas as duplas, ou trios, ou quartetos, de amigos que se completam, se complementam e se negam a vida inteira.
Amizades também são feitas de silêncios, hiatos, distâncias, crises, brigas e esquecimentos. São humanas, dinâmicas, contraditórias, imperfeitas. Carregamos muitas culpas por falhas ou desatenções nesse terreno.
Há amigos de diferentes tipos, gêneros e graus. Amigos de parte da vida e amigos da vida inteira.
Alguns que colam em nossa trajetória e com ela se confundem, e amigos que a acompanham mas não se envolvem. Há amigos e conhecidos. Todos nos causam sentimentos de afeição, ternura ou simpatia, sua presença ou lembrança nos agradam, ainda que possam também nos irritar em um ou outro momento. Muitos se tornam tão presentes e entranhados em nossa marcha que muitas vezes nem percebemos direito que eles existem, como se fossem uma paisagem especial ou um dado da natureza. Esquecemos algumas pequenas cortesias e certos gestos mais prosaicos de afeto e gentileza, por exemplo.
Tive a sorte e a felicidade de ter amigos desse tipo especial. Gildo Marçal Bezerra Brandão, professor do Departamento de Ciência Política da USP, foi um deles, especialíssimo. Éramos tão amigos e fizemos tantas coisas em conjunto — coisas que se misturaram umas nas outras — que me sinto estranho ao tentar homenageá-lo nesse momento.
Gildo foi um intelectual e um militante da grande política que nunca torceu o nariz para a pequena política.
Houve uma década em nosso relacionamento que certamente valeu a pena ter vivido. Creio que Gildo pensava do mesmo modo, tantas foram as vezes que conversamos a respeito.
Foi a década entre 1974 e 1983.
Nós nos conhecemos na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, na Rua General Jardim, Vila Buarque, centro da cidade. Dois jovens recém-diplomados, de esquerda. Gildo vindo do nordeste, com a cuia, uma mala cheia de livros e muitas ideias na cabeça. Era formado em filosofia, admirador de Hegel e do Padre Henrique de Lima Vaz. Eu acabara de me bacharelar em Ciências Sociais e estava aberto a todas as influências. Queria ser marxista, como ele.
Queríamos ambos ser comunistas.
Depois de alguns anos de muitas bebedeiras e conversas — como bebemos naqueles anos! —, participamos juntos da criação em 1976-1977 da revista Temas de Ciências Humanas, patrocinada pela editora de Raul Mateos Castell. Era um projeto ambicioso: organizar um espaço para a intervenção teórica dos marxistas, em plena ditadura. O conselho editorial era composto por nós dois, mais José Chasin e Nelson Werneck Sodré, com Raul Mateos onipresente.
Mas a revista tinha uma alma e um motor. Talvez Gildo fosse a alma e eu, o motor.
Fazíamos de tudo, da redação aos contatos, à divulgação e à agitação. Publicamos coisas importantes, e acredito que a revista representou algo de relevante naquele contexto.
Houve algum sectarismo nela, também, certo distanciamento presunçoso em relação à política. Durante os primeiros anos, para nós, a frente de batalha era metodológica, filosófica. A unidade não se fazia na política, mas na teoria, ou melhor, no terreno doutrinário.
Havia uma questão subjacente: o partido comunista. Ele não estava na revista, mas de certo modo fazia sentir sua presença. Era uma espécie de referência para nós. O que fazer para ajudá-lo a resistir, a sobreviver, a voltar a ter atuação na política nacional? Acreditávamos que ao menos parte daquele movimento dependia do alcance de uma teoria social competente, rigorosa, capaz de fazer frente às teorizações “apolíticas” e “acadêmicas” que circulavam então, e cujo centro gerador achávamos que estava na USP.
A partir do seu quinto número — que publica em separata um artigo de Marcelo Gato, então deputado e sindicalista vinculado ao PCB — a revista começa a se abrir para a política. Gildo teve papel decisivo nisso, imprimiu um ritmo firme, impulsionou a revista para a frente democrática que então se constituía e crescia.
Pagamos certo preço por essa inflexão. Temas aproximou-se da vida partidária e não teve como escapar da luta interna que atravessou o PCB por volta de 1980. Sobreviveu até 1981.
Dez belos números. Em seus anos finais, porém, eu e Gildo já não estávamos mais tão presentes.
Tive a sorte e a felicidade de ter amigos desse tipo especial. Gildo Marçal Bezerra Brandão, professor do Departamento de Ciência Política da USP, foi um deles, especialíssimo. Éramos tão amigos e fizemos tantas coisas em conjunto — coisas que se misturaram umas nas outras — que me sinto estranho ao tentar homenageá-lo nesse momento.
Gildo foi um intelectual e um militante da grande política que nunca torceu o nariz para a pequena política.
Houve uma década em nosso relacionamento que certamente valeu a pena ter vivido. Creio que Gildo pensava do mesmo modo, tantas foram as vezes que conversamos a respeito.
Foi a década entre 1974 e 1983.
Nós nos conhecemos na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, na Rua General Jardim, Vila Buarque, centro da cidade. Dois jovens recém-diplomados, de esquerda. Gildo vindo do nordeste, com a cuia, uma mala cheia de livros e muitas ideias na cabeça. Era formado em filosofia, admirador de Hegel e do Padre Henrique de Lima Vaz. Eu acabara de me bacharelar em Ciências Sociais e estava aberto a todas as influências. Queria ser marxista, como ele.
Queríamos ambos ser comunistas.
Depois de alguns anos de muitas bebedeiras e conversas — como bebemos naqueles anos! —, participamos juntos da criação em 1976-1977 da revista Temas de Ciências Humanas, patrocinada pela editora de Raul Mateos Castell. Era um projeto ambicioso: organizar um espaço para a intervenção teórica dos marxistas, em plena ditadura. O conselho editorial era composto por nós dois, mais José Chasin e Nelson Werneck Sodré, com Raul Mateos onipresente.
Mas a revista tinha uma alma e um motor. Talvez Gildo fosse a alma e eu, o motor.
Fazíamos de tudo, da redação aos contatos, à divulgação e à agitação. Publicamos coisas importantes, e acredito que a revista representou algo de relevante naquele contexto.
Houve algum sectarismo nela, também, certo distanciamento presunçoso em relação à política. Durante os primeiros anos, para nós, a frente de batalha era metodológica, filosófica. A unidade não se fazia na política, mas na teoria, ou melhor, no terreno doutrinário.
Havia uma questão subjacente: o partido comunista. Ele não estava na revista, mas de certo modo fazia sentir sua presença. Era uma espécie de referência para nós. O que fazer para ajudá-lo a resistir, a sobreviver, a voltar a ter atuação na política nacional? Acreditávamos que ao menos parte daquele movimento dependia do alcance de uma teoria social competente, rigorosa, capaz de fazer frente às teorizações “apolíticas” e “acadêmicas” que circulavam então, e cujo centro gerador achávamos que estava na USP.
A partir do seu quinto número — que publica em separata um artigo de Marcelo Gato, então deputado e sindicalista vinculado ao PCB — a revista começa a se abrir para a política. Gildo teve papel decisivo nisso, imprimiu um ritmo firme, impulsionou a revista para a frente democrática que então se constituía e crescia.
Pagamos certo preço por essa inflexão. Temas aproximou-se da vida partidária e não teve como escapar da luta interna que atravessou o PCB por volta de 1980. Sobreviveu até 1981.
Dez belos números. Em seus anos finais, porém, eu e Gildo já não estávamos mais tão presentes.
Fomos fazer outras coisas.
Outras coisas não, uma só coisa, absorvente: o jornal Voz da Unidade, que teve em Gildo um de seus organizadores e seu primeiro editor-chefe, entre 1980 e 1981.
A possibilidade de fazer um jornal comunista explícito, legalizado, foi uma experiência que ninguém esquece. Para o bem e para o mal. Não foi com certeza uma experiência doce e tranquila. Houve muita briga, muita tensão, rupturas e divergências. Mas o saldo foi positivo, valeu por uma década inteira de formação política e intelectual.
Quando Gildo saiu da chefia, eu o substituí. Não estávamos propriamente com as mesmas posições. Ficamos um tempo com as relações esfriadas, deixamos de nos frequentar. Mais um ano e eu também saí do jornal, que em boa medida passou para o controle estrito das direções do PCB.
A Voz da Unidade foi uma tentativa de oxigenar o universo comunista brasileiro. Não é o caso de fazer o balanço da experiência aqui, mas diria que parte do programa que tínhamos para o jornal foi alcançada. Muitos jovens comunistas fizeram a cabeça lendo e distribuindo o jornal. Mas o comunismo brasileiro como um todo não se oxigenou, não passou para outro patamar cultural, não melhorou sua performance organizacional, teórica e política. Perdeu-se nas entranhas e nos desdobramentos da redemocratização.
O que se seguiu depois é o que nos reúne aqui hoje. Gildo perambulou como free-lancer e em 1989 ingressou como professor no DCP da USP. Tornou-se um scholar, um pesquisador, uma referência em sua área de trabalho. Nossa amizade se refez e se ampliou, ficou consolidada, virou história.
Gildo percorreu um périplo rico, que o engrandeceu e o satisfez. Nunca se trancafiou em torres de marfim, não deixou de olhar para a política cotidiana, a pequena política, a que move as pessoas em seu dia a dia. Viveu a vida intensa e generosamente.
Perdeu algumas batalhas, mas nenhuma guerra.
Outras coisas não, uma só coisa, absorvente: o jornal Voz da Unidade, que teve em Gildo um de seus organizadores e seu primeiro editor-chefe, entre 1980 e 1981.
A possibilidade de fazer um jornal comunista explícito, legalizado, foi uma experiência que ninguém esquece. Para o bem e para o mal. Não foi com certeza uma experiência doce e tranquila. Houve muita briga, muita tensão, rupturas e divergências. Mas o saldo foi positivo, valeu por uma década inteira de formação política e intelectual.
Quando Gildo saiu da chefia, eu o substituí. Não estávamos propriamente com as mesmas posições. Ficamos um tempo com as relações esfriadas, deixamos de nos frequentar. Mais um ano e eu também saí do jornal, que em boa medida passou para o controle estrito das direções do PCB.
A Voz da Unidade foi uma tentativa de oxigenar o universo comunista brasileiro. Não é o caso de fazer o balanço da experiência aqui, mas diria que parte do programa que tínhamos para o jornal foi alcançada. Muitos jovens comunistas fizeram a cabeça lendo e distribuindo o jornal. Mas o comunismo brasileiro como um todo não se oxigenou, não passou para outro patamar cultural, não melhorou sua performance organizacional, teórica e política. Perdeu-se nas entranhas e nos desdobramentos da redemocratização.
O que se seguiu depois é o que nos reúne aqui hoje. Gildo perambulou como free-lancer e em 1989 ingressou como professor no DCP da USP. Tornou-se um scholar, um pesquisador, uma referência em sua área de trabalho. Nossa amizade se refez e se ampliou, ficou consolidada, virou história.
Gildo percorreu um périplo rico, que o engrandeceu e o satisfez. Nunca se trancafiou em torres de marfim, não deixou de olhar para a política cotidiana, a pequena política, a que move as pessoas em seu dia a dia. Viveu a vida intensa e generosamente.
Perdeu algumas batalhas, mas nenhuma guerra.
Gilvan, então você conheceu o José Chasin? Tenho 25 anos, li os textos dele e fiquei bastante impressionado. Como ele era pessoalmente?
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