quinta-feira, 13 de maio de 2010

Anistia, bandidos e heróis:: Fábio Wanderley Reis

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A recente deliberação do STF sobre a Lei da Anistia ensejou que se retomasse - de novo - a discussão dos problemas envolvidos. A lei remete à própria refundação democrática do país após longa ditadura, e não admira que os problemas sejam muitos.

É grande a diferença de perspectivas com que o assunto é tratado nos meios de comunicação, de clara afinidade com os enfrentamentos que levaram à ditadura mesma ou que ela produziu. Na iracunda "blogosfera", há até quem descreva a iniciativa de reexaminar na Justiça o significado real da lei como tentativa de transformar "no tapetão" a derrota na luta armada em vitória - o que, equiparando a Justiça ao fraudulento "tapetão" das disputas esportivas, legitima e faz prevalecer moralmente o vale-tudo da violência em que as regras se tornam irrelevantes. De outro lado, há os que se apegam à noção de "crime político", em que o cidadão que tem na cabeça certa ideia que ele presume permitir organizar melhor a sociedade e o Estado ficaria autorizado, junto com os muitos ou poucos que venham a compartilhá-la, a recorrer àquele mesmo vale-tudo e à violência contra os demais sem expor-se à punição do criminoso "comum".

Naturalmente, é preciso realismo em assuntos políticos, e a aspiração de chegar a construir uma aparelhagem judicial a um tempo eficiente e isenta não impede que a recomendação de realismo se aplique também a ela. Pondo de lado problemas mais antigos de nossa Justiça, ou o ativismo legislativo com frequência inconsistente que tem exibido em tempos recentes (sem falar das cobranças que caberia fazer quanto à timidez de sua atuação durante a própria ditadura), o debate de agora tem permitido apontar com força a precariedade de um dos supostos invocados na decisão contra a inconstitucionalidade da Lei da Anistia, o de que teria havido negociação ampla a respeito entre civis e militares. Pois ela foi, na verdade, uma outorga dos ditadores militares, fortemente condicionada pela definição que faziam dos seus próprios interesses e dos de sua corporação e pelo poder que controlavam mesmo no Congresso.

Fica a questão de como situar-se diante de constatações como essa e de sua relevância no equacionamento do problema geral. Os estudos sobre as transições à democracia na América Latina e em outras partes destacavam com insistência, anos atrás, a necessidade de, com um realismo consciente das assimetrias envolvidas, acomodar os interesses da corporação militar como condição de que as transições viessem a ser de fato possíveis. E cabe sustentar que esse esforço de realismo tem de ser levado à avaliação até do trabalho de elaboração constitucional: ainda que a constituição que dele resulte possa incluir anseios passíveis de formulação consensual, ela não pode deixar de ser a expressão adequada de compromissos em que se incorporam desigualdades reais de poder - sob pena de, como muitas vezes na história, a constituição se inviabilizar como instrumento de enquadramento institucional efetivo do jogo político cotidiano.

A posição mais inconformada com a interpretação que prevaleceu no STF tende a salientar o perdão à figura execrável do torturador que a interpretação conteria. Mas é notável que essa posição seja desatenta ao fato de que o torturador era pau mandado num sistema que os que aderem a ela reconhecem eles mesmos, como todo mundo, ter estado centrado no poder dos ditadores. Assim, a posição acaba compartilhando, de certa forma, a hipocrisia que se pode apontar na famosa manifestação de Pedro Aleixo, que, opondo-se ao AI-5 mas evitando enfrentar efetivamente o poder dos ditadores e aceitando conviver com o dispositivo autoritário, declarava que o motivo de preocupação eram os abusos e arbitrariedades que viriam não do presidente da República, mas do guarda da esquina. Não tendo havido qualquer empenho de levar ao banco dos réus os chefes maiores da ditadura, já agora mortos ou velhos, caberia caçar os sabujos?

Melhor aderir, de novo com realismo, à perspectiva que Paulo Brossard esboçou em texto que circulou há algum tempo: não se trata, com a anistia, de fazer justiça, mas de pacificar - ainda que cumpra reconhecer, sem dúvida, que os fatos desse período negro de nossa história devem ser desvendados e trazidos ao conhecimento de todos. Mas há algo quanto ao contexto factual relevante que tende a ser silenciado ou distorcido: uma cultura de violência que se difundia havia algum tempo e que fazia que muitos de nós, romanticamente atraídos por ideias marxistas e pela Revolução Cubana, ou mesmo por impulsos de inspiração diretamente religiosa, admitíssemos, sim, em certo nevoeiro mental, a ação violenta com vistas a objetivos políticos supostamente nobres. "Os adversários do regime que pegaram em armas", na expressão de jornalistas envolvidos no debate corrente, não é descrição apta daquilo com que a feia ditadura se confrontou. E é preciso ser exigente e cuidadoso ao procurar os heróis do período, à parte o alvo fácil dos bandidos torturadores.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UFMG. Escreve mensalmente às quintas-feiras

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