domingo, 9 de maio de 2010

Avanços e retrocessos :: Alberto Dines

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Atrasada cerca de 30 mil anos, a manchete estava na primeira página dos jornais desta sexta: "Homo sapiens transou com neandertais".

Nenhuma novidade e, no entanto, sensacional: as espécies, mesmo condenadas à extinção, não desaparecem subitamente, continuam acasalando e tentando sobreviver. A novidade é que pesquisadores liderados pelo sueco Svante Pääbo sequenciaram os genomas de restos de homens oriundos da Croácia e comprovaram algo que mataria de raiva Hitler, Gobineau e todas as facções racistas dos quatro cantos do mundo: a humanidade, além de constituir uma única raça, é fruto de, pelo menos, duas espécies.

Temos a consciência do homo sapiens e os instintos dos neandertais, criamos utopias e as enterramos com barbáries (para usar a dualidade proposta pelo cineasta Silvio Tendler com o seu admirável documentário). Concebemos Deus e o profanamos com brutalidades pagãs, produzimos leis para regular a convivência e simultaneamente forjamos os artifícios para burlá-las, inventamos admiráveis mundos novos com máquinas que nos permitem dominar a natureza e, simultaneamente, estamos acabando com ela.

Ao longo dos últimos 500 anos montamos um sofisticadíssimo sistema de trocas de produtos e valores, mas, por um estúpido erro de digitação (alguém escreveu bilhões em lugar de milhões), o sistema desabou na última quinta produzindo um minicrash bursátil.

Nada disso é surpresa, surpresa é que ainda não paramos para refletir sobre esta combinação embutida em nosso DNA. Ainda não apareceu um perplexo (ou curioso) como Isaac Newton que, em vez de perguntar-se por que razão as maçãs só caem em direção do chão, seja capaz de indagar os motivos da nossa incapacidade para perceber o quanto somos universais e ambíguos – animais e espirituais, sutis e bestiais, solitários e massificados.

Trinta mil anos depois, equipados com componentes genéticos tão diferenciados e ricos parecemos crianças que gostam das gangorras mas não conseguem divisá-las à sua volta. Acreditar que a debacle financeira de 2008 seria um episódio facilmente superado e reparado é uma das fanfarronices que o Financial Times identificou em países emergentes.

A debacle foi ligeiramente corrigida numa ponta – a Rua do Muro, em Nova Iorque – mas está incendiando a gloriosa Grécia e pode tomar conta do Velho Mundo. Para acabar com as guerras a sábia Europa derrubou fronteiras, unificou moedas e agora não sabe o que fazer com tantos acordos e tantas aproximações.

A tragédia grega que estamos acompanhando é econômica, mas também política: a Guerra Fria não começou em Berlim em 1948 mas em 1944, em seguida a libertação do país por tropas inglesas. Os Anos de Chumbo na Grécia produziram a ditadura militar (1967-1973) e grupos armados de esquerda que só foram extintos em 2003.

Os três mortos no confronto de Atenas na última semana resultaram de um incêndio provocado por um delirante grupo anarquista que não aceitava o programa de ajuste fiscal proposto pelo governo. A clássica separação entre gregos e troianos é uma metáfora fratricida que resiste à passagem do tempo, nada a ver com as divergências sobre a dívida pública. Talvez um remanescente das espécies que nos compõem e ainda não se ajustaram.

Foi a herança non-sapiens a responsável pela derrubada do Muro de Berlim, a multiplicação de bezerros de ouro e o desbragado culto aos mercados? Terá sido ela o responsável pela revolução tecnológica que fez da China a única beneficiária da nova prosperidade? Ou foi o homo sapiens o inspirador da fórmula mineira para a política inglesa atenuando confrontos e impondo o sistema de coalizões tal como sucedeu na Alemanha?

Não sabemos para onde vamos, em compensação já começamos a perceber quem somos.

» Alberto Dines é jornalista

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