segunda-feira, 24 de maio de 2010

Para sociólogo, Brasil ainda vive um abismo social

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Jessé Souza afirma que Bolsa Família não consegue incluir mais pobres e resolver questão da desigualdade

Especialista é autor de "A Ralé Brasileira", em que estuda parcela da população que vive como "subgente"

Uirá Machado

SÃO PAULO - Na contramão dos estudos que apontam melhora da distribuição de renda no Brasil, o sociólogo Jessé Souza afirma que o país ainda vive uma "desigualdade abissal" em sua sociedade.

Coordenador do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, Souza lançou recentemente o livro "A Ralé Brasileira", em que estuda as características dessa "parcela da população que vive como subgente".

A seguir, trechos da entrevista concedida por Souza.

Folha - A proporção de brasileiros vivendo abaixo da linha da miséria caiu nos últimos anos. Em seu último livro, o sr. diz ser falsa a tese de que a desigualdade brasileira está desaparecendo. Por quê?

Jessé Souza - Esses índices mostram apenas que a pobreza absoluta diminuiu. Mas a desigualdade é um conceito relacional.O Brasil é uma das sociedades complexas mais desiguais do planeta. Entre 30% e 40% de sua população tem inserção precária no mercado e na esfera pública.Somos uma sociedade altamente conservadora, que aceita conviver com parcela significativa da população vivendo como "subgente".Essa classe social, que chamamos provocativamente de "ralé", é a mão de obra barata para as classes média e alta que podem -contando com o exército de empregadas, motoboys, porteiros, carregadores, babás e prostitutas- se dedicar às ocupações rentáveis e com alto retorno em prestígio.É isso que chamo de "desigualdade abissal" como nosso problema central.

Qual sua avaliação sobre o Bolsa Família?

O programa Bolsa Família tem extraordinário impacto social, econômico e político, com investimento público relativamente muito baixo. É incrível que não se tenha pensado nisso antes. Mais incrível ainda que exista gente contra.Por outro lado, o Bolsa Família não tem condições, sozinho, de reverter o quadro de desigualdade e "incluir" e "redimir" a "ralé".Esse é um desafio de toda a sociedade, e não apenas do Estado. É claro que houve avanços nas duas últimas décadas, mas mudança social é muito mais do que condições econômicas favoráveis.

O senhor tem argumentado que não é possível limitar a discussão de classe à questão da renda e que é necessária uma nova compreensão das classes sociais.

A redução das classes sociais ao seu substrato econômico implica perceber apenas os aspectos materiais, como dinheiro, e "esquecer" a transmissão de valores imateriais, como as formas de agir no mundo.E são esses valores imateriais que constituem os indivíduos como indivíduos de classe, com comportamentos típicos incutidos desde a mais tenra infância.Como regra, as virtudes são todas do "espírito", como a inteligência. Os vícios são ligados ao "corpo". As classes superiores "incorporam" as virtudes espirituais, e as inferiores, as virtudes ambíguas do corpo.As virtudes do espírito recebem bons salários, prestígio e reconhecimento social. As classes do "corpo" tendem a ser animalizadas, podendo ser usadas e até mortas por policiais sem que ninguém se comova com isso.

E o senhor afirma que mesmo a educação é insuficiente?

É claro que a educação é um fator fundamental. O problema é que a competição social não começa na escola.Sem considerar que crianças de classes diversas já chegam à escola como vencedoras ou perdedoras, o que teremos é uma escola que só vai oficializar o engodo do mérito caído do céu de uns e legitimar, com a autoridade do Estado e a anuência da sociedade, o estigma de outros.

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