domingo, 13 de junho de 2010

Crônica da bola global:: Alberto Dines

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

“Deus é esférico" escreveu o inigualável Armando Nogueira, "O mundo é uma bola" entoa a legião de sucessores. A pelota começou a rolar num gramado de Montevidéu no gelado julho de 1930 e ninguém poderia imaginar que oito décadas e 19 Copas depois teria o status de rainha e protagonista da maior festa desportiva-popular do planeta.

O Brasil ficou em sexto lugar, Uruguai e Argentina campeões – não houve choro, nem tragédia, o superespetáculo ainda não fora montado, as emoções não eram orquestradas, fatos corriam soltos, a imprensa apenas os acompanhava.

O crash de Wall Street estava longe de completar o seu círculo de desastres, pressentia-se que a Quinta-Feira Negra de 24 de outubro de 1929 não se resumiria à debacle financeira. Por isso, Franklin Delano Roosevelt iniciava a cruzada em benefício dos Homens Esquecidos, Forgotten Men, as milhões de vítimas da Depressão. O Partido Operário Nacional-Socialista do agitador Adolf Hitler ganhava todas as eleições na Alemanha, na Itália o ex-socialista e agora fascista Benito Mussolini também prometia glórias às massas de desempregados, na União Soviética, o ditador Joseph Stalin acionava nova onda de expurgos para livrar-se dos antigos camaradas e impor a coletivização das propriedades rurais, a faminta Espanha, cansada de reis e coroas, queria uma república, a China queria unir-se e deixou-se seduzir pelo nacionalista Chiang-Kai-Schek que tentava esmagar os caudilhos regionais e a guerrilha bolchevique, o Mahatma Gandhi obtinha na Índia as primeiras vitórias contra o Império Britânico graças à política de não violência.

E no Brasil, como agora, fervia a tensão eleitoral: os tenentes, os intelectuais e a classe média urbana recusavam a gangorra oligárquica do café com leite (a alternância Minas-São Paulo) e entregavam-se à retórica dos gaúchos Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha e Flores da Cunha que logo depois amarrariam os seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro.

Mussolini conseguiu sediar em Roma a segunda Copa (1934) e Hitler ganhou as Olimpíadas de 1936 para exibirem as respectivas façanhas. Afim de compensar a exibição dos totalitarismos de direita, a França socialista pleiteou e conseguiu sediar a terceira Copa (1938), a última da Década Infame: a Segunda Guerra Mundial começou no ano seguinte e os Mundiais de 1942 e 1946 foram cancelados.

Esta Copa na África do Sul oferece como brinde a mais recente edição do Mapa-Múndi, mas ao realizar o primeiro Mundial na então remotíssima América do Sul a Fifa também fez uma arrojada aposta geopolítica. O sul do Novo Mundo era em 1930 um apêndice da Europa, extensão da jangada ibérica, bastião do catolicismo, paraíso riquíssimo, razoavelmente pacífico – menos guerreiro do que o Velho Mundo e aparentemente assentado em matéria étnica (não se imaginava o preço).

Teoricamente descolonizado, palco de sangrentas disputas religiosas e tribais, desmatado, faminto, enfermo, depauperado, corrupto, inculto, assaltado por caciques locais e internacionais, o Continente Ancestral é a vitrine de uma humanidade desperdiçada. A África do Sul é a exceção mas não é ainda uma nação, é um homem - Nelson Mandela, quintessência da conciliação, rei-filósofo, sábio.

Em 1930, Stefan Zweig planejava visitar a Argentina e o Brasil – de zepelim. Só chegou aqui em 1936, não viu futebol, imaginou uma sociedade sossegada e logo prometeu que escreveria um livro sobre o país que tão bem o recebeu. "Brasil, País do Futuro" saiu cinco anos depois, o escritor matou-se em seguida num protesto contra a guerra.

A Copa deu a volta ao mundo em 80 anos. Tudo mudado, tudo igual, ou tudo disfarçado? A bola rola, ela sabe das coisas.


» Alberto Dines é jornalista

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