terça-feira, 8 de junho de 2010

A miséria já teve uma “função social” :: Arnaldo Jabor

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Falar da miséria nos alivia porque, para nós, os bacanas, a miséria é apenas um problema existencial. Muitos artistas e intelectuais que falam na miséria como tema de livro ou filme, ou políticos que usam miséria como curral eleitoral, ganham dinheiro ou votos com a miséria dos outros. Ou seja, a miséria dá lucro.

Na verdade, para entendermos o horror que nos envolve, temos de analisar os que “não” são miseráveis, a burguesia, as classes médias, a estrutura do País, a formação torta do Estado.
Quem quiser fazer uma tese ou ficção sobre o atraso nacional tem de estudar os “formadores” da miséria – os séculos de oligarquias e patrimonialismo. Um estudo psicológico sobre alguns de nossos principais lideres políticos explicaria mais o País do que cem volumes economicistas. Nós fazemos parte da miséria brasileira. Em nós, e não nos morros e periferias, está o segredo, ou melhor, a explicação para a ignorância e o desabrigo de nosso povo.

A miséria de nossa formação não atingiu apenas os escravos libertos, os sub empregados, os analfabetos. A miséria atingiu a todos nós. Não na blindagem de nossos carros apavorados, mas na blindagem de nossos corações contra o lado de fora da vida. Não basta sofrermos com o “absurdo” da miséria. Ela é uma construção minuciosa feita por um sistema complexo. A miséria não é absurda, ela é uma produção.

Há alguns anos, a miséria era vista com vagos sentimentos caridosos. Ela era até idílica, nas “favelas dos meus amores”. Tolerávamos tristemente a miséria, desde que ela ficasse longe, quieta, sem interferir na santa paz de nosso escândalo. A miséria tinha quase uma... “função social”.

Contra nossa vontade, hoje sabemos que a miséria se entranha em nosso egoísmo, na busca maníaca de felicidade e prazer, esquecendo a existência do “outro” – este ser longínquo e desagradável. Pouquíssimos de nós pensam como o imperador filósofo Marco Aurélio: “O que é bom para a abelha tem de ser bom para a colmeia”.

Além disso, a miséria não está apenas naqueles que se lixam para ela, mas também nos que se acham seus “proprietários”, que a consideram seu latifúndio ideológico.

Existe a política da miséria dentro da miséria de nossa política. Transformar a miséria em bandeira, sem entender o conjunto que nos inclui, usar a miséria para uma simplificação oportunista de “ricos e pobres”, usar a miséria como um divisor de águas para a complexidade de nossos problemas é uma atitude miserável e resulta nos vexames a que temos assistido neste governo, que tem o alívio hipócrita de ser “contra” ela – isso justificou roubalheiras, crimes e mentiras, legitimou a invasão do Estado pelos “amigos” do povo, que fazem sucesso junto aos ignorantes que adulam na mídia da política virtual. Os pelegos sempre se disfarçaram de pobres.

A miséria está nos “sanguessugas”, está nas emendas espertas ao orçamento, está na sordidez do sistema eleitoral, está na falsa compaixão dos populistas, está nas caras cínicas, torpes, “lombrosianas” dos ladrões congressistas , está na lei arcaica e sem reformas, está na atitude olímpica e gelada de juristas impassíveis, está nos garotinhos na rua e nos garotinhos da política.

Mas, o tempo passou e a miséria cresceu – a espuma suja na champanha do progresso. Com o avanço da indústria de armas, das drogas, da internet, a miséria foi tocada pela evolução do capitalismo e começou a se modernizar. A violência é, de certa sinistra forma, um “upgrading” na miséria, antes tão dócil. A violência nos pegou de surpresa, com velhas armas. Ninguém sabe o que fazer. Antes, os governantes oscilavam entre a repressão sangrenta, entre a queima de favelas ou a construção de guetos. Mas hoje, a miséria é grande demais para ser erradicada. Somos miseráveis porque poderíamos ter um País muito melhor e não sabemos fazê-lo. A miséria habita nosso egoísmo, nossa cegueira proposital em não ver o mal e a dor dos desvalidos.

É miserável nossa fome de consumo supérfluo, é miserável nossa angústia por pequenos problemas, nossas neuroses de mínimas causas, é miserável o que pagamos a empregados frágeis, é miserável nossa ideia de posse no amor e no sexo. Somos miseráveis porque até os ricos poderiam lucrar com a justiça social, mas eles só pensam a curto prazo, somos miseráveis na alma, em nossa amarga alegria, em nossa ignorância política, em terrores noturnos, em síndromes de pânico, em noites vazias nos bares ameaçados, nos perigos das esquinas, em amores despedaçados, a miséria está no esforço para esquecê-la, no narcisismo deslavado que aumenta entre as celebridades, na ridícula euforia das sacanagens e nas liberdades irrelevantes.

A miséria está até na moda – vejam este texto de um catálogo “fashion”: “Use uma calça bacana, toda desgastada, bata na calça com martelo, dê uma ralada no asfalto, ou esfregue a calça com lixa, ou por fim, atropele seu jeans, passe por cima dele com o carro (blindado?). A moda pede peças puídas, como ficam depois de um ataque das traças ou baratas. E se você tem algo a dizer sobre a vida, diga com sua camiseta, nas estampas com frases no peito...”

Só que antes, só falava de miséria quem não era miserável, só falava em “fome” quem comia bem. Agora, os miseráveis nos olham e nos criticam.

Hoje, a miséria desfila nas ruas ameaçadoramente, de sandália, bermudas e corpo nu. Não se esconde pelos cantos mendigos. Nossas elites desatentas estão mais ligadas e percebem aos poucos que nós é que temos de nos reformar. Não tem mais jeito, a miséria tem de ser integrada a nossas vidas. Temos de conviver com ela, pois também somos miseráveis.

E mais: os miseráveis não esperam nada de nós ou dos governos. Estão indo à luta. Não resolveremos nada. Eles é que vão fazer isso. A miséria está nos modernizando.

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