segunda-feira, 14 de junho de 2010

O efeito Marina:: Luiz Werneck Vianna

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Na sucessão presidencial que se avizinha temos conhecido apenas dois tempos: o do passado e o do presente, pois o do futuro, a valer a retórica dominante, que não parece temer a ira dos deuses, deve ser contínuo a este que temos aí, sujeito, é claro, a aperfeiçoamentos. No presente já se poderia contar com a solução feliz de impasses históricos que antes dramatizavam a política brasileira: o mundo agrário, um velho celeiro de conflitos, estaria domesticado pela emergência do agronegócio e da difusão das relações capitalistas no campo; e, por toda parte, a lógica dos conflitos se confinaria ao terreno da simples disputa por interesses. Dessa forma, combater as desigualdades sociais não mais importaria em trazer à cena o tema da exploração, ressalvadas as questões-limite como a do trabalho escravo. No mais, essa seria uma questão a ser remetida para o terreno das políticas públicas.

A própria história, herança maldita com que deveríamos romper, passa a ser reinterpretada sob outros filtros, concedendo-se vida nova a instituições e valores comprometidos com fins e práticas autoritárias, e assim apronta-se mais uma floração para o sindicalismo corporativo, que, ao longo das nossas décadas de modernização autoritária, tutelou a vida associativa dos trabalhadores. A questão nacional, que mobilizou a sociedade nos anos 1950/60, perde capacidade de universalização, apropriada como está pelo Estado e pela fração do empresariado a ele vinculado. Nessa versão, tanto o Estado Novo de 1937 como o regime militar de 1964-1985 passam a ser percebidos acriticamente, pelo tipo de reflexão panglossiana que ora nos conduz, como momentos necessários para a realização apoteótica dos fins de grandeza a que o país estaria, desde sempre, predestinado.

Com esses tempos empatados - o de um presente que não quer ir além de uma reiteração em roupa nova do passado -, o tempo do futuro, afinal, fez sua aparição nessa sucessão presidencial, embora ainda de modo tímido e reverencial com o discurso dominante, por meio da fala com que a senadora Marina Silva lançou-se como candidata pelo PV. Com palavras que introduziram um alento de ar fresco nesse início de campanha, foi ao cerne do problema atual da democracia brasileira, sob risco iminente de converter a cidadania dos seus seres subalternos em uma vasta clientela: "Saímos da cesta básica, fomos para um bom programa de transferência de renda. Agora vamos para um bom programa, que mobilize a sociedade brasileira. Junto com essa política terá que vir também um novo tipo de Estado. Sair da ideia de um Estado provedor, que faz as coisas para as pessoas, para um Estado mobilizador, que faz as coisas com as pessoas. Não é fazer para os pobres, mas com os pobres."

Tal novo tipo de Estado deve resultar da sua ampliação para admitir ao estatuto da plena cidadania - direitos civis, políticos e sociais - àqueles até então destituídos dela, em um movimento de baixo para cima, a partir da auto-organização da vida social, e não do modo assimétrico como vem ocorrendo. Para esse fim, ele deve se revestir de um papel pedagógico que tenha como norte estimular a emergência de lideranças extraídas da vida popular sem estarem sujeitas aos mecanismos da clientela e da cooptação. Assumir a mobilização como missão, na forma, aliás, do que tentou o segundo Vargas dos anos 1950-54, quando em nome de suas lutas em favor da questão nacional, abdicou das formas repressivas de controle sobre as associações dos trabalhadores, por ele mesmo impostas à época do Estado Novo, a fim de encontrar nelas sustentação política.

Essa lúcida intervenção da candidata Marina não merece ser vista meramente da perspectiva do cálculo eleitoral, mas do seu valor intrínseco. Marina, com seus escassos recursos de campanha e exíguo tempo de televisão no horário gratuito da campanha eleitoral, não parece, fora mudanças de todo imprevistas, se constituir em uma candidata competitiva. Importa muito, no caso, fazer do seu diagnóstico e da política que dele decorre um ponto de relevo estratégico na agenda dos debates presidenciais, instalando a política no centro da matéria da sucessão, deixando para trás as obscuras e bizantinas discussões de como se deve operar, segundo o cânon da tecnocracia, a macroeconomia brasileira, inclusive porque nem o mais experimentado navegador domina por antecipação qual o regime dos ventos de amanhã de manhã.

Outra importante contribuição importante da candidatura Marina para a campanha eleitoral reside no seu viés internacionalista, implicitamente contido em suas posições em defesa do meio ambiente, bem público de todos os homens. Pois, nessa hora de pensar o futuro do país, já não é sem tempo por sob a luz da crítica algumas tendências em curso que o concebem em chave grão-burguesa, fechado em sua lógica interna e animado por uma ideologiade grandeza nacional.


Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iuperj e ex-presidente da Anpocs

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