sexta-feira, 23 de julho de 2010

Anistia e reparação :: Paulo Abrão

DEU EM O GLOBO

Os direitos humanos importam em responsabilidades para os Estados que os violam. Uma delas é o dever de instituir programas de reparação material e simbólica, individual e coletiva, para as vítimas.

As reparações materiais podem incluir restituições de direitos, compensações financeiras e disponibilização de serviços de educação, saúde e moradia, entre outros. As reparações simbólicas incluem desculpas oficiais do Estado, mudança de nome de espaços públicos, estabelecimento de dias de comemoração e a construção de museus, parques e locais de memória. O relevante é que elas estejam inseridas no projeto político de uma sociedade que investe na diminuição dos efeitos transgeracionais do legado de violência do regime autoritário, estabelece um processo pedagógico de (re)conhecimento das violações e valoriza o direito à resistência dos povos contra a opressão. É por tudo isso que a ONU e o direito comparado são unânimes em afirmar que o dever de reparação é política de Estado, e não de governo.

O caso brasileiro não é diferente. Com implantação gradativa, sua gênese ocorre no processo constituinte, que garantiu o direito à reparação na Carta de 1988.

Coube ao governo FHC implantar as comissões de reparação. A primeira, limitada ao reconhecimento da responsabilidade do Estado por mortes e desaparecimentos (Lei 9.140/95). A segunda, por todos os atos de exceção, incluindo as torturas, prisões arbitrárias, demissões e transferências por razões políticas, sequestros, compelimento à clandestinidade e ao exílio, banimentos, expurgos estudantis e monitoramentos ilícitos (Lei 10.559/02). Para a fixação das indenizações, a Constituição utilizou-se de um critério compatível com a prática persecutória mais recorrente: a imposição de perdas de vínculos laborais, impulsionadas quando a luta contra a ditadura uniuse aos movimentos grevistas, gerando a derrocada final do autoritarismo. Ocorre que o nosso programa de reparação não se limita à dimensão econômica. As leis prevêem também direitos como a contagem de tempo para fins de aposentadoria, a garantia de retorno a curso em escola pública, a reintegração ao trabalho, a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos e outros. Pode-se discordar dos critérios e direitos definidos pelo legislador democrático, mas não se pode querer ignorá-los, sob pena de retrocedermos historicamente a um tempo onde vigia a vontade dos homens e não a vontade das leis.

A partir disso, o governo Lula inovou nesta política de Estado agregando uma gama de mecanismos de reparação simbólica: implantou o projeto Direito à Memória e à Verdade, com o registro oficial das mortes e desaparecimentos, e as Caravanas da Anistia, com julgamentos públicos da história e pedidos oficiais de desculpas às vítimas. Criou ainda o projeto Memórias Reveladas, com a disponibilização dos arquivos do período e propôs os projetos de lei da Comissão da Verdade, da nova lei de acesso à informação, além de preparar o Memorial da Anistia, para que reparação e memória sigam integradas.

A anistia é um ato político onde reparação, verdade e justiça são indissociáveis.

No Brasil o processo de reparação tem sido o eixo estruturante da agenda ainda pendente da transição política. O processo de reparação tem possibilitado a revelação da verdade histórica, o acesso aos documentos e testemunhos dos perseguidos políticos e a realização dos debates públicos sobre o tema. É imperativo avançar com a localização e abertura dos arquivos das Forças Armadas; com a proteção judicial das vítimas e o julgamento dos crimes cometidos pelo Estado; com uma reforma ampla dos órgãos de segurança; com a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos, entre outras tantas medidas já dadas pelo exemplo dos países que viveram experiências similares à nossa e pelo que está disposto nos tratados internacionais sobre a matéria.

Cabe ao Brasil debruçar-se sobre os arquivos das vítimas junto à Comissão de Anistia, não para querer rever os critérios criados pelo legislador diante do incomensurável custo-ditadura, mas sim para encontrar-se com os milhares de relatos das atrocidades impostas aos anônimos que os meios de comunicação ainda não se interessaram em propalar. E, a partir daí, buscar os subsídios cruciais para impulsionar uma agenda vasta de reformas necessárias para a diminuição da violência policial e militar, para uma mais efetiva proteção aos direitos e liberdades fundamentais e para a difusão e defesa dos valores democráticos.


Paulo Abrão é advogado, professor universitário e presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

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