quinta-feira, 15 de julho de 2010

Fora dos trilhos – Editorial /Folha de S. Paulo


Com pretensa sutileza, o presidente Lula mais uma vez transforma evento oficial em ato de campanha a favor da candidata Dilma Rousseff

Conhece-se bem o caso daqueles zagueiros especializados na canelada e no carrinho que, depois de derrubar o adversário sem a menor cerimônia, inclinam-se docemente sobre a vítima, pedindo desculpas e oferecendo-se para levantá-la do chão.

O hábito da gentileza cínica, que confere algum colorido de comédia aos mais tediosos jogos de futebol, vem há um bom tempo sendo transplantado para o campo da política pelo presidente Lula. Poucas vezes de forma tão deslavada, todavia, quanto nestes últimos dias.

Na terça-feira, durante o lançamento do edital para a construção do trem-bala, novamente aproveitou para fazer campanha em prol da candidata do PT à sua sucessão, Dilma Rousseff.

No dia seguinte, retratou-se pela flagrante violação do código eleitoral: "Eu não tenho por hábito desafiar nem o mais humilde dos brasileiros", disse o presidente, "quanto mais desafiar uma legislação que nós mesmos criamos no Congresso Nacional".

Para quem ainda duvidasse, Lula arrematou o lance com nova manifestação de obediência, um pouco como o jogador faltoso que ouve, com as mãos atrás das costas, as reprimendas do juiz: "Se eu cometi um erro político, eu peço desculpas".

A farsa da atitude, todavia, revela-se por inteiro. Antes de citar o nome da candidata, Lula deu mostras de saber exatamente o que estava fazendo. "Eu nem poderia falar o nome dela porque tem um processo eleitoral", disse o presidente, "mas a história a gente também não pode esconder por causa da eleição".

Assim, por uma questão de "justiça", concluiu: "A verdade é que a companheira Dilma Rousseff assumiu a responsabilidade de fazer esse TAV [o trem-bala], e foi ela que cuidou...

Não podemos negar isso".

Não se trata de negar, a priori, a capacidade técnica da candidata, muito menos de aceitar acriticamente a tese da "propaganda eleitoral antecipada", que motivou várias das multas aplicadas pelo TSE ao presidente.

Era irrealista e burocrático, por certo, estabelecer um prazo oficial para o início da campanha, e esperar que candidatos deste ou daquele partido se abstivessem de movimentações eleitorais antes do tempo. Acostumando-se a infringir essa regra, o presidente Lula foi além, todavia.

Caracteriza-se plenamente o uso da administração pública, com sua máquina de projetos, anúncios, siglas e promessas, para a promoção de um interesse partidário. Lula já não se contenta em armar inaugurações para as célebres "obras do PAC", ainda que incompletas; o mero lançamento de um edital de concorrência, para uma obra como o trem-bala, transforma-se em ocasião eleitoreira.

A esta altura, vai-se tornando constrangedora a dificuldade da candidata Dilma Rousseff em alcançar autonomia eleitoral, dependendo ainda de ter seu nome carregado por Lula em toda cerimônia de governo. Inegavelmente um grande "puxador" de votos, o presidente atropela mais uma vez a lei -com a sutileza de um zagueiro, ou, se quisermos, de uma locomotiva fora dos trilhos.

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