segunda-feira, 19 de julho de 2010

Um bismarquismo tardio :: Luiz Werneck Vianna

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Há jornais que mantém a tradição de informar diariamente aos seus leitores o que, a critério de um editor especializado, teriam sido as notícias mais relevantes há 50 anos. Em um deles, na edição do dia 16 de julho, quando essa coluna está sendo escrita, a matéria dedicada a esse tema informou que o então senador John Kennedy tinha acabado de aceitar sua candidatura à Presidência do seu país. Nessa ocasião, Kennedy pronunciou a declaração, tornada célebre, apelando para que seu povo viesse a se orgulhar do que ele iria lhe pedir e não a lhe oferecer, afirmando que seus ideais de governo "falarão mais alto ao orgulho nacional do que ao bolso". Cada tempo com seus costumes, estamos, nos anos 1960, distantes anos-luz do marqueteiro de Bill Clinton, que explicava sarcasticamente o sucesso da sua campanha com a expressão "é a economia, estúpido!", com a qual aludia claramente ao bolso dos seus cidadãos.

Nos Estados Unidos, como aqui, era época de sucessão presidencial, e o mesmo jornal informava que o ministro da Guerra de Juscelino Kubitschek, o marechal Odilio Denys, afirmara que o "Exército, sem ficar indiferente aos assuntos importantes da vida do país, não pretende abandonar a sua posição de neutralidade em face da sucessão presidencial e absolutamente alheio à política". Aparentemente prosaica, a fala do ministro significava o oposto do seu enunciado, uma vez que, na verdade, era uma declaração de forte teor político, em uma circunstância em que um dos candidatos à Presidência era outro militar, o marechal Lott, candidatura que o ministro não endossaria. Indicava também que o poder moderador da República brasileira, como o Exército veio a ser chamado pela moderna historiografia, acompanhava com atenção o desenrolar dos acontecimentos. Constata-se, assim, que estamos, em 2010, com a ausência de manifestações públicas de dirigentes das Forças Armadas da política brasileira sobre o processo de sucessão em curso, distantes anos-luz dos anos 1950/60.


Edições anteriores desse tipo de matéria jornalística deixam patente que o elemento agonístico, tão forte na política em meados do século passado, está inteiramente ausente na atual competição eleitoral. Personagens e programas que naquelas décadas polarizavam a sociedade, ameaçando-a de divisão - que, aliás, virá, poucos anos depois - em golpes, contragolpes e sinais de revolução, se encontram, hoje, fora de cena, inclusive a corporação militar. E a outrora dramática questão agrária, em torno da qual se tentou gestar uma aliança operário-camponesa, agora se acha convertida em objeto de uma simples controvérsia parlamentar, envolvendo apenas - a sociedade mera espectadora - os setores diretamente interessados, tais como as representações do agronegócio, da agricultura familiar e das ONGs ambientalistas, aliás, três segmentos presentes na composição do governo.

Não pode haver lugar para a polarização quando os três principais candidatos se apresentam como portadores de um mesmo projeto, qual seja, o de garantir continuidade ao longo ciclo que, iniciado com o governo FHC, encontrou prolongamento no governo Lula. Esse ciclo é o do aprofundamento do capitalismo e da consolidação da ordem burguesa no país sob a égide das instituições da democracia política, rompendo com a nossa história de modernização sob regimes autoritários.

Em razão dessa nova qualidade, tal processo se encontra aberto às demandas por direitos e reivindicações substantivas da sociedade e da sua vida associativa, e tem assumido, sobretudo no governo Lula, fortes compromissos com políticas públicas orientadas para a democratização social. Na verdade, o que os três candidatos estariam disputando é qual deles, na avaliação do eleitor, teria as melhores credenciais para levar à frente esse ciclo, confiando a seus marqueteiros a tarefa de singularizar o personagem que devem encarnar.

Essa perspectiva, contudo, é a do espelho retrovisor. Qual o projeto de futuro para a nossa sociedade, quais as formas de relação devem presidir seus vínculos com o seu Estado, como perseguir os fins de realização de uma república democrática, fechando caminho à reprodução de um cidadão-cliente que se dissemina entre nós? Será um destino desejável para o país nos convertermos de presas em predadores, para usar as palavras do tema-título do excelente artigo de Rodrigo Marcilio, advogado especialista em mercado de capitais, publicado em Valor de 12/07/2010?

Segundo o artigo, "as multinacionais brasileiras têm encontrado um ambiente bastante propício para seus recentes movimentos de expansão além das fronteiras nacionais", nos últimos anos, realizando importantes aquisições de companhias estrangeiras, invertendo a lógica em que elas é que eram compradas. A Vale, a Camargo Corrêa, a Votorantim, entre outras, comporiam o elenco dessas multinacionais brasileiras, financiadas por incentivos estatais, BNDES à frente, política que se reforça com a criação recente de uma subsidiária desse banco em Londres, voltada para o financiamento realizado diretamente no exterior.

Nesse sentido, avizinhamo-nos, ainda sem ideologia, de um bismarquismo tardio, para o qual contamos, sem dúvida, com a nossa pesada tradição de modernização autoritária que nos vem das eras de Vargas e a do regime militar. Essa fusão entre economia e política em nome de objetivos grão-burgueses, com o sindicalismo crescentemente vinculado ao Estado, não é nada promissora para a democracia brasileira. A agenda dos candidatos à sucessão presidencial comprometidos com ela está equivocada: não se trata apenas de disputar, com os maneirismos do marketing político, o modo de continuar um ciclo feliz, mas de impedir o nascimento de um que ameace as conquistas democráticas já realizadas e a serem aperfeiçoadas.


Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iuperj e ex-presidente da Anpocs. Escreve às segundas-feiras

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