quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Desdobramentos naturais da crise:: Yoshiaki Nakano

DEU NO VALOR ECONÔMICO

As crises financeiras não são processos imprevisíveis, fenômeno tipo "cisne negro", para usar expressão na moda. Ciclos econômicos e crises financeiras resultam da operação normal da moderna economia de mercado capitalista, como demonstraram Keynes e Minsky. Existe uma fragilidade financeira intrínseca ao sistema capitalista de forma que a própria estabilidade gera prosperidade, euforia e crise financeira. Os estudiosos da história mostram que cada crise financeira é produto de uma série de acidentes históricos específicos, mas a estrutura e as fases do processo, que culmina em crise, são sempre as mesmas e são conhecidas. Estas foram analisadas por Kindleberger na sua obra magistral: "Manias, Pânicos e Crashes".

Foi por isso que muitos estudiosos previram a atual crise. E em relação aos desdobramentos pós-crise? Existe uma sequência lógica e previsível de fases para sair da crise? A minha resposta é sim, mas a previsão é bem mais complexa porque as intervenções do governo são variadas e os desdobramentos dependem dessas medidas.

A rigor, a crise financeira, na sua última fase de pânico e crash, na visão de muitos, se não houver intervenção do governo, seria a sua própria cura. Nesta, ativos problemáticos seriam expurgados, pois todos correm para a liquidez (moeda) ou títulos do tesouro, desencadeando uma deflação nos preços dos ativos financeiros, e destruindo as dívidas excessivas geradas nas fases de euforia. De fato, uma fase logicamente necessária para sair da crise financeira é encontrar uma forma de reduzir as dívidas para recompor a confiança no sistema financeiro, e a economia voltar a operar normalmente.

A principal ação do governo nos Estados Unidos e na Europa foi de socorrer, em grande escala, o sistema financeiro, comprando dívidas podres ou ativos tóxicos, transferindo-os para o balanço do banco central e do tesouro nacional. As taxas de juros foram reduzidas para praticamente zero e liquidez à vontade, sob o argumento de evitar um colapso total do sistema financeiro e uma nova grande depressão. Isto daria tempo para os agentes privados endividados ajustarem os seus balanços, desalavancando, vendendo ativos com risco, e aumentando capital próprio etc. Mas, por outro lado, esta mesma política está mascarando os reais problemas, sustentando devedores e bancos que realmente são insolventes. Daí a grande incerteza que reina ainda no mercado.

A solução adotada pelos governos de comprar dívidas problemáticas do setor privado apenas deslocou a crise financeira para um novo estágio, criando o problema de endividamento excessivo dos governos. Em alguns países como Grécia, Portugal e Irlanda, já excessivamente endividados, com dificuldade de financiar os seus déficits públicos e de rolar as dívidas, demandaram novas operações de socorro de outros países na área do euro e FMI, transferindo estas dívidas, principalmente, para o BCE e tesouros nacionais de países com menores dificuldades como a Alemanha e França. Assim, o problema de redução das dívidas problemáticas está se convertendo gradualmente em como reduzir a dívida pública. De qualquer forma, a saída da crise exige destruição de dívidas, e existem quatro formas de fazê-la: 1) calote; 2) inflação; 3) tributação confiscatória de ativos financeiros; e 4) ajuste fiscal gradual com corte de despesas e aumento de impostos. Se afastarmos neste momento as alternativas 1 e 3, restam a inflação e o ajuste fiscal.

No horizonte de curto e médio prazos, a inflação está afastada. Com a taxa de desemprego muito elevada, redução no custo unitário de trabalho, capacidade ociosa elevada, além da forte competição dos países emergentes no mercado de manufaturados, existe, sim, um risco crescente de deflação. Isto já está no horizonte e nas expectativas de grande número de investidores do mercado financeiro.

Dessa forma, a redução lenta e gradual das dívidas parece ser a saída que será adotada tanto nos Estados Unidos, como na Europa, e esse processo poderá levar mais de uma década, a exemplo do que aconteceu no Japão. A probabilidade de um novo mergulho recessivo aumentou com as medidas de ajuste fiscal adotadas na Europa e a crescente movimentação política do "Tea Party" nos Estados Unidos, que dificultará a renovação do pacote de injeção fiscal de US$ 800 bilhões. Se não for renovado, uma nova crise não pode ser descartada no próximo ano. Os indicadores já apontam uma desaceleração da recuperação econômica neste segundo semestre. Por isso, o presidente do Federal Reserve (Fed) já fala em nova rodada de política monetária expansionista (seriam novas compras de dívidas problemáticas, empréstimos diretos, taxa negativa de juros) para estimular a economia americana. Mas não há razão, no momento, para acreditar que essa nova rodada venha a trazer recuperação econômica fazendo com que os consumidores, empresas ou bancos voltem a se endividar mais, pois ao contrário, estão ajustando seus balanços, desalavancando, desfazendo de ativos problemáticos e buscando aumentar seu capital; que os bancos queiram ampliar oferta de crédito, mas demanda de crédito do setor privado está em queda; ou que os preços dos ativos financeiros voltem a aumentar gerando efeito riqueza positivo também é pouco provável.


Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.

(Publicado ontem, 10/8/2010)

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