segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Leia entrevista com o historiador britânico Tony Judt

DEU EM O GLOBO / PROSA & VERSO

Leia abaixo a entrevista com o historiador britânico Tony Judt, morto aos 62 anos na último sexta-feira, publicado no Prosa & Verso de 22 de maio. Na conversa com Guilherme Freitas, o pensador - que foi diagnosticado em 2008 com esclerose lateral amiotrófica, a doença neurológica degenerativa que o matou - disse ter encontrado na atividade intelectual incessante a melhor reação ao fato de estar confinado ao que definiu, num ensaio, como "minha prisão corpórea":

— A doença não mudou minhas opiniões, mas agora tenho um senso de urgência mais forte em minha atividade intelectual. Tudo está mais difícil para mim, então sou obrigado a selecionar melhor aquilo em que me engajo — declarou.

O senhor escreve que, embora o século XX tenha sido "o século dos intelectuais", eles praticamente sumiram da esfera pública nas últimas décadas. Como explicar o declínio da figura do intelectual público?

TONY JUDT: Boa parte da resposta está nas transformações dos meios de comunicação. Acho também que a grande era da alfabetização em massa — quando muitas pessoas puderam ler pela primeira vez e ganharam acesso a textos e autores pelos quais tinham grande respeito social — ficou para trás. Hoje somos todos letrados, mas não ligamos muito para literatura. A autoridade das antigas gerações de intelectuais vinha precisamente do fato de serem romancistas, filósofos, ou mesmo jornalistas. Hoje, o intelectual tende a ser um acadêmico ou um especialista, o que, ironicamente, reduz seu alcance. E, claro, a cultura das "sound bites" (declarações curtas e impactantes de especialistas e autoridades ouvidos pela imprensa) faz com que o tipo de autoridade associada ao intelectual, ancorada em argumentos e num amplo reconhecimento cultural, esteja em baixa. Não acho que haverá grandes mudanças nesse cenário. A maioria dos "intelectuais" de hoje não se compara a seus predecessores. Ironicamente, a reflexão política inteligente está se retirando para as margens.

Em "Reflexões sobre um século esquecido", o senhor argumenta que um grupo de intelectuais "sem raízes", como Edward Said, Hannah Arendt e Albert Camus, formou a "República das Letras" do século XX. O que distingue este grupo de intelectuais? Como podem servir de exemplo para nós?

JUDT: Todos eles estavam enraizados na alta cultura de um país, comunidade ou idioma, mas se consideravam parte de um diálogo necessariamente transnacional, cujos pontos de referência eram os mesmos quer você vivesse no Brasil ou na Estônia. Hoje, o típico "intelectual global" não tem raízes e, portanto, o que ele diz sobre questões globais carece de fundamentação. Também acho que a autoconfiança intelectual das pessoas que você cita — o fato de elas assumirem que ser inteligente e escrever bem constituía a base para sua influência e a justificativa de seu trabalho — não está presente em seus sucessores. Se tivéssemos que tirar um exemplo de todas essas pessoas, seria esse: intelectuais têm que ir contra a corrente em suas próprias comunidades (seja nacional, religiosa, ideológica etc). Intelectuais que apenas fornecem argumentos em favor de um determinado grupo desempenham outro tipo de papel.

Em entrevista recente, o senhor disse que é preciso "redescobrir a linguagem da divergência"? Como defini-la?

JUDT: Não tenho um modelo. Mas seria algo como o que disse antes: exercitar o pensamento independente mesmo sob o risco de desaprovação dentro de sua própria comunidade. E, em política, insistir na validade do embate, da discordância e da divisão, onde existirem. A democracia não pode sobreviver numa dieta de consenso.

O senhor dedica seu livro mais recente ("Ill fares the land") "aos jovens" que parecem estar "confusos" sobre como agir contra o que acreditam estar errado no mundo. Que tipo de engajamento político é possível para os jovens hoje?

JUDT: Não quis escrever um livro de receitas para os cozinheiros de amanhã. No entanto, acredito que precisamos reaprender o que significa agir politicamente. Movimentos de base que agem pontualmente em nome de uma só causa quase sempre dão em nada — ou desaparecem após o sucesso da causa ou são apropriados por outros interesses e se perdem. Precisamos de um sistema através do qual possamos expressar visões universais sobre como somos governados e como gastamos nossas reservas: para isso precisamos examinar, de uma perspectiva crítica e ética, a forma como fazemos isso. O primeiro desafio é aprender mais uma vez a discordar com confiança daquilo que nos desagrada, em vez de dar as costas à política por desgosto ou desespero. E precisamos falar sobre "nós", não apenas sobre "eu".

Voltando a "Reflexões...", o senhor diz que tendemos a ver a História apenas como triunfos que devem ser recordados ou erros que não podem ser repetidos. Há alternativas a isso? Como lidar com a História, em especial com os eventos mais turbulentos do século XX?

JUDT: Não há uma resposta simples. A melhor forma de lidar com a História é entendê-la — o que significa contar verdades desconfortáveis sobre o passado, mesmo que elas sejam socialmente perturbadoras. Para os democráticos vencedores do século XX, não é fácil reconhecer seus próprios crimes políticos — assim como para eles é difícil reconhecer que o inimigo derrotado era mais popular e até mais bem-sucedido do que gostamos de admitir. Acho que a outra metade da resposta é que temos que lutar duro para distinguir comemorações socialmente úteis e alertas politicamente importantes ("Munique") da verdadeira História. Os primeiros estarão sempre conosco; é a última, em toda sua complexidade, que estará sempre ameaçada. O trabalho do historiador é erguer-se cada vez que alguém diz "Munique" ou "Auschwitz" ou "Vencemos a Guerra Fria" e responder: "Sinto muito, mas é mais complicado que isso e você precisa entender por quê". Numa época de esquecimento instantâneo e falsa memória, o historiador se torna uma commodity rara e valiosa.

Por que o período entre a queda do Muro de Berlim e a invasão do Iraque foi "um tempo perdido", como o senhor diz?

JUDT: Em primeiro lugar, nos primeiros anos esquecemos tudo que já tínhamos feito de correto. Um Plano Marshall para o Leste da Europa e o Cáucaso teria poupado milhões de dólares, vidas e problemas. Além disso, ao tratarmos a Guerra Fria como um simples conflito entre "nós" e "eles" vencido por nós, ficamos cegos para os conflitos que estiveram presentes antes e durante a Guerra Fria e que são a fonte de muitos de nossos problemas atuais. Em terceiro lugar, os anos 1990 teriam sido o momento ideal para repensar os arranjos econômicos internacionais de 1944. Em vez disso, assumimos que o mercado liberal tinha "vencido" e o Estado forte, "perdido": o resultado foi a crise de 2008 e outras por vir.

O senhor argumenta que, embora a noção de Estado do Bem-Estar Social tenha perdido espaço, temos que aprender a reconhecer suas deficiências e, ao mesmo tempo, defender suas funções. Quais devem ser os limites e funções do Estado do Bem-Estar Social hoje?

JUDT: Desconfio que a resposta é óbvia em boa parte da Europa e da América Latina: alguma forma de Estado do Bem-Estar Social é condição necessária para a estabilidade do capitalismo, incluindo serviços básicos suficientes e igualdade para absorver aqueles que sofrem com as inevitáveis injustiças do mercado. Em outras palavras, o Estado do Bem-Estar Social tem o mesmo papel hoje que em seus primeiros tempos: prevenir os erros que o capitalismo comete instintivamente quando é deixado sem regulação. Assim, a única questão é o alcance do Estado e o equilíbrio entre seus gastos em serviços e em bens públicos. Aqui, é preciso ser pragmático. Em países como a Alemanha, até a centro-direita reconhece a necessidade de redes de Bem-Estar Social, fornecimento público, serviços básicos e um alto nível de provisão social a partir de taxação direta. Em outros países, como os EUA, nem a centro-esquerda consegue ver isso. O verdadeiro perigo do gasto estatal excessivo — corrupção, ineficiência etc — tem que ser medido contra os riscos igualmente reais de colapso social na ausência de uma noção clara do coletivo e de sua responsabilidade. A política tem que ser a arena onde debatemos esses temas, em vez de ficarmos gritando "Estado!" ou "Mercado!" um na cara do outro.

A recente crise econômica pode forçar uma revisão do modelo liberal de Estado?

JUDT:
Temo que não. Mas em combinação com futuras crises parecidas (estamos no meio de uma na Grécia) e decepções com os excessos da globalização, é possível que o pêndulo volte a uma visão do Estado como algo não necessariamente ruim em princípio. Lembre-se que há apenas 30 anos essa era opinião corrente entre a maioria dos políticos e economistas, e não só em social-democracias.

O marxismo enfrenta certo descrédito desde a queda do Muro de Berlim, mas o senhor sugere que temos muito a aprender com "o admirável poder das ideias marxistas". Qual é esse poder e como o marxismo pode ser relevante hoje?

JUDT: Eu faria uma distinção entre o poder do pensamento marxista — parte de uma influência mais ampla de ideias e ideologias do período 1870-1970 — e o estrago causado por partidos e Estados marxistas. Foi este último que fez com que o primeiro ficasse muito desacreditado. Não desejo um retorno dos velhos debates ideológicos e dogmáticos, nem das crenças irrefletidas sobre classe e capitalismo. Mas seria bem-vinda uma disposição para reabrir questões sobre conflito social, interesse de classe, divisão econômica e deficiências inerentes ao capitalismo desregulado. Não acho que para fazer isso precisemos ser marxistas, mas os melhores marxistas eram muito bons nisso e seria ótimo para estimular o debate.

O senhor se disse decepcionado com Obama, alegando que ele estaria mais interessado em buscar consensos do que reformas. Como vê os acontecimentos recentes do governo Obama, especialmente a aprovação da reforma da saúde?

JUDT: A reforma da saúde quase fracassou. No fim, foi a vitória de um acordo que muitos de seus defensores não aprovaram, mas que aceitaram por falta de alternativa melhor. Temo que Obama tire a lição errada disso e continue buscando consensos e acordos. Mas em certos temas cruciais — Oriente Médio, guerras, gastos públicos em infraestrutura de longo prazo, reforma bancária — não há acordos e o consenso é difícil. (O primeiro-ministro israelense Benjamin) Netanyahu não quer um acordo, nem a direita republicana. Às vezes você tem que lutar pelo que acredita. Se Obama não entender isso, vai continuar a nos desapontar.

Como o "estilo de vida europeu", cujos benefícios sociais o senhor aponta muitas vezes, foi afetado pela crise? Acredita que a União Europeia tem lidado bem com a questão da Grécia?

JUDT:
A UE tem tratado quase toda crise com total incompetência. Mas tem sorte: assim como os EUA, a UE é muito rica, mas, ao contrário dos EUA, teve o bom senso de aprender com as catástrofes da História. Então, mesmo sendo uma bagunça política e institucional, suas instituições sociais, salvaguardas econômicas e autoridades transnacionais conseguiram criar e preservar um padrão de vida, um nível de segurança e um senso de interesses comuns que o resto do mundo só pode invejar. Mas acho que eles podem arruinar tudo isso — precisamente porque os líderes europeus de hoje têm pouca noção da importância histórica da construção de uma casa institucional comum naquele que já foi o continente mais violento do mundo. Quanto à Grécia, o problema é, em parte, que uma moeda sem Estado tem poucas perspectivas a longo prazo. E os ganhos políticos de permitir que Grécia ou Portugal (ou o Leste da Europa) aderissem à UE e ao euro ofuscaram o planejamento sobre o que fazer numa eventual crise como esta.

Quando jovem, o senhor tomou parte no que mais tarde chamou de "fantasia idealista" da construção do Estado de Israel, mas hoje defende um Estado binacional como a solução para o conflito Israel-Palestina. Em que ponto se deu conta da natureza dessa "fantasia"? Estamos mais próximos hoje de um Estado binacional?

JUDT: Acho que enxerguei as falhas morais e práticas do sionismo bem cedo. Mas o salto para o reconhecimento de que um Estado unicamente judeu era o problema e não a solução foi mais difícil por causa da minha formação. Suponho que passei a encarar a questão melhor no fim dos anos 1990. Acho que, graças a Netanyahu e seus partidários, a criação de um Estado binacional não é uma hipótese realista, e a criação de dois Estados é cada vez mais uma ilusão. Temo que continuaremos vivendo com esse dilema irresolvido por uma década ou mais. Só os EUA poderiam forçar um avanço por sua influência econômica ou militar — e por razões tanto domésticas quanto externas, isso não vai acontecer.

Como o senhor vê o governo Lula? O que pensa do papel mais proeminente que o Brasil tem buscado no cenário internacional nos últimos anos?

JUDT: Noto que o governo Lula colocou na agenda uma questão — qual deve ser o tamanho do Estado e com que fins? — que a maioria das culturas políticas hoje ignora. No plano internacional, penso que o Brasil foi muito perspicaz ao se aproveitar de uma mudança na hegemonia das potências do pós-Guerra, sem fazer muito barulho sobre seus direitos e reivindicações. Nota-se que, sempre que esses temas são debatidos, a autocracia chinesa, o autoritarismo pós-soviético e a pobreza indiana são evocados como razões para desacreditar o futuro dos "Brics", mas o Brasil sempre escapa ileso! Talvez porque, nessa companhia, o Brasil pareça um futuro bastante respeitável para a comunidade internacional! Não devemos nunca menosprezar o papel da sorte e do senso de oportunidade nas relações internacionais. Ainda assim, o Brasil precisa desses aliados pouco atraentes: mesmo hoje, o país nunca seria suficientemente respeitado por si só — tente acompanhar políticos brasileiros, sem falar em seus colegas sul-americanos, na imprensa europeia e americana...

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