sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Mergulho com FH na obra de Gilberto Freyre

DEU EM O GLOBO

Enviado por André Miranda, Lívia Brandao, Luciana Martinez*, de Paraty

Se o pensamento de Gilberto Freyre se baseou no equilíbrio entre os contrários, a organização da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) escolheu com perfeição o nome responsável por sua conferência de abertura: o sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, conhecido por ser de uma corrente destoante das ideias do grande homenageado desta oitava edição do evento. Numa palestra intitulada "Casa-grande & senzala: um livro perene", sobre a obra seminal de Freyre e com mediação do historiador Luiz Felipe de Alencastro, FHC foi logo tratando de desfazer qualquer insinuação de que sua presença na Flip teria algum cunho político, ao explicar o que o aproxima e o afasta das ideias do sociólogo pernambucano, nascido em 1900 e morto em 1987. O resultado foram aplausos entusiasmados de um auditório quase lotado.

A conferência de FHC começou às 19h20m, com 20 minutos de atraso. Alencastro apresentou o ex-presidente, dizendo que o trataria mais como professor, por ele ter sido "mestre de seu mestre, Roberto Schwarz". FHC, então, agradeceu o convite da Flip:

- Confesso que fiquei surpreso. Meu conhecimento da obra do Gilberto Freyre é relativamente limitado, mas meu interesse é enorme. Mas também não é a primeira vez que sou convidado a falar sobre Freyre. Escrevi o prefácio da edição de 2003 de "Casa-grande & Senzala" - disse.

FHC, então, contou que participou de pesquisas com Florestan Fernandes, na década de 1950, cuja conclusão apontava para uma sociedade brasileira discriminatória, um pensamento justamente contrário ao de Freyre. Na época, segundo o ex-presidente, a pesquisa de Florestan foi considerada uma crítica ao trabalho do autor de "Casa-grande & Senzala".

- Mas a intenção não era questionar os estudos Gilberto Freyre, era dialogar com a sociedade brasileira - afirmou FHC. - Outro ponto divergente era a ideia de que Gilberto Freyre era um ensaísta e não um cientista. Mas ele não fazia apenas ensaios como julgávamos arrogantemente. Hoje percebo que ele tinha um grande conteúdo metodológico e muita preocupação literária.

Para se preparar para a conferência, o ex-presidente explicou que releu no último mês as três principais obras de Freyre - "Casa-grande & senzala", "Sobrados e mucambos" e "Ordem e progresso" -, além de obras analíticas sobre o sociólogo pernambucano. No fim, provocado por Alencastro, FHC afirmou que o verdadeiro contraponto à obra de Freyre foi Sérgio Buarque de Hollanda, um crítico do patriarcalismo defendido pelo homenageado da Flip.

- O último capítulo do "Raízes do Brasil" é o oposto do que diz Gilberto Freyre. Eles partiram da mesma fonte, mas, para Sérgio Buarque, o personalismo foi a raíz da anti-democracia.

Antes do início da conferência, um grupo de uma dúzia de moradores de Paraty se juntou para protestar, com cartazes, contra a presença de FHC na festa. A manifestação foi pacífica, mas o grupo não chegou a cruzar com seu alvo: enquanto eles posavam para fotos e conversavam com jornalistas, o ex-presidente chegou à Tenda dos Autores pela lateral, longe dos olhares dos manifestantes.

- Ele próprio já disse que deveríamos esquecer o que ele escreveu. Então qual seria a razão de ele estar aqui se não for por causa da política? Só pode ter a ver com o ano eleitoral - disse um deles, que preferiu não se identificar.

Houve três momentos da conferência de abertura em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi interpretado por alguns do presentes como alfinetando o governo Lula. Foram três frases, de certa forma gradativas em direção a críticas políticas mais abertas.

1. "Nosso marxismo era um marxismo sério, depois é que houve uma vulgarização do marxismo."

2. "O Gilberto Freyre via a sociedade brasileira como conciliadora. Mas hoje em dia se concilia tanto que eu não sei até que ponto Gilberto Freyre estava errado."

3. "Não existe democracia sem lei. Mas, no Brasil, fazemos o contrário, damos um jeito e quebramos a lei. Sem ritual não há democracia. Mas não quero falar do presente." (e FHC riu)


*Luciana Martinez faz parte do Programa de Estágio Boa Chance, do jornal O GLOBO

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