quinta-feira, 23 de setembro de 2010

As eleições e a Constituição de 1988

DEU EM O GLOBO

João Marcelo E. Maia

Nos debates entre os presidenciáveis, são comuns as discussões em torno da origem dos programas sociais. O Bolsa Família, por exemplo, tem sua paternidade disputada por tucanos e petistas, o mesmo acontecendo com outras políticas públicas direcionadas para as classes populares, em especial aquelas relacionadas ao combate à pobreza e às desigualdades. Esse tipo de debate, absolutamente natural numa campanha em que se pretende convencer o eleitor das virtudes de um candidato, acaba por esconder um fator fundamental para o entendimento dos ganhos sociais no Brasil: a Constituição de 1988 e sua interpretação pelos brasileiros. Essa variável não apenas explica o sucesso de programas desse tipo, mas também evidencia sua relação com a democracia.

A Carta de 88 não criou o Bolsa Família, mas contribuiu para a cultura de direitos em ambiente democrático. O Sistema Único de Saúde foi codificado neste texto, bem como a Previdência universal para os trabalhadores rurais, iniciativas de impacto na vida cotidiana de milhares de brasileiros. Alguns desses projetos foram precedidos por mobilizações da sociedade civil por meio de conferências, encontros e abaixo-assinados. O SUS, por exemplo, foi o resultado de conferências nacionais realizadas na década de 1980, que vinham na esteira de uma luta pela democracia que engajou diversos movimentos sociais na década de 1970. Por mais que a Constituição não tenha contemplado todo esse potencial democratizante, é fato que ela abrigou algo de um ideal participativo.

Ao longo da década de 1990, a criação de novas estratégias de combate à pobreza e à desigualdade esteve na agenda de intelectuais, movimentos sociais, ONGs e demais cidadãos interessados em aprimorar a cultura de direitos garantida pela Constituição e torná-la mais efetiva. Assim, políticas focalizadas como o Bolsa Família, embora também tenham sido inspiradas por órgãos internacionais como o Banco Mundial, devem ser entendidas como o aperfeiçoamento progressivo dessa experiência que articulou democracia e proteção social. Essa combinação entre políticas focalizadas e garantias constitucionais (salário mínimo e previdência) explica a constante queda da desigualdade social no Brasil.

A despeito disso, a Constituição parece o patinho feio do debate político, sendo mencionada apenas para se pregar sua reforma ou emenda, como se ela fosse a principal responsável pelos problemas do país. Ora, se há alguma ameaça real à democracia no país hoje, esta se origina da ausência de garantias para exercício dos direitos no país, problema que aflige principalmente os subalternos da sociedade brasileira. É o caso dos moradores de favelas, que sofrem com a ausência de cidadania plena por conta da violência policial e do controle territorial exercido por facções armadas.

Analisar o lugar da Constituição e de sua interpretação na História do país nos ajuda a entender como os ganhos sociais que vivenciamos se relacionam com nossa democracia e com seus agentes. Entre esses agentes estão certamente os partidos políticos, que embora não sejam protagonistas exclusivos dessa História, nela desempenharam papel relevante. Assim, o debate entre PT e PSDB a respeito dos ganhos sociais no Brasil deve ser entendido como uma disputa pela condução e interpretação da vida democrática nacional, entendendo esta como um horizonte aberto para novas formas de participação e criação institucional. Os brasileiros teriam muito a ganhar caso os partidos não se esquecessem disso.

João Marcelo E. Maia é sociólogo e professor do CPDOC/FGV

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