domingo, 19 de setembro de 2010

O espelho da identificação :: José Arthur Giannotti

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Quando políticos são oferecidos como fazedores ou salvadores, perde-se de vista a feroz disputa entre duas concepções de Estado e democracia
Muito me espanta o grau de despolitização da campanha eleitoral que nos persegue. Os programas, no rádio e na televisão, são montados como se o eleitor visado estivesse confinado numa caixa de Skinner, aquela caixa em que um animal é submetido a estímulos positivos para adquirir comportamentos surpreendentes. Se um candidato aparece numa pesquisa como membro da elite, uma série de programas o mostrará frequentando o povão e, pouco a pouco, sua imagem vai sendo construída de tal modo que o eleitor com ele se identifique.

A diferença essencial - e não é pequena - é que o eleitor está submetido a vários sistemas de estímulos, cada aliança partidária construindo o seu. As últimas campanhas no Brasil têm sido polarizadas entre PSDB e PT, sendo que a atual tem apontado, pelo menos até agora, enorme vantagem para Dilma Rousseff. Se o marketing político tenta antes de tudo fazer com que cada eleitor se identifique com determinado candidato, parece natural que Dilma cresça ao ser identificada com o presidente Lula, extremamente popular.

Isso aponta para enorme diferença entre a democracia contemporânea e formas mais antigas de democracia. Quando a campanha se fazia por meios retóricos, o eleitor era persuadido, sendo obrigado a ponderar argumentos, de sorte que a racionalidade de seu voto dependia dos conhecimentos acumulados a respeito de certas questões e do candidato que as representasse. Obviamente havia processos de identificação, cujos efeitos, contudo, muitas vezes eram barrados.

O eleitor contemporâneo é conduzido a se identificar com um demiurgo capaz de realizar as maiores aspirações de consumo e de status de grande parte da população. O líder é a imagem daquilo que muitos gostariam de ser. Daí o senso comum afirmar que, numa situação econômica extremamente favorável, ser quase impossível um opositor vencer as eleições. Mas a boa situação econômica somente se transforma em votos se for politizada, se valer como aquela situação em que cada um se pense vivendo nela graças ao demiurgo que a criou. Política é mais do que um jogo de perdas e ganhos; também é luta pela vida, onde a morte não sai do horizonte. Essa luta é contida pelo Estado, mas não deixa de infiltrar os conflitos cotidianos. Esse lado normativo e existencial não é captado pela ciência, que, como deve ser, lida com séries de fenômenos homogeneizados; está mais para a mitologia. Ao negar o lado normativo da política, o marketing apresenta o líder como grande fazedor, identificando-o a um empresário bem-sucedido.

São os extremistas que salientam esse aspecto agônico, diferenciador da política. No século 19, tanto a esquerda como a direita privilegiam a luta social-política em vez de se contentarem com a luta pela apropriação dos aparelhos do Estado pela via eleitoral. Para Marx a política se articula a partir da oposição entre capital/trabalho; para Carl Schmitt, teórico do Estado totalitário nacional-socialista, a relação política entre amigos do povo e seus inimigos é anterior à constituição do Estado nacional. Uma democracia verdadeiramente representativa poderia se desenvolver sem esse conflito?

Não deveria ele comandar até mesmo o marketing político a fim de que a eleição se torne realmente política? Ora, tudo indica que as campanhas eleitorais contemporâneas tratam de neutralizar essa luta intestina. Entre nós essa neutralização esconde, de propósito, todo o esforço político desenvolvido pelo presidente Lula em seus oito anos de mandato. Desde o início tratou de dissolver qualquer oposição política marginal que escapasse do binômio PSDB e PT. Incorporou os potenciais opositores a seu governo, bloqueou as diferenças que sempre operaram no interior do PT, dependurou os sindicalistas nos aparelhos de governo, atraiu as organizações da sociedade civil mediante toda sorte de benesses, tentou até mesmo, neste caso sem sucesso retumbante, embriagar a mídia. Mas, se tratou de dissolver as oposições políticas, foi para se colocar acima do Estado, como demiurgo salvador e inovador, situando-se além do jogo político do Legislativo, reduzido a uma conversa de comadres, sempre se colocando acima de qualquer legalidade. O caso inédito de um presidente da República ser multado pelos tribunais de Justiça eleitoral apenas reforçou sua posição de herói fundador, a que todo eleitor pudesse se identificar. Lula "é nóis", não tanto o povo no poder, mas o poder como povo.

Politizando-se a si próprio não deixou, porém, de configurar seu inimigo principal: FHC e sua herança maldita, resumo de todos os fracassos das políticas anteriores a ele. Isso pouco tem a ver com a política efetiva de Fernando Henrique Cardoso real, mas a imagem do inimigo estava constituída.

A oposição deixou que a situação pregasse no governo anterior a etiqueta de liberal. Não salientou os passos dados na reforma do Estado, os esforços de regular um novo federalismo com a Lei da Responsabilidade Fiscal, ignorou o sucesso das privatizações tanto como forma de ampliar serviços como instrumento de luta contra o patrimonialismo, envergonhou-se do Proer, primeiro controle efetivo da rede bancária. Se alianças com a direita foram feitas, no final desse governo seus grandes caciques estavam no chão, enquanto no final do governo Lula encontram-se na ativa e com a perspectiva de se tornarem sócios de um eventual governo "petista".

Como se pudesse esquecer de seu passado, a oposição deixou de pensar a si mesma, antes de tudo de sua atuação enquanto governo de FHC. Não avaliou seus acertos e seus enganos, apenas tratou timidamente de apontar que os programas sociais lulistas tinham raízes anteriores. Queria apenas ganhar vantagens marginais no novo contexto político, sem pensar num projeto de País. E, quando se apresentou como o pós-lulismo, ou como seu gestor mais eficiente, simplesmente preparou sua derrota, na medida em que deixou de se opor a um inimigo ainda que fosse imaginário. Perdeu qualquer inimigo de vista. A própria Dilma Rousseff não é apresentada, pelo marketing político, antes de tudo como a "mulher do Lula"?

Não é porque as oposições deixaram de configurar o inimigo que a política efetiva desapareceu. Está em curso uma luta de morte entre duas concepções de Estado muito diferentes, por conseguinte duas concepções de democracia. A aliança governista entende o Estado como grande fazedor, produtor proprietário dos fundos públicos e de importantes setores do capital produtivo, associando-se a determinados capitalistas eleitos, cooptando sindicatos e órgãos da sociedade civil. Até mesmo a burocracia estatal não deveria ser partidarizada? Já não propõe colar a cada ministro de Estado um alto funcionário do partido de modo a politizar as ações administrativas mais potentes? Não abre assim várias portas para a corrupção? Contra essa mistura do Estado com a sociedade civil-burguesa, a oposição antevê, embora frouxamente, um Estado regulador, baseado na efetiva divisão de poderes, capaz de organizar o funcionamento dos vários mercados, seja dos capitais, seja do trabalho, tornando transparentes as empresas e abrindo os sindicatos para que se tornem representativos, incentivando os órgãos da sociedade civil para que encontrem suas próprias diferenças efetivas. Nada a ver, portanto, com o Estado liberal, que se ausenta dos mercados para se voltar antes de tudo para a defesa dos direitos e das liberdades individuais. Pelo contrário, um Estado forte, demarcando os limites da liberdade dos mercados e do comportamento público dos cidadãos.

Sob a coberta da legislação atual, uma grande reforma política está em curso. Configurados os antagonismos, o novo desenho legal virá depois. Mas a campanha eleitoral continua apresentando os principais candidatos como grandes tocadores de obras. A dissensão dos nanicos apenas indica como estão aquém da sociedade e da política contemporânea, de seus dilemas e de suas potencialidades. Sobram os dois candidatos polares, ocultando na bagagem duas concepções de Estado e de democracia. Não é a partir daí que a escolha deveria ser feita?


* José Arthur Giannotti é professor Emérito da FFLCH/USP e pesquisador do CEBRAP

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