quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A quinta reinvenção de Lula:: Elio Gaspari

DEU EM O GLOBO

Dentro de três meses começará um novo espetáculo político: a reinvenção de Lula. O retirante tornou-se operário, inventou-se como sindicalista, reinventou-se como dirigente político e chegou ao apogeu da metamorfose ambulante como presidente da República.

A partir do ano que vem, precisará reinventar-se. Se a sua candidata prevalecer, será o primeiro presidente que, tendo apontado o sucessor, prosseguiu na vida pública com um projeto político pessoal. Descobrirá que pedestal não tem escada para descida.

Se lhe foi difícil chegar lá em cima, terá trabalho para descer.

Por um breve período passará pela câmara de descompressão de São Bernardo, vendo os jogos do Corinthians, comendo a chuleta do Gigio e jogando conversa fora. Logo, logo, seja qual for o resultado da eleição, será candidato a presidente em 2014. Sem AeroLula, voltando a carregar sua própria mala (como fazia obsessivamente quando viajava ao exterior), reencontrando-se com as maçanetas (porta abre sozinha para os presidentes). Essa é a parte fácil.

A parte difícil será encontrar o ponto de convergência entre o que ele pensa que é e aquilo que realmente passará a ser. Uma das construções está na sua cabeça. A outra, na dos outros.

Nas reinvenções anteriores, Lula superou obstáculos difíceis e até mesmo certezas de que tentava o impossível.

Esse será seu novo espetáculo.

Não terá mais dezenas de jornalistas acompanhando-o. Muito menos cercadinhos para mantê-los à distância.

Durante toda a sua carreira como oposicionista, Lula teve uma relação privilegiada e até mesmo cúmplice com as plateias. Quem ia ouvi-lo estava ao seu lado ou, pelo menos, dispunhase a entendê-lo. Em oito anos de Presidência, habituou-se a uma forma peculiar de diálogo, permitida pelo cargo. Ele monologa, e a contradita vem depois. Na oposição, quando dizia que Napoleão foi à China ou que Oswaldo Cruz descobriu a vacina da febre amarela, dava-se pouca importância ao absurdo. Na Presidência, quando disse isso, não teve resposta imediata de um interlocutor que corrigisse a bobagem.

Na busca de uma agenda internacional, Lula pretende fazer um roadshow com Dilma Rousseff, mas não se sabe o que fará se o eleito for outro. Nosso Guia andará pelo mundo com duas bolas de ferro. A do companheiro Ahmadinejad mostrou seu peso na indelicadeza da delegação israelense ao boicotar o discurso do chanceler Celso Amorim na última Assembleia Geral da ONU. O estrategista que se meteu no rolo do Oriente Médio, apresentando-se como mais um interlocutor na busca do diálogo, mutilou sua capacidade de conversar direito com uma das pontas do problema. A bola de ferro dos camaradas Castro coloca-o na dependência de uma improvável abertura política em Cuba.

Lula sonha com o que chama de uma frente de esquerda. Em 2003, quando entrou no Planalto, essa possibilidade existia, mas o que seria uma frente de esquerda hoje? Que esquerda quer se meter com o Ereniçário, versão decadente do aparelho construído por José Dirceu, que hoje está sub judice no Supremo Tribunal Federal? No jogo de esquerda-direita, o que Nosso Guia conseguiu foi rearticular a direita paleolítica. Como esse bolsão de militância tem tudo, menos votos, Lula tirou partido da fúria de seus adversários.

Daí a chamar de esquerda uma coligação que em São Paulo tem no palhaço Tiririca o puxador de votos de sua legenda para deputado federal, vai boa distância. Nunca é demais lembrar que fenômenos como Enéas e o rinoceronte Cacareco não estavam coligados com outros partidos.

Dá pena pensar na possibilidade de alguns candidatos petistas virem a dever suas cadeiras na Câmara aos votos do deputado Tiririca.

Uma vitória de Dilma Rousseff significará o início da experiência do lulato. Terá que inventar um sistema de mando ao modo Pinheiro Machado: nem tanto que digam que ela faz o que eu digo, nem tão pouco que achem que não me ouve. Pode-se arriscar a previsão do ponto de onde sairá uma faísca num eventual governo de Dilma: dos interesses de bons amigos na Anac e na Infraero.

Em tese, Lula faria o mesmo que fez Fernando Henrique Cardoso. Aluga um belo prédio e vai organizar seminários.

Afinal, acha que fez isso no Instituto da Cidadania. Entre ele e o tucano há enormes diferenças. Um saiu do governo para não mais voltar. Ele, não. Ademais, o príncipe da sociologia é capaz de passar duas horas trancado, lendo, ou ouvindo. Lula não gosta de fazer qualquer das duas coisas por mais de 15 minutos. FH tem fama de vaidoso, mas o Padre Eterno deu-lhe suficiente paciência para abrandar o egocentrismo. Nisso, foi malvado com Nosso Guia e com o pavão, a quem deu aqueles pés medonhos.


Elio Gaspari é jornalista

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