terça-feira, 14 de setembro de 2010

À sombra da tutela do ex-presidente:: Raymundo Costa

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Assim como nunca antes um presidente se envolveu tanto na eleição do sucessor, também não há referência, na história recente, de um presidente governando no Palácio do Planalto à sombra do antecessor popular e carismático que o elegeu. É uma novidade com a qual o país terá de aprender a conviver e que ninguém sabe exatamente aonde vai dar.

Em 2002, Lula agradeceu a "neutralidade" de Fernando Henrique Cardoso nas eleições, e a transição foi elogiada por sua "civilidade". É difícil imaginar a mesma cena, depois das de 3 de outubro, se o tucano José Serra vencer a disputa. Como o mais provável é a vitória de Dilma, a expectativa é em relação à autonomia da criatura em relação ao criador.

Lula diz que não pretende "se meter no cotidiano" de um eventual governo Dilma. "Não existe um tutor", tem repetido o presidente aos aliados, evidentemente preocupado com a repercussão de declarações que fez sobre seu papel na hipótese da eleição da candidata que inventou para disputar a sua sucessão.

Talvez no embalo das pesquisas, que indicam a vitória de Dilma no primeiro turno, Lula fez declarações que diminuem a candidata do PT. Em Petrolina (PE), por exemplo, afirmou que continuará viajando pelo país, depois que encerrar o mandato e se mudar do Palácio do Planalto, para ver o que fez e o que deixou de fazer no governo.

"E, se tiver alguma coisa errada, vou pegar o telefone e ligar para minha presidenta (referindo-se Dilma Rousseff, que o acompanhava) e dizer: "Olha, tem uma coisa errada aqui, pode fazer minha filha porque eu não consegui fazer", disse na região do rio São Francisco. Na mesma viagem, o presidente especificou o que pretende fazer após passar a faixa presidencial a Dilma. "Pode ficar certo que vou virar uma casca de ferida para fazer reforma política. É essa a contribuição que um político tem que dar para o País".

Em um comício de porta de fábrica, em São Bernardo do Campo, Lula também disse o que pensava sobre seu papel, após o 1º de janeiro de 2011: "Eu não serei apenas seu ajudante para fazer coisas melhores pra esse pessoal (os sindicalistas)", afirmou, em ato às portas da Mercedes Benz. "Mas também vou ajudar o pessoal a telefonar (para a presidente Dilma Rousseff)".

As declarações de Lula só aumentaram as dúvidas existentes em relação ao grau de autonomia de um governo chefiado por Dilma. Com sua imensa aprovação e popularidade, Lula seria um corpo com alta densidade gravitacional mesmo no caso de vitória do principal candidato da oposição, o tucano José Serra. Imagine-se com Dilma, uma candidata que Lula criou do nada, nunca pensou em ser presidente da República e está agora prestes a ocupar o cargo político mais importante do país.

Lula avançou por um terreno perigoso. Agora trata de reduzir os danos. Atribui seu discurso recorrente ao calor do momento e da campanha - um comício no Nordeste e um ato de porta de fábrica. Seus aliados dizem que o presidente tem "um enorme bom senso" e sabe muito bem que, depois que sentar na cadeira, Dilma pode até hesitar uma ou duas semanas, mas logo veste a roupa de presidente da República. Esta é a ordem natural das coisas.

Aos aliados, Lula disse que não passa por sua cabeça "governar nas sombras". Longe disso - afirma - será no máximo um "conselheiro político" da presidente nas grandes questões políticas. Confirma que seu projeto será então convencer o PT e os demais partidos da base de sustentação do governo a propor e votar a reforma política, no Congresso. Lula também pretende encampar a tese da criação de uma ampla frente partidária com todos os partidos aliados e não só aqueles situados à esquerda no espectro político.

Ideologicamente, a frente partidária imaginada por Lula é algo nos moldes daquela existente no Uruguai - uma ampla coalizão eleitoral de centro-esquerda que elegeu o presidente Tabaré Vázquez e seu sucessor, José Mujica. Na via inversa: transformar o que é hoje uma aliança eleitoral em aliança política permanente.

A convocação de Lula não será só à esquerda tradicionalmente aliada do PT, como o PCdoB, PSB e PDT. O alistamento será aberto a todos os "que estiverem interessados no processo de mudanças", segundo um interlocutor que discutiu o assunto com o presidente. Inclusive ao PMDB ou setores do partido.

Para o presidente, é evidente que, por se tratar de uma legenda maior que as demais siglas da aliança, o PMDB resista a fazer parte da frente ampla . Mas Lula e seus aliados esconjuram a informação de que ele articula um alinhamento de forças para se contrapor ou simplesmente contrabalançar o poder congressual pemedebista, que deve eleger a maioria no Senado e bancada igual ou ligeiramente menor que a do PT, na Câmara.

Em seus oito anos na Presidência da República, Lula não moveu uma palha pela reforma política. Diz agora que foram esses oito anos que o levaram a compreender que se trata de uma reforma "indispensável". Foram dois mandatos em que teria ficado "peitando" o varejo do Congresso, o toma lá, dá cá de deputados e senadores nas votações de interesse do governo. "É um custo peitar o varejo", diz um aliado do presidente.

Lula vai defender o voto em lista fechada e o financiamento público de campanha como os pilares da reforma do sistema eleitoral. Muitos dos aliados do presidente defendem que deve ser convocada uma constituinte exclusiva para fazer a reforma política. Ele mesmo ainda não indicou a posição que vai adotar. Seja qual for, uma coisa é certa: qualquer movimentação de Lula, fora do governo, terá repercussão dentro do governo e nas alianças congressuais de Dilma. Não há como separar o "cotidiano" do Palácio do Planalto das "grandes questões políticas". Para usar uma frase de uso comum no Congresso: quem pode mais - ou seja, reunir maioria para fazer a reforma política -, pode menos, como influir na nomeação ou demissão de um ministro.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

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