sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma campanha que ensurdece:: Maria Cristina Fernandes

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Nos comícios que tem animado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva custa a falar. Ao ser anunciado, é precedido pela plateia que grita seu nome e canta o "Lula-lá" da campanha de 1989. Quando começa a falar, Lula ainda divide espaço com o barulho da multidão, que silencia aos poucos até ser novamente inflamada.

Num desses comícios, Lula disse que os donos de jornal e revistas não devem ler suas publicações senão se envergonhariam do produto que estão entregando a seus leitores. O argumento pode não estar completamente desprovido de razão, mas a voz rouca dos comícios que frequenta o está ensurdecendo. O presidente também não deve estar assistindo às reprises de seus comícios. Veria que não há do que se orgulhar.

Política é comunicação, teorizou seu antecessor, que ganhou duas eleições sem o dom de se dirigir às massas. Inspirado pela convicção de que não tem rival em palanque, Lula tem sido abandonado por sua proverbial inteligência ao reagir à onda de denúncias em que se afunila a campanha.

Eleitor não passa de mãos nem é joguete de mistificações

É um despautério que o presidente da República suba num palanque e diga que os donos da voz lhe têm ódio. A animosidade é transmitida à sua candidata, que exibiu descontrole e a veia saltada na lateral da testa ao brandir papeis no ar em contestação a uma reportagem. Não é improvável que o rancor já tenha ensurdecido todo seu entorno.

Parece inacreditável que, depois do histórico de batalhas de fatos e versões que o PT já enfrentou em cinco eleições presidenciais, não apareça ninguém para dizer a essa gente que serenidade é um atributo de vencedores. É a uma situação de desvantagem que o eleitor associa o destempero. Ao se colocar na sintonia do descontrole, parece que é a campanha petista e não a oposição que está desesperada. Não deve ser outro o motivo por que Marina e sua inabalável compleição apareçam como a herdeira dos eleitores afugentados do embate tucano-petista.

A campanha de 2006 é pródiga em indícios de que foi a reação de Lula, e não as denúncias em si, que levaram a disputa ao segundo turno. Na comparação das pesquisas o impacto do noticiário negativo hoje parece mais concentrado na classe média escolarizada do que em 2006.

No sempre arriscado prognóstico de planilha, a queda, para ser representativa, precisará atingir a base da pirâmide eleitoral. Há que se considerar, ainda, que Dilma hoje tem uma vantagem muito mais homogênea no eleitorado do que Lula na sua reeleição.

Gente de pesquisa costuma usar a imagem da boca do jacaré para descrever as curvas de intenção de voto de dois candidatos que, ao longo da campanha invertem suas posições. Nesta campanha a boca do jacaré começou a se escancarar entre julho e agosto. O Datafolha foi o último instituto a registrar que a boca se abria e o primeiro a detectar que está se fechando.

A reação destemperada do PT indica que, na sua avaliação, a curva decorre de noticiário que se arvora no papel de polícia, promotor e juiz. Se esse diagnóstico, por mais preciso que seja, insistir em municiar a virulência da reação petista, virá o bote do jacaré.

Não deve ser fácil para Lula, às vésperas de deixar o governo no panteão dos presidentes mais bem avaliados da história, assistir à valoração de teses que põem em dúvida o Estado de Direito, e de analogias estapafúrdias com Hitler, Mussolini e Putin.

Sua liderança nasceu com a redemocratização e cresceu com a liberdade de imprensa. Como presidente, resistiu a conquistar mais um mandato e, com isso, deu uma demonstração mais radical de respeito pelas instituições do que o governo que o precedeu.

Se Lula avalia que o governo e a campanha de sua candidata são injustiçados pela imprensa não é seu papel como presidente da República comprar essa briga em palanque. A militância petista deslocou-se da porta de fábrica para a blogosfera com agressividade suficiente para enfrentar movimentos que reúnem desde os 60 manifestantes do Largo São Francisco até a caserna de pijama.

O destempero com que os petistas se conduzem nessa reta final de campanha é filho do mesmo emocionalismo despolitizante com que a inauguraram. No principal jingle da campanha Lula diz a Dilma que entregará em suas mãos o seu povo. Inconformados pela estabilidade das pesquisas e movidos por paixão parelha, editoriais chegaram a questionar se o povo de Lula é feito de consumidores ou de cidadãos.

O público leitor de jornal equivale a pouco mais de 1% do colégio eleitoral do país. É preferível que a indignação se explique por esse descompasso do que pelo preconceito em relação às convicções democráticas de quem acabou de entrar no mercado de consumo.

O voto sela o contrato entre o eleitor e o eleito. Será tão mais importante para a cidadania quanto melhor se conhecerem as propostas de governo que, a dez dias da eleição, continuam recônditas - por desinteresse dos candidatos e obra e graça do denuncismo.

Num país de plenas liberdades políticas como o Brasil, o eleitor não passa de uma mão para outra nem é joguete de mistificações. Merece uma campanha melhor.


Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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