domingo, 3 de outubro de 2010

Democracia consolidada:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

O Brasil que vai às urnas hoje completou 25 anos de democracia, o mais longo período consecutivo na história política do país. Passou também, nesse período, por testes de consolidação democrática, com duas alternâncias de poder na presidência da República feitas com sucesso, como definido pelo cientista político americano Samuel Huntington, e tendo todos os atores relevantes da cena política aceitado a tese de que o único modelo possível para o país é a democracia, como os cientistas políticos Juan Liz e Alfred Stepan definem um país com democracia consolidada.

Como nossa experiência política é relativamente recente, esses testes foram ultrapassados não sem alguns percalços.

A primeira alternância de poder de um presidente eleito diretamente foi feita de maneira indireta, com o vice-presidente Itamar Franco assumindo o lugar do presidente impedido Fernando Collor, e passando a faixa para seu Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso.

E a aceitação da democracia como única escolha admissível, se por um lado é feita formalmente por todos os atores da cena política, volta e meia é posta em dúvida por tentativas de aprovação de leis autoritárias que colocam em risco a liberdade de expressão, um dos pilares da democracia.

Ou por abusos do poder político ou econômico, como no caso da quebra de sigilos fiscais e bancários de pessoas ligadas ao PSDB, uma conseqüência do aparelhamento do estado operado pelo governo petista.

O brasilianista Timothy J. Power, diretor do Centro Latino-Americano da Universidade de Oxford, na Inglaterra, em um trabalho publicado recentemente na Latin American Research Review, salienta que o país nesses 25 anos, conseguiu evitar “algumas das mais espetaculares doenças que afligem os países vizinhos, como crise financeira, colapso do sistema partidário, populismo, separatismo, e troca de presidentes por meios constitucionais dúbios”.

Para ele, o Brasil pós 1985 deve ser definido não pelo que ele é, mas o que ele “não é”. Deste ponto de vista, assim como o resultado eleitoral de hoje parece estar para ser decidido dentro da margem de erro dos institutos de pesquisa, também nossa jovem democracia caminha no fio da navalha, mostrando força em uma eleição nacional que caminha para ser mais uma grande festa cívica, mas que teve momentos em que flertou com a ilegalidade, a começar pelo próprio presidente da República que, na disposição de eleger sua candidata a qualquer custo, não hesitou em burlar a legislação eleitoral.

Entre tantos feitos “inaugurais” de que se gaba, ter sido multado várias vezes pelo Tribunal Superior Eleitoral durante a campanha por abuso de poder político será certamente uma recordação negativa no seu currículo político, fato que a provável eleição de sua escolhida hoje no primeiro turno certamente tornará irrelevante para seus critérios pragmáticos, onde o que importa é a vitória.

Também a atuação do Supremo Tribunal Federal na indefinição de regras para a eleição, deixando num limbo os votos dos candidatos Ficha-Suja e mudando a regra de procedimentos eleitorais às vésperas de sua realização mostram bem as incertezas que ainda temos que transpor para termos uma democracia sem o risco de inseguranças jurídicas e políticas.

O Supremo viu-se ainda às voltas com o episódio nebuloso de um telefonema dado pelo candidato tucano José Serra ao ministro Gilmar Mendes, supostamente para tentar manter a exigência de dois documentos para votar, o que teoricamente porejudicaria os eleitores de Dilma Rousseff. Mendes, além de negar a conversa, retrucou insinuando que o ex-Ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos interferiu na votação.

O processo eleitoral, assim como já acontecera em 2006, foi pontuado por críticas a supostas tentativas de golpe, acusação de que o PT e o governo se utilizam com freqüência quando acuados por denúncias de corrupção que podem influir no ânimo do eleitorado.

Mas sempre que os limites da democracia são testados por setores mais radicais da cena política, a sociedade reage de maneira vigorosa e as coisas voltam ao lugar.

A reafirmação, por parte da candidata oficial e de seu patrono, da absoluta imprescindibilidade da liberdade de imprensa marca o compromisso com a democracia que prevalece nesses 25 anos.

Como ressalta Timothy J. Power em seu estudo, um dos mais importantes destaques da democracia brasileira hoje é a ausência absoluta de atores de importância que sejam contra o sistema, e talvez o mais emblemático acontecimento recente tenha sido a promoção pelo Clube Militar do Rio de Janeiro de um painel para discutir justamente o apoio à liberdade de imprensa.

Apesar desses avanços, ressalta Power, ainda persistem problemas que podem minar nossa democracia, como a enorme desigualdade social que somente com o Plano Real começou a ser combatida efetivamente, dando margem a que os programas assistencialistas aprofundados pelo governo Lula pudessem iniciar uma lenta reversão da pobreza absoluta.

O sucesso dessas políticas de transferência de rendas, seja através do Bolsa-Família, seja por outros programas sociais ou o aumento do salário-mínimo, criou uma nova classe média marcada mais pelo consumo de bens do que por uma efetiva mudança estrutural da sociedade brasileira, que ainda carece de uma revolução educacional que transforme essa mobilidade social em um fenômeno permanente e consolidado nas futuras gerações.

Timothy Power ressalta em seu trabalho que a democracia brasileira é mais política do que econômica, cultural ou social.

Desse ponto de vista, temos mecanismos que permitem “robusta contestação política e ampla participação, com eleições competitivas que permitem a alternância de poder”, além de presença de instrumentos legais e garantias constitucionais que permitem o funcionamento das instituições.

O importante não é que haja obrigatoriamente a alternância no poder, e sim que exista, apesar de constrangimentos já tratados aqui, a possibilidade dessa alternância, sem contestações.

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