quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Governo faz manobra e cria superávit bilionário falso

DEU EM O GLOBO

Analistas criticam uso da capitalização da Petrobras em artifício contábil

Uma manobra fiscal da União na capitalização da Petrobras rendeu R$ 31,9 bilhões e levou o governo a registrar superávit primário recorde em setembro, de R$ 26,1 bilhões. Sem o reforço da estatal, o déficit seria o pior do ano: R$ 5,8 bilhões. A União usou só parte do pagamento da Petrobras, de R$ 74,8 bilhões no total, para participar da capitalização da empresa. A diferença entre o que recebeu e aportou na estatal engordou as receitas e produziu o superávit. Analistas criticam o artifício contábil. Para Raul Veloso, a "gambiarra" permitirá cumprir a meta fiscal do ano, mas esta já não inspira confiança.

Manobra faz déficit virar superávit

Artifício usado na capitalização garante ao governo resultado fiscal recorde de R$ 26 bi

Martha Beck

BRASÍLIA - Uma manobra fiscal feita pela União no processo de capitalização da Petrobras rendeu R$ 31,9 bilhões aos cofres públicos e levou o governo central (que inclui Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central) a registrar, em setembro, o maior superávit primário da História: R$ 26,1 bilhões. Sem o reforço da estatal, o resultado teria sido a pior do ano, um déficit de R$ 5,8 bilhões. A mágica do governo fortemente criticada por especialistas será essencial para o cumprimento da meta fiscal de 2010, mas deixará para o próximo presidente uma estatística das finanças públicas menos transparente.

O superávit fiscal primário no mês passado (economia para pagamento de juros da dívida pública) equivale a um crescimento de 552% em relação a agosto, quando o saldo foi de R$ 4 bilhões. O recorde anterior era de R$ 16,7 bilhões e foi obtido em abril de 2008. No acumulado do ano, o superávit do governo central está em R$ 55,7 bilhões. Isso porque, embora o Tesouro tenha um resultado positivo de R$ 95,8 bilhões no período, a Previdência Social e o Banco Central são deficitários em R$ 39,7 bilhões e R$ 403,5 milhões, respectivamente.

Analista: meta fiscal foi jogada no lixo

O primário acumulado ainda está abaixo da meta fixada para o ano, de R$ 76 bilhões (2,15% do Produto Interno Bruto, o PIB, conjunto de bens e riquezas produzidos no país). Mas, segundo o secretário do Tesouro, Arno Augustin, as contas vão fechar: No acumulado em 12 meses, o primário está em R$ 79,5 bilhões, acima da meta. Trabalhamos com a projeção de que ela será cumprida.

Augustin também defendeu a manobra fiscal: O que houve foi a entrada de uma receita de concessão (pagamento pela Petrobras da cessão onerosa de cinco bilhões de barris de petróleo), algo que sempre existiu. Usamos uma metodologia consagrada e que rendeu um primário importante.

A União usou apenas parte do pagamento da Petrobras, de R$ 74,8 bilhões no total, para participar da capitalização da empresa. A diferença entre o que recebeu e aportou na estatal foi o que engordou as receitas e produziu o superávit recorde.

Em 1998, por exemplo, o governo recebeu R$ 9,3 bilhões em receitas de concessão de telefonia e o primário daquele ano foi de R$ 5 bilhões. Esse tipo de receita é sempre significativo e sempre fez parte da nossa metodologia defendeu Arno.

A maior dificuldade do governo em realizar o primário este ano está no forte aumento das despesas, especialmente com investimentos. Esses gastos apresentam alta nominal de 57% (38% em termos reais) e chegam a R$ 32,2 bilhões.

Já os desembolsos com custeio da máquina apresentam alta real de 7,2% Arno considera que o nível ainda está acima do ideal, pois está próximo do ritmo da economia, mas é aceitável.

Os gastos com pessoal, por sua vez, tiveram alta nominal de 9,3%, caindo 3,7% em termos reais. Já as receitas totais, entre janeiro e setembro, cresceram 15,5% em termos reais.

É absolutamente sustentável a equação fiscal que temos. O aumento dos investimentos é a melhor ajuda que se pode dar à política monetária.

Eles vão garantir que o Brasil vai ter condições de atender à demanda sem gerar inflação defendeu Arno.

Para o especialista em contas públicas Raul Velloso, a gambiarra montada pelo governo permitirá o cumprimento da meta fiscal do ano, mas esta já não inspira mais confiança: O governo jogou a meta fiscal no lixo. Chegar a ela por meio de artifício contábil acaba fazendo com que o número caia em descrédito.

Felipe Salto, da consultoria Tendências, tem a mesma avaliação: A meta fiscal já não fornece mais informações relevantes.

Segundo Velloso, o descompasso nas contas públicas pode ser explicado pela crise mundial iniciada em 2008 e pela má qualidade dos gastos. Ele lembrou, que durante as turbulências, a arrecadação caiu, mas o governo manteve suas despesas elevadas para estimular a economia. Agora, apesar da recuperação nas receitas, elas ainda apresentam uma defasagem, que é agravada pelo fato de o governo não ter feito esforços significativos para conter gastos com custeio e pessoal ao mesmo tempo em que os investimentos públicos deslancharam.

Segundo Salto, a contabilidade fiscal varia entre países, mas regras fixadas precisam ser cumpridas: Se as regras são distorcidas, acaba havendo no futuro uma piora no acompanhamento das estatísticas, um aumento da incerteza, do risco.

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