segunda-feira, 4 de outubro de 2010

'O cara' carregou, e também atrapalhou Dilma

DEU EM O GLOBO

Como o presidente virou a situação adversa no pleito passado e começou a elaborar um projeto de poder para quando deixar o Planalto

José Casado

O presidente entrou na sala improvisada nos fundos do palanque, em Belo Horizonte.

Naquela tarde de agosto, vestia uma típica jaqueta boliviana.

E estava inquieto: — Vocês acreditam que o Aécio (Neves) teve a coragem de me mandar um recado pedindo para não vir? O tom irritadiço de Lula surpreendeu os políticos do PMDB e do PT que o recepcionavam.

— Como é? — quis saber Hélio Costa (PMDB), candidato ao governo mineiro.

— Ele mandou o Sérgio Andrade (empresário mineiro, acionista dos grupos Oi e Andrade Gutierrez) telefonar para o Gilberto (Carvalho, chefe de Gabinete de Lula). O Gilberto contou que o Sérgio ligou, falando em nome do Aécio, com pedido para não vir a Minas.

Quem o Aécio pensa que é? Em quem ele acha que manda? Eu sou presidente da República, vou aonde quiser e agora vou para o enfrentamento.

Lula assumira o papel do político em transe com a adrenalina da vingança. E assim continuou.

Nas últimas dez semanas empenhou-se num acerto de contas com a oposição.

Embriagado com o próprio protagonismo, radicalizou na reta final e acabou por ofuscar sua candidata, Dilma Rousseff, com ofensivas como a promessa de “extirpar” o DEM do mapa políticopartidário, o confronto aberto com a imprensa (“nós somos a opinião pública”, anunciou) e o elogio ao “antigo radicalismo” petista, que ele próprio revogara na campanha de 2002.

Resultado: os pouco mais de 46% obtidos por Dilma ontem nas urnas ficaram muito abaixo das projeções do governo e do partido, que já haviam reservado a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para a “festa da vitória” no primeiro turno. Lula construiu, conduziu e viabilizou a candidatura de Dilma, mas acabou atrapalhando-a na reta final. Na votação, delineouse o limite da sua influência.

Ele perdeu nos campos de batalha onde deu ordens aos aliados para que não deixassem sobreviventes entre os oposicionistas.

Em Minas fez um desafio aberto a Aécio Neves e viu seu candidato (Hélio Costa, do PMDB) ser derrotado com quase 30 pontos de diferença por Antonio Anastasia (PSDB). Em Santa Catarina, onde pregou a “extirpação” do DEM, a sua candidata Ideli Salvati (PT) foi derrotada com 31 pontos de diferença por Raimundo Colombo (DEM).

O presidente passou a campanha exibindo certezas com base no carisma lapidado em 21 anos de campanhas presidenciais — completados neste mês —, e polido por uma custosa estrutura de propaganda voltada ao culto à personalidade (gasto médio oficial de R$ 1 milhão por dia). Lula chegou a uma situação singular: tornou-se o primeiro presidente que, à saída do Planalto, indica sucessor e exibe um projeto de poder.

Acuado, decidiu ir para a rua

A dimensão da sua influência política, confirmada na reeleição de 2006, quando somou 58 milhões de votos (60,8% dos válidos) o levou a se descolar do PT, planejar a eleição de Dilma e se manter como condutor dessa força — “lulismo” para alguns ou “movimento”, como define.

— Eles (da oposição) não sabem o que é ser popular porque nunca estiveram perto do povo, e aí confundem populismo com popular — repetiu em comícios.

— Ninguém imagina o que passei com um Senado raivoso, o ódio daqueles que até pensaram em me derrubar em 2005 (na crise do mensalão). Venci na rua, porque estabeleci uma relação real e direta com o povo...

Em agosto de 2005, Lula se sentiu acuado na Presidência.

Havia três semanas que demitira José Dirceu do comando da Casa Civil, envolvido em denúncias de corrupção, quando assistiu pela televisão ao ato de contrição do publicitário chefe de sua campanha, Duda Mendonça.

O publicitário confessou ao Senado que os custos da eleição de Lula e de outras campanhas do Partido dos Trabalhadores, em 2002, haviam sido pagos com dinheiro ilegal, extraídos de fundos não declarados (caixa dois) mantidos no Brasil e em paraísos fiscais. Na semana seguinte, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foi denunciado por corrupção quando era prefeito de Ribeirão Preto (SP).

Lula se sentiu ameaçado. Meses antes era favorito à reeleição.

Agora, a melhor opção era ser candidato a terminar o mandato e voltar a assar coelhos na cobertura em São Bernardo do Campo — uma das suas receitas prediletas para fins de semana.

Chamou Marcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, e Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil.

Anunciou-lhes a decisão de partilhar o governo (Thomaz Bastos na condução política e Dilma com os negócios), enquanto voltaria “à rua” em busca de apoio. E assim fez, com o argumento autocomplacente de ter sido “traído” pelo PT .

A oposição acreditava ter emparedado o presidente e dobrou a aposta na “sangria” de Lula até a eleição do ano seguinte. Mas enquanto PSDB e DEM acenavam aos eleitores com o paraíso da higiene política, o governo entregava mais emprego, garantia renda mínima e acesso a uma fartura de crédito pessoal.

Lula confirmou a existência da margem de manobra em 20 dias de comícios em oito estados.

Numa quarta-feira, 24 de agosto, voltou a Brasília e chamou o publicitário João Santana, indicado por Duda Mendonça.

Examinaram as chances e definiram a retomada da ofensiva pelo presidente-candidato.

Na semana seguinte Lula foi a Uberlândia, levou o governador mineiro Aécio para o palanque e, diante dele, sinalizou a disposição de se manter na disputa: — As pesquisas começaram a dizer “o Lula é imbatível”, então resolveram me atacar no que nunca deveriam ter me atacado — disse, com Aécio ao lado. — Começaram a mexer na questão ética para ver se colocavam desconfiança na sociedade. Eu reajo agora, com a tranqüilidade de que a gente tem que tomar as decisões no momento certo, na hora certa. Só quero provar que ninguém cuidou dos pobres mais do que nós cuidamos.

Quando começou 2006, ano da reeleição, Lula se recuperava nas pesquisas na esteira de uma festa de consumo. As vendas de móveis e de eletrodomésticos cresciam ao ritmo de 10% ao ano e as de alimentos nos supermercados à velocidade de 7,5% acima da inflação.

O vento a favor na economia era resultante da combinação de inflação baixa e estável (herança do governo Fernando Henrique Cardoso) com uma política de juros recordes (19% ao ano) e atraentes para a especulação financeira, e com uma alta excepcional (60%) nos preços das matérias primas exportadas.

Havia um novo cenário. Em SP, por exemplo, o economista José Marcio Camargo desligou a calculadora ao concluir que a renda dos 20% dos mais pobres aumentara 10%. Dois terços disso, na sua conta, eram explicáveis pelo avanço do emprego formal e dos salários reais. Outro terço era efeito dos programas de transferência de renda.

Uma sofisticada rede de poder

Com esses programas, Lula sofisticou a velha fórmula da construção de uma rede de poder baseada no controle da máquina pública e na benevolência orçamentária.

Na política, travestiu favores em projetos de governo.

Deu às prefeituras autonomia tanto no cadastramento quanto na distribuição dos benefícios sociais — um fluxo de dinheiro relevante e administrado exclusivamente pelos municípios, sem interferência estadual.

Por consequência, o potencial de influência eleitoral dos prefeitos se ampliou. Formouse então uma aliança tácita que permitiu ao presidente-candidato à reeleição se apresentar como o construtor da estabilidade e patrono dos benefícios.

Um ano depois da crise do mensalão, em meados de 2006, Lula era, de novo, favorito nas pesquisas. Foi quando avisou à mulher, Marisa, que mudaria a rotina no Palácio da Alvorada.

O casal presidencial não recebia ministros nos fins de semana.

Passou a guardar um lugar à mesa no jantar de domingo para uma convidada: Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil.

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