sábado, 13 de novembro de 2010

Após a derrota de Serra, uma nova transição:: Raimundo Santos

No segundo turno, a candidatura de Serra espelhou opinião pública de sentido democrático, tornando-se mais diferenciada ainda em relação a dois vetores do bloco vitorioso nas urnas que desejam ver o quadro político vindouro conduzido por completo pelo governo. Referimo-nos, de um lado, à poderosa figura de Lula, em vias de se retirar da Presidência da República para iniciar caravanas pelo país, temidas pela sua compulsão para dividir a população em duas partes; e, de outro, a setores hoje à frente de importantes estruturas (organizacionais, grupos e tendências partidários, ambientes intelectuais) reunidos em torno da candidatura de Dilma.

Com visão ainda referenciada pelo modelo de mudança social do Oitocentos, mas agora, em contexto de administração da economia realmente existente no país, esta vertente quer dar andamento a ações social-governistas, legitimada (acredita ela) por se considerar exclusiva defensora do popular. No plano político, além de se integrar à candidatura oficial, ainda não conhecemos quais são suas próximas iniciativas, mas se nota indiferença, no mínimo, quanto ao estilo de governar próprio do Presidente Lula, corrosivo do Estado democrático de direito.

Se, ao sair da cena governamental, o popularismo de Lula não vai se enfraquecer, isso não significa que estará livre para novos empreendimentos como o da vitória eleitoral, operação cuja base José Serra localizou na fusão Estado-partido em campanha. Mas há quem acredite, em áreas oposicionistas (e ainda quem assegure em alguns ambientes governistas mais intelectualizados), que, por ser uma formação complexa, o país conta com elementos suficientemente fortes para conter os passos do mito. Por certo, este condicionamento de tipo “estrutural” enseja um movimento favorável, que, no entanto, não se consuma por si mesmo, pois, como se sabe, terá que ser vivido por protagonistas; e estes, no caso da presente conjuntura pós-eleitoral, são chamados a dar vida a uma transição deste tempo de anomia política, que vivemos ultimamente, para o curso orientado por valores democráticos que vinha lentamente se afirmando entre nós desde a anistia de 1979.

Enfraquecida pela derrota — e ante a virtualidade de mais 12 anos de governo do PT —, a oposição se moverá com dificuldade, e não são numerosas suas correntes com habilidade para retomar a iniciativa política. A oposição tem pela frente o trabalho de criar condições favoráveis à retomada do reformismo indicado pela Constituição de 1988, ou seja, de um renovamento da vida nacional entendido como progressiva democratização do país e de suas oportunidades sob plena vigência do Estado democrático de direito. O mundo político (incluído o PMDB coligado com Dilma) logo se movimentará no Congresso e na opinião pública, abrindo à oposição a possibilidade de dinamizar o espaço de atuação política (e social), campo ampliado para o qual converge a movimentação dos novos governadores de oposição, alguns deles à frente de estados importantes, como São Paulo e Minas Gerais.

No que se refere ao social, hegemonizado pelas atuais formas organizativas, é pouco provável que — a curto e até a médio prazo — as correntes de esquerda e centro-esquerda da oposição construam cenário discursivo eficaz para disputar o mundo popular nesse terreno. Como já vem ocorrendo no tempo mais contemporâneo, é o campo da política que se dispõe ao tipo de oposição como a que aí está, agora investida da função crucial de dialogar com os setores organizados e não-organizados, inclusive com áreas não popularistas de dentro do governo Dilma.

O campo da oposição, pelo menos aquele que será estruturado por atores (os principais deles, o PSDB, o PPS e ambientes animados pela candidatura de Marina Silva) que não pensam em fazer “oposição pela oposição” nem cultivam a luta à morte pelo poder (aliás, com ela acabam de defrontar-se), têm quatro anos pela frente para interpelar um tipo de hegemonia popular consolidada nos últimos oito anos e certamente sobreposta ao futuro governo. Hegemonia popularista ainda a pairar sobre nosso sistema institucional, já combalido pelo enfraquecimento dos partidos e pela descrença na política e nos valores como meios asseguradores do desenvolvimento com oportunidades para o conjunto da população, diversos das clivagens cristalizadas pela retórica de Lula em consideráveis áreas da opinião pública.

Ao ator de esquerda oposicionista, agora posto diante de mundos organizacionais hegemonizados, se lhe exige desempenho em várias direções e múltiplos níveis, buscando retomar a iniciativa na ação e no plano do pensamento, em particular na esfera da difusão dos valores políticos, perspectiva considerada por muitos de escassa eficácia no jogo pelo poder de hoje (ver o peso e a qualidade do marketing nas eleições).

Deve-se recordar, no entanto, que esta procura de invenção no plano da política e do pensamento também pode ter êxito, como lembra o tempo de descrença e pesssimismo durante o regime de 1964, quando, justamente naquele plano, a resistência à ditadura se assentou para se desenvolver e tornar efetiva sua ação. E o mesmo ocorreu ainda agora na eleição, como vimos no segundo turno — isto se valorizarmos o que foi se acumulando em termos de interpelações ao discurso hegemônico, com a candidatura de Serra apresentando resultado que não é de se desprezar. As interpelações dessa mobilização sem ator individualizado — pois vêm de Serra e também da midia, de algumas instituições e personalidades, como Hélio Bicudo — podem ser aferidas nos compromissos que a candidata Dilma, pouco depois de proclamada eleita, se viu levada a anunciar (a quem ela repondia, se acabara de sair das urnas amplamente vitoriosa?) de forma um tanto diversa daquela que até ali vinha dizendo nos palanques com Lula.

Chama a atenção o fato de que, logo após a apuração dos votos que lhe confirmaram a vitória — e ainda a caminho da celebração no Palácio do Planalto, em discurso inesperado —, a candidata leu pronunciamento refletindo, em pontos cruciais, o sentido da opinião pública crítica à era Lula que se formara como um arco-íris sobre as águas revoltas da campanha eleitoral. Parecendo se mover em forma defensiva diante daquela opinião pública, a presidente eleita firmou compromissos, ainda que ambíguos, em relação às interpelações da campanha, considerando o que a própria candidata havia manifestado no mesmo dia da eleição em artigo publicado na Folha de S. Paulo pela manhã.

Enquanto no pronunciamento da noite, por ser pontual e rápido, não se vê toda a sua articulação interna, no texto escrito para o jornal a presidente, se não critica a dimensão formal da democracia, manifesta reticência em relação a ela. Democracia ora “substantivada”, diz a autora no artigo da Folha de S. Paulo, “pela ascensão de milhões após o crescimento econômico e os programas sociais”. Neste texto, Dilma se refere à democracia apreciando-a “como valor fundamental”, postura que, se não revela proposição de novo conceito (a respeito deste ponto especifico houve discussão na esquerda pecebista em meados dos anos 1970), encerra, naquela sua adjetivação (“fundamental”), sua não adesão plena ao Estado democrático de direito, diversamente de Serra e das áreas de esquerda e centro-esquerda mais próximas do candidato.

Em todo caso, se aquele contexto eleitoral que ainda cercava o primeiro discurso da presidente eleita indica uma possibilidade promissora, a resistência democrática ao tempo de anomia política a que estamos nos referindo tem mais alento. Resistência democrática — entenda-se bem — no sentido daquilo que, certa vez, falando sobre o famoso “caminho democrático” ao socialismo defendido pelo PCI (exemplo para a esquerda brasileira clássica, inclusive na discussão anteriormente mencionada), Armênio Guedes dizia, de forma inconfundível, em um programa de TV chamado Roda Viva, que o que os comunistas italianos haviam trilhado era a rigor um caminho democrático para alcançar a democracia.

A oposição tem à sua frente um complexo trabalho de convencimento, em primeiro lugar, da opinião pública, na sua grande maioria eleitora de Dilma, e do mundo político-social organizado (partidos, associativismo, etc.). Deve cumprir um movimento em busca de hegemonia que tenha por referência a retomada programática — aqui o ponto de apoio para tal convencimento — da revolução democrática sintetizada na Constituição de 1988, como tem sido lembrado ultimamente a propósito da modernização mais contemporânea do país. Renovação cujo sentido e cujos caminhos a Carta Magna recolheu da luta pela redemocratização do país, a partir da larga jornada iniciada logo após 1964.

Depois de 1988, tal renovamento avançou no plano econômico com o Real e com os ajustes à globalização dos anos 1990, bem como com a remodelação da estrutura estatal; e nos últimos oito anos este mesmo processo renovador deu novos passos sob o governo Lula, com o alargamento do alcance da política social e dos apoios emergenciais aos contigentes menos favorecidos, ainda que os seus autores recusem descendência daquele campo da Constituição de 1988 como inspiração de um desenvolvimento sustentável.

Com áreas fortemente ligadas à tradição da resistência política ao regime de 1964 (parte delas continuam no PMDB oficialista), a oposição tem aquele marco de referência constitucional que confere à sua ação na conjuntura sentido construtivo e põe suas perspectivas fora da futurologia para a próxima eleição presidencial. O movimento oposicionista de agora visa prioritariamente garantir curso livre à vida política democrática, cabendo ainda considerar de modo positivo (porquanto aceita sem reservas o resultado das urnas, não obstante aponte a forma comprometedora da vitória de Dilma) que o novo governo, pressionado a partir de fora e também de dentro, ele próprio possa vir, se não a favorecer, ao menos a não se tornar obstáculo ainda maior ao tempo da política e da sua capacidade transformadora na plenitude do Estado democrático de direito. A oposição — chamada por Serra, no seu discurso na noite de dia 31 de outubro, de “campo da liberdade e da democracia” — não tem pela frente tarefas simples, e tampouco é certo que as forças da oposição convocadas para estruturar aquele campo sejam as únicas correntes lúcidas.

A candidata eleita reconheceu publicamente o sentido democrático de parcelas da opinião pública envolvidas na eleição, por ela acolhido como compromissos, como foi observado, na própria hora da apuração dos votos — em particular os compromissos, que assumiu, de “valorizar a democracia em toda a sua dimensão, desde o direito de opinião e expressão até os direitos essenciais básicos da alimentação, do emprego, da renda, da moradia digna e da paz social”; de “zelar pela mais ampla e irrestrita liberdade de imprensa” (mais de uma vez repetido nos dias seguintes); de “zelar pela observação criteriosa e permanente dos direitos humanos tão claramente consagrados pela nossa Constituição”; e , por fim, o de “zelar pela nossa Constituição, dever maior da Presidência da República” (O Globo, 01/11/10).


Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ/CPDA).

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