quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A greve francesa :: Jaldes Reis de Meneses

DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

Há um belo soneto do grande poeta francês Charles Baudelaire que começa assim: “a rua em torno era um frenético alarido” (“A uma passante”).

Paris, Lyon, Marseille, junho, 1789; fevereiro, 1848; maio, 1968; outubro, 2010: tão longe, tão perto. Sem dúvida, o alarido das multidões nas ruas vem a ser, junto com o vinho e os queijos, uma moderna tradição francesa. A explicação estrutural do fenômeno de protestar nas ruas e erguer barricadas deita raízes no próprio processo da revolução francesa de 1789: na radicalização do processo jacobino (1792), os franceses fizeram uma reforma agrária radical, fatiando os antigos feudos em pequenas propriedades camponesas. Dessa maneira, a acumulação primitiva de capitais no campo foi relativamente lenta, tendo em vista o acelerado processo inglês. Ou seja: a transferência de renda e capital do campo para a cidade se deu de modo constante, mas num ritmo equilibrado, tanto que até os dias de hoje os pequenos proprietários rurais são uma voz política importante na França.

Qual a conexão da evolução das estruturas econômicas da industrialização francesa com o mundo da política? O processo de revolução na França configurou um tipo de hegemonia no qual as figuras do camponês e do artesão, lado a lado com as formas sociais novas do operário fabril e do burguês, tiveram que estabelecer formas de convivência, certamente conflituosas, de hegemonia burguesa, decerto incorporadora das demandas sociais dos de baixo, embora muitas vezes assumindo contornos bonapartistas. Enfim, o paradoxo do processo de revolução burguesa na Franca é lídimo e simples: o desmoronamento dos estamentos aristocráticos, e do clero, requisitou um amplo consentimento social.

Foi esta sui generis configuração da econômica com a política o solo no qual germinaram as ideias radicais republicanas e socialistas, o que tanto agradou ao jovem Marx e tanto ódio despertou, em uníssono, em todos os membros, sem exceção, do pensamento conservador, numa escala de Burke a Nietzsche. Neste ínterim, é o caso de recordar o pensamento corporativista de Saint-Simon — fundamento ideológico do Estado Social Francês —, atentando ao fato de que o corporativismo pregava a paz social, mas a partir do acordo entre as partes litigantes.

Deve-se perceber que as raízes do Estado de Bem-Estar Social francês estão arraigadas na cultura política do país. Desmontá-lo, portanto, se assemelha a uma autêntica operação de guerra. Por isso, o atual movimento grevista contra a lei de Sarkozy, que eleva a idade mínima de aposentadoria de 60 para 62 anos (na verdade, o fio do novelo de outras medidas), conta com a adesão, conforme pesquisas, de 71% da população.

É fato que as bases definitivas do Estado Providência Francês são relativamente recentes: advieram dos chamados acordos de Grenoble, um arranjo corporativo entre o Estado gaulista e os sindicatos comunistas que selou o fim dos movimentos de 1968, reiterando a tradição de os acordos de classe se seguirem aos estertores do movimento revolucionário.

Para entender Sarkozy e os acontecimentos da greve francesa, talvez seja o caso de recuar a maio de 1968.

No movimento do século passado, tínhamos a circunstância da irrupção de surpresa de um protesto juvenil, nascido nas Universidades, que se espalhou como um barril de pólvora para muito próximo de uma classe operária fabril compacta, massiva e sindicalizada. Mais ainda: a aliança entre operários e estudantes estava acompanhada de um audacioso projeto de emancipação social e humana — a imaginação histórica estava funcionando a pleno vapor —, no qual os intelectuais tiveram um papel de destaque, sem comparação com nenhum movimento político recente, na Europa Ocidental.

Não devemos fantasiar 1968, até porque tínhamos a outra face da moeda, afinal vitoriosa. Do ponto de vista político, rememorando as melhores tradições bonapartistas francesas, tivemos a atuação do General de Gaulle, que sabia ser fundamental que o aparelho de Estado e as elites agissem sob um comando único (o seu) durante a crise, sem apresentar sequer nesgas de dissidências.

Todos deram carta branca ao comando unipessoal do general, que agiu em dois flancos: não pestanejou no uso dos instrumentos constitucionais de exceção ao seu dispor; a dissuasão aos movimentos de rua foi dura, mas a repressão policial seguinte relativamente branda, poucas pessoas foram presas e ninguém condenado — “não se pode prender Sartre, não se pode prender Voltaire”, disse o general em plena crise, uma frase de efeito que denota uma estratégia.

Resultado: o movimento deixou poucas cicatrizes (é lembrado até com bom humor e saudosismo), e algumas bandeiras do movimento foram sendo paulatinamente absorvidas pelo establishment — ao menos em sua dinâmica cultural e comportamental —, ao mesmo tempo que boa parte das lideranças estudantis e dos intelectuais foi perfeitamente integrada.

Revendo a poeira de 1968, Nicolas Sarkozy estava ao lado do Estado e contra as barricadas. Não mudou de lado. Contudo, há uma novidade de perfil. Trata-se de um político-camaleão, sem medo nem pudor de usar o discurso político zoológico da extrema-direita.

Bem define o papel de Sarkozy, no atual momento da Europa, o sociólogo Pierre Rosanvallon: “Houve, sucessivamente, o sarkozysmo liberal, o nacional-colbertista [protecionista], o securitário e o quase xenófobo. Berlusconi, na Itália, e Cameron, no Reino Unido, são parecidos. Representam uma direita conquistadora e sem complexos. O verdadeiro fenômeno na Europa é essa guinada geral à direita. Desde junho de 2009, quando houve as últimas eleições para o Parlamento europeu, os 13 pleitos legislativos nacionais que ocorreram na Europa deram vitória à direita. Mas, ao contrário da direita social e republicana de gente como Jacques Chirac, a ruptura que Sarkozy representa não é somente uma questão de estilo. Sarkozy não hesita em tomar emprestado parte da linguagem e da agenda da extrema-direita. Mas, aí também, é algo comum a todos os países europeus. Até a Suécia, fortaleza social-democrata, viu a extrema-direita se impor como fiel da balança na última eleição” (Folha de S. Paulo, 20/10/2010).

Sarkozy, até o momento, não dispõe da unidade da assustada classe média e das elites, como De Gaulle em 1968. Virá a ter no futuro próximo? Dificilmente, pois a crise econômica atual é mais grave e profunda que a de 68.

Ao contrário da irrupção de surpresa do passado, a greve atual, que paralisa os operários, os transportes públicos, as refinarias, as escolas, os hospitais, enfim, a maioria dos serviços estatais, era uma queda de braço anunciada pelo menos desde a crise econômica de 2008. A atitude inicial de parecer um político “durão” foi um completo desastre. Passava pela cabeça do marido de Carla Bruni o ganho simbólico de derrotar o antagonismo dos sindicatos, cabeça ceifada a ser exibida ao mundo dos negócios e aos consortes chefes de Estado da União Europeia.

Qualquer que seja o desfecho, o presidente francês encontra-se encurralado. Evidentemente, ele sabe que depois de um ápice, em algum momento, a greve vai arrefecer. Talvez negocie algumas reivindicações secundárias dos grevistas, sem abrir mão do essencial: o aumento no tempo de aposentadoria. De todo modo, o desgaste é irremediável. Não é pouco, quando se sabe que a direita europeia tem sido vitoriosa em todas as eleições recentes, depois de 2008. Pode-se abrir um espaço para a esquerda e até para o surgimento de um projeto político de classe em um país fundamental do capitalismo mundial.

Tivemos uma greve geral dos serviços públicos na Franca em 2007. É impressionante como a opinião pública se deslocou de lá para cá: há dois anos, era difícil explicar aos usuários a greve nos serviços públicos. Hoje, o apoio é generalizado. Criou-se uma greve de força popular, na qual a situação dos sindicatos é de ofensiva. Quando é criada uma situação dessas, sem negociar as reivindicações, caso o movimento se mantenha firme e unitário, no limite só resta uma alternativa ao poder do Estado: a repressão e até o Estado de Sítio. Vamos aguardar os próximos acontecimentos.

Jaldes Reis de Meneses é professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social – UFPB).

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