domingo, 7 de novembro de 2010

Heranças e desafios :: Alberto Dines

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O compromisso inaugural e os primeiros passos da presidente eleita, Dilma Rousseff, confirmam a manutenção de uma perturbadora questão. Mantida em surdina durante a campanha eleitoral, transformada em principal desafio para os próximos dois anos está contida numa pergunta que ninguém ousou enunciar com clareza: será este o terceiro mandato do presidente Lula?

É certo que Lula entregará a faixa e abandonará a desgastante rotina palaciana, não há menor sombra de dúvida de que transferirá todos os ônus de comandar um vulcão em estado de ebulição e abulia, simultaneamente novo e encarquilhado. Entregará o poder, aquele poderzinho chato traduzido em ocas cerimônias, abraçinhos falsos e inúteis protocolos.

Sossegará, é óbvio. Ou melhor, baixará a pressão. É o que recomendam em uníssono os estrategistas e cardiologistas. Mas conseguirá interromper a compulsiva falação? A sucessora é uma incansável operadora, não tem o gosto de falar, não exibe o prazer da eloquência que tanto marca o seu guru.

Lula será capaz de abandonar o palanque - seu habitat, refúgio e SPA - onde aboletou-se há mais de três décadas e se sente tão estimulado? O presidente é um animal político. Político e perorador. Conseguirá interromper a compulsiva falação? Seu narcisismo e sua sedução manifestam-se preferencialmente através da goela. Seus lampejos, achados e estalos sempre foram retóricos. Também as armadilhas onde se enredou.

E enquanto falar, presidirá, mandará. Mesmo sem presidir ou mandar. Será ouvido, mesmo sem alto-falantes. E obedecido cegamente. Se os seus adversários durante a campanha não ousaram enfrentar o mito Lula, as sucessivas esferas do novo governo serão ainda mais sensíveis aos mínimos desejos. Não por submissão, mas como homenagem.

Errou a oposição, erraram os profetas, enganaram-se os juristas, iludiram-se os analistas, cometeram um haraquiri coletivo aqueles que consideram imperiosa a alternância do poder para revigorar a democracia e, não obstante, permitiram que o presidente Lula ao longo de dois anos atropelasse todos os ritos e compromissos do sistema democrático para disputar um pleito para ele interdito pela constituição.

Lula foi o super-candidato, ele era o alvo do plebiscito, impossível fingir que, de repente, deixará de existir ou evaporar. Será difícil, quase impossível evitar que a partir de 1º de janeiro não adotemos uma versão disfarçada, sutil - evidentemente em outra esfera - da Fórmula K (de Kirchner) tragicamente interrompida em 27 de outubro na Argentina.

A presidente eleita Dilma Rousseff merece todo o respeito, seus méritos pessoais não podem ser negados, a fibra é indiscutível, o charme logo aflorará. Mas Lula será sempre o mito. E os mitos não vivem no futuro. Eles se alimentam com o presente.


» Alberto Dines é jornalista

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