segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Inconsistências contábeis :: Paulo Brossard

DEU NO ZERO HORA (RS)

Como ocorre em países que adotam o sistema presidencial, especialmente quando há mudança de orientação partidária na chefia do governo, e a despeito de não ser esta a situação em que vive o país, tanto que o presidente expirante elegeu sua candidata, em cuja campanha ele pintou e bordou, já aparecem sinais do que ocorre ou pode ocorrer, quando o presidente que vai sair é uma espécie de ser insepulto e o presidente eleito é, ainda sem ser. E o presidente, embora em fim de mandato, pode criar situações desastrosas para o que vai ser. Mas isso é da lógica do sistema presidencial.

Vários são os fatos que têm vindo a público depois da eleição e que poderiam ser funestos se divulgados antes dela. Vou indicar um ou outro. O do Enem – Exame Nacional do Ensino Médio é um deles. Pela segunda vez, desde que concebido, o programa veio com cólicas, que molestaram uma parte de alunos. O fato começou negado, depois minimizado e, por fim admitido, mostrou que, se não tinha meios para fazer bem feito, não deveria insistir na brincadeira, por mil e uma razões, inclusive pelas despesas, que não são poucas.

As primeiras declarações do presidente foram terminantes e pontificiais como um senhor de terras e mares, “foi um sucesso total e absoluto”. Não demorou, e ainda categórico, afiançou “vamos investigar o que aconteceu efetivamente no Enem, e a Polícia Federal já está em campo”. Se isto fosse dito por um rancoroso adversário ou desafeto pessoal, teria uma explicação, mas dito pelo presidente é muito mais significativo, pois o presidente ao dizer que a “PF já está em campo”, é que sabe o suficiente para reconhecer tratar-se de ilícito grave.

Mas não é só. Embora se diga que o governo não ignorava o fato antes das eleições, sabe-se agora, que no Banco Panamericano ocorreu desvio de proporções sesquipedais e, não obstante, o Banco Central nada viu, os peritos também. Não devo e não quero entrar nessa selva selvaggia, que importa em R$ 2,5 bilhões que o presidente do Banco Central suavizou com a delicada expressão de “inconsistências contábeis”, ficou apenas um dado já confirmado: a Caixa Econômica Federal, sem notar nenhuma “inconsistência”, adquiriu 49% das ações do Banco Panamericano. Adquiriu de qual acionista? Não se sabe. Mas se sabe que os peritos da Caixa Federal que examinaram o negócio também nada viram que aconselhasse um pingo de prudência. E da CEF não se ouviu uma palavra de esclarecimento a respeito da escabrosa operação. E tudo vai ficar como dantes no quartel de Abrantes?

E para não dizer que não falei de flores, ocorre-me notar que não é ofício de jornalista fuxicar nos quadros funcionais da equipe de transição da presidente eleita, como de uma profissional que pediu demissão antes de entrar em exercício, pois teria um caso a esclarecer, e outro, de cabeleireira gaúcha contratada como secretária com remuneração de R$ 6.800 mensais.

Tenho visto muita coisa no serviço público e não sei se as “equipes de transição” obedecem às regras gerais que disciplinam a administração, aliás expressas na Constituição, ou se disciplinadas por regras próprias; aliás, ainda não sei se a secretária foi contratada não por ser secretária, mas por ser cabeleireira; ainda que ambas as aptidões possam ser conjugadas. A mesma pessoa pode ser excelente secretária e sofrível cabeleireira ou o inverso, sofrível secretária e excelente cabeleireira. E pode também ser secretária insuficiente e deficiente cabeleireira. De modo que também é difícil saber se a remuneração de R$ 6.800 é razoável, justa ou suspeita. De qualquer sorte, perquirindo os relatórios administrativos não encontrei precedente ilustrativo, de maneira que aí talvez esteja a oportunidade da presidente eleita enriquecer a praxe administrativa. De todas as hipóteses possíveis, só me arrisco a adiantar que, sendo gaúcha, cabeleireira-secretária ou secretária-cabeleireira, deve ser competente...

*Jurista, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal

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