sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O risco dos tanques:: César Felício

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Os tanques ingressando em cena ontem no Rio de Janeiro podem ser o símbolo de uma inflexão da crise de segurança na cidade. O sociólogo Claudio Beato, colaborador das administrações tucanas em Minas Gerais, e o juiz aposentado Walter Maierovitch, integrante do governo Fernando Henrique que tornou-se um crítico ácido das políticas de segurança tanto do PSDB quanto do PT, divergem em muitas coisas, mas convergem no essencial: se o governador Sérgio Cabral Filho (PMDB) resistir à tentação de fazer um pacto informal com o crime organizado, precisará também se acautelar contra a belicização do problema.

Uma guerra contra o crime organizado pode ser perdida, como está ocorrendo no México, onde o foco da ação é militar. Aliás, são abundantes os exemplos internacionais da pouca eficácia de tanques em conflitos urbanos. Ou pode ser razoavelmente bem sucedida, como se dá na Itália, onde se investiu em inteligência policial, legislação penal e a vigilância sobre as penitenciárias, . No caso do Rio, já se sai com a enorme desvantagem de não se ter o governo federal no centro das ações, o que coloca como primeira missão para o governador pressionar Brasília a participar de um problema impossível de ser tratado no âmbito estadual estrito.

A militarização do combate aos cartéis no México, com a presença de 50 mil soldados do exército agindo em lugar da polícia, está na matriz do banho de sangue promovido por narcotraficantes naquele País. No México atual, existem lugares em que jornalistas só saem para trabalhar em equipe como medida de auto-preservação e o governo Felipe Calderón convive com pessoas sendo chacinadas em cemitérios, ao enterrarem seus mortos, que não são poucos: segundo expôs a blogueira Judith Torrea em um congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo ( Abraji) em janeiro, havia em Ciudad Juarez, município de 1,3 milhão de habitantes, 10 mil casas comerciais abandonadas e 27 assassinatos diários, em média.

Felipe Calderón declarou sua guerra no primeiro dia em que assumiu seu governo, em 2006. A oposição, cética, apontou um empenho seletivo no combate aos cartéis: a ofensiva visaria a debilitar o cartel de Ciudad Juarez, ligado ao PRI, em detrimento do cartel de Sinaloa, que teria vinculações com o situacionista PAN. Mas fatos recentes enfraqueceram esta hipótese, como a morte do capo "Nacho" Coronel em combate com os militares e apreensões recordes de maconha do cartel supostamente protegido pelo governo.

Faltou ao México uma política de controle social nos territórios reconquistados ao crime, como se propõem fazer as UPPs. Mas a reação das facções criminosas à disposição do governo para o confronto levaram à perenização do conflito, um caminho que o Rio se arrisca a seguir, até porque o problema fluminense se divide em duas camadas: a do narcotráfico de base territorial, do Comando Vermelho e dos Amigos dos Amigos (ADA), com suas cúpulas instaladas dentro das cadeias, que está no centro dos acontecimentos dos últimos dias, e a das milícias que ajudaram a expulsar o primeiro grupo dos morros.

"As milícias por enquanto não estão sendo tocadas. Estes grupos possuem um enraizamento na polícia e na política muito maior que o das facções, que estão acuadas. Quando forem combatidas, levarão o nível de conflito a uma estrutura muito mais alta", comentou Beato, que coordena o CRISP, o núcleo de estudos de segurança pública da UFMG. Na opinião de Beato, comete-se no Rio um erro de estratégia simétrico ao do México. Naquele País, Calderón teria se equivocado ao querer atacar os cartéis e reformar o aparelho policial ao mesmo tempo. " Uma das mais célebres maneiras de não fazer nada é se propor a fazer tudo", comentou. No Rio, Cabral pecaria pelo extremo gradualismo: "UPP não substitui uma política de segurança. E neste sentido o governo do Rio não toma iniciativas. É apenas reativo. Há outras maneiras de agir além de botar tanques nos morros", disse.

Possivelmente um dos mais atuantes especialistas brasileiros em crime organizado internacional, o ex-secretário nacional Antidrogas Walter Maierovitch, lembra que um dos chefões sicilianos, Bernardo Provenzano, conseguiu ficar 43 foragido da Justiça sem jamais sair da Sicília. "Foi a prova mais cabal de como bandos de matriz mafiosa tinham o controle territorial e social das áreas em que atuavam", comentou. Tanto em Nápoles quanto no Rio, o crime se divide em uma miríade de facções que se articulam no momento em que são acuadas. Esta demarcação territorial, em sua opinião, aproxima o Rio do sul da Itália e o afasta do México.

Desde 1982, o País investiu na mudança de regras do sistema prisional e penal, e a desunião entre os grupos criminosos fomentou delações que culminaram na condenação de 360 mafiosos em 1987. Muitos magistrados e agentes do aparelho institucional do Estado, como Dalla Chiesa, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, foram fuzilados ou voaram pelos ares em atentados promovidos em represália pelas quadrilhas.

O resultado final, segundo Maierovitch, é que tornou-se inviável a comunicação entre as bases criminosas dentro e fora dos presídios, além da fonte financeira ter diminuído drasticamente. "Nos últimos dez anos, as divisões especializadas da Polícia e da Justiça desfalcaram o patrimônio da máfia em 3 bilhões de euros. No Brasil apreendem-se drogas e armas sem dinheiro e todo mundo acha normal", comentou Maierovitch.

Não deixa de ser curiosa a recorrente pregação do presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique Cardoso contra o "pensamento único" que estaria grassando no país em favor do lulismo. Na segunda-feira, em um seminário em Belo Horizonte, o único presidente duas vezes eleito com maioria absoluta dos votos, detentor, em seu primeiro mandato, da mais sólida estrutura política que um governante democrático já teve no país, chegou a afirmar que o Brasil vive um momento de "extrema monopolização do poder". O quadro assustador que Fernando Henrique descreve para seu partido e seus aliados assemelha-se às análises que transitavam na oposição a seu governo nos anos 90. Também ali, na esteira de derrotas eleitorais, enxergou-se um governo de maioria acachapante no Congresso, com mídia dócil ou de baixa repercussão, e movimentos sociais cooptados ou impotentes. O PSDB chegou a ser associado à Gestapo. Nos anos 80, foi a vez do PMDB ser comparado ao PRI mexicano após as eleições de 1986, marcadas pelo Plano Cruzado. Em todos os casos, a tese da hegemonia não sobreviveu à eleição seguinte.

César Felício é correspondente em Belo Horizonte

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