terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Bancos centrais e o B de Brics :: Lourdes Sola

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A questão da autonomia dos bancos centrais volta ao centro do palco nos cenários global e doméstico por vias transversas. Nos Estados Unidos, a heterodoxia do Fed - sobretudo o afrouxamento monetário - motiva a direita republicana a contestar o mandato dual da instituição: mirar a estabilidade de preços e a maximização do emprego. A prioridade do Fed no cenário atual é contornar a ameaça da deflação, cujas consequências são destrutivas para o tecido social e para a ordem política. Do outro lado do Atlântico, o Banco Central Europeu, um dos falcões da ortodoxia, recorre a medidas heterodoxas também em nome do interesse público: a preservação do euro e da unidade monetária da Europa. Por sua vez, as autoridades da China se recusam a abdicar da apreciação artificial de sua moeda indexada ao dólar, para preservar o impulso exportador. Afirmam que cabe aos Estados Unidos fazer os ajustamentos difíceis: disciplinas fiscal e monetárias de cunho ultraortodoxo, o que equivale a deflação e mais desemprego.

Nesse cenário movediço é irônica a reação simplista das autoridades brasileiras às políticas do Fed. Querem-se de esquerda e keynesianas e empenharam-se, corretamente, em políticas anticíclicas para enfrentar a crise global. Mas responsabilizam os Estados Unidos por manipulação cambial, descartando assim três tipos de evidência pertinentes. Primeira, embora a desvalorização do dólar seja, de fato, um problema para os emergentes, cujas moedas se apreciam, ela é apenas um subproduto das políticas de re-flação do Fed. Segunda, a apreciação do real se deve também às oportunidades de investimento que os emergentes oferecem, não só à política monetária dos Estados Unidos. Terceira: a apreciação artificial da moeda chinesa serve bem a uma estratégia de crescimento fundada no impulso exportador, mas, por ser ultranacionalista, não serve à causa da melhora nas condições de governança global, em nome da qual nossas autoridades falam.

A relativa independência em relação aos Estados Unidos é uma das marcas registradas da tradição diplomática brasileira, avessa a alinhamentos automáticos (bandwagonning). Outra é o pragmatismo. Juntas, significam que a ênfase negativa deve recair sobre o "automático", por isso deve-se incluir também o desalinhamento automático com os Estados Unidos, típica do viés antiamericano. Diante de um quadro global instável, cabe ao B de Brics, com seu apreço pela paz cambial, cultivar nossos dotes de liderança no terroir do G-20: coordenando com outros emergentes democráticos soluções cooperativas para minimizar os efeitos de uma apreciação cambial.

O viés ideológico distorce a percepção dos nossos interesses também quando se trata de converter a autonomia operacional de fato do nosso Banco Central (BC) em autonomia de jure. Em menos de seis dias o tema foi trazido à tona. De um ângulo positivo, episódios que compõem um quadro de relativa continuidade: o aumento do compulsório dos bancos; as homenagens a Henrique Meirelles, a nomeação de Alexandre Tombini. Ao mesmo tempo, o parecer do senador Francisco Dornelles, que dá estatuto legal à autonomia operacional do BC, apresentado à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE) em 3/12, ilustra as dificuldades recorrentes sempre que a autonomia de jure da instituição entra em pauta.

Os cuidados do senador evidenciam as dificuldades, mais imaginárias do que reais, que enrijecem desnecessariamente o debate no Brasil. Se aprovada, a medida entraria em vigor apenas em 2015, valendo apenas para o(a) sucessor(a) da presidenta eleita. Os argumentos são sintomáticos: "em respeito à prerrogativa da presidente Dilma Rousseff", pois "poderíamos dar a impressão de estarmos jogando uma aura de desconfiança na presidente eleita, o que não queremos fazer" (Valor, 6/12). Tais cuidados atestam a permanência dos elementos conservadores de nossa cultura política, intensamente mobilizados quando se trata do tema. Por um lado, a reiteração da tendência a prorrogar a decisão, já observada oito anos atrás, quando da transição do governo FHC para o atual. Por outro lado, a identificação errônea entre um problema de construção institucional, a ser debatido à luz de uma perspectiva de longo prazo, com uma restrição à pessoa de quem exerce a autoridade constituída. Omite-se que a autonomia operacional de jure institucionaliza também os poderes do Conselho Monetário Nacional, órgão que determina as metas de inflação e cujos integrantes dependem da nomeação da presidente, ou seja, o ministro da Fazenda, o do Planejamento e o presidente do Banco Central.

Entre um viés ideológico e antiamericanismos, perdem-se de vista dois aspectos relevantes. Um, a importância do debate em torno ao desenho institucional que se quer para o nosso BC. Dois, o que podemos aprender com os Estados Unidos. Pois é em tempos de crises sistêmicas que o desenho institucional de uma instituição é posto à prova. É quando se revela sua capacidade de absorver choques sem ruptura institucional e sem perder eficácia em termos de governança.

A crise global hoje evidencia que a flexibilidade do Fed é inerente ao seu desenho institucional, ou seja, é inseparável de seu mandato dual. Os legisladores americanos, sob o impacto da crise de 1930, delegaram ao seu presidente e ao comitê que preside a responsabilidade e o poder (enormes) de compatibilizar estabilidade econômica com maximização do emprego. E em sintonia fina com as circunstâncias vigentes. Por isso nos anos 70, seu então presidente, Paul Volcker, confrontado com inflação desatada, pôde mirar o objetivo de estabilidade; enquanto Ben Bernanke, hoje, pode privilegiar a maximização da atividade econômica e do emprego - sem confrontar a Constituição. Sem antiamericanismos, deveríamos apreciar as vantagens desse desenho flexível.


Phd em Ciência Política pela Universidade de Oxford, professora aposentada da USP, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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