segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Noel Rosa, flor de Vila Isabel:: Ferreira Gullar

DEU NA FOLHA DE S. PAULO/ Ilustrada

A namorada Lindaura sofria nas mãos dele, pois a deixava em casa dizendo voltar logo e sumia por aí

Faz alguns meses, a Folha lançou um CD de Noel Rosa, abrindo uma coleção de música brasileira. Comprei-o e, quando o ouvi no meu carro, fiquei encantado, logo imaginei um espetáculo, com uma única cantora e alguns poucos músicos. Nada de grande show nem orquestra. Não: ela cantaria seus sambas imortais e, entre um e outro, falaria dele, de sua vida em Vila Isabel, de seus amigos de boemia e das pequenas loucuras que aprontava.

Mas ficou nisso. Aliás, não. Fui atrás de uma biografia do cantor, escrita por João Máximo e Carlos Didier, edição comemorativa de seu 80º aniversário de nascimento, que é muito mais que uma biografia.

Com suas 500 páginas, nos faz mergulhar num rico universo de compositores, cantores e instrumentistas e nos revela, ao mesmo tempo, os começos do rádio como difusor de nossa música popular, as relações profissionais e de amizade que resultaram num período de intensa criatividade musical, só comparável ao período da bossa nova.Tudo isso me deixou tão empolgado que cheguei a falar com Sérgio Cabral, mestre no assunto, do tal espetáculo com músicas de Noel.

E só então tomei conhecimento de que, neste ano de 2010, ele completaria cem anos de vida, se não tivesse morrido, em 1937, com pouco mais de 26 anos de idade.

Por isso mesmo, vários espetáculos e homenagens estavam sendo preparados e realizados. Logo, o show que imaginara -mais um entre muitos- não despertaria o interesse dos produtores já engajados na programação comemorativa dos cem anos de nascimento do artista.

Nem por isso deixei de me imaginar na plateia de algum teatro, ouvindo possivelmente Adriana Calcanhotto a interpretar "Com que Roupa", o primeiro sucesso de Noel.Noel o compôs com menos de 20 anos de idade e ele tomou conta da cidade, tocando nas rádios e nos alto-falantes tanto da praça Saenz Peña quanto da avenida Atlântica.

Tomou conta também do Carnaval daquele ano, dando início a uma série de sucessos que fariam de Noel um dos mais destacados sambistas daquela época. Ganhou tanto dinheiro que chegou a comprar um automóvel, no qual saía para conquistar as mocinhas namoradeiras.

E ainda buzinava para provocar os amigos, obrigados a fazer suas conquistas a pé.

Consideraram essa concorrência desleal, com que Noel concordou e, a partir de então, cada fim de semana, convidava um deles para a caçada motorizada.

Em Vila Isabel, moravam, além de Noel, Lamartine Babo, Nássara e Orestes Barbosa, entre outros. A figura mais famosa da patota era Francisco Alves, cuja voz encantava a todo mundo. Por essa razão, todos os compositores queriam ter músicas gravadas por ele. Valendo-se disso, mau-caráter que era, explorava-os, lhes comprando a parceria.

Os pais de Noel sonhavam com o filho formado em medicina. Ele não se fez de rogado.

Estudou, fez o vestibular e foi aprovado. Mas alguém imaginaria Noel Rosa, sentado num consultório, atendendo pacientes e receitando remédios? Ele, no entanto, achava que poderia conciliar o samba e a medicina.

Enquanto isso, passava as noites na companhia dos boêmios, a beber e a cantar sambas.

Certa madrugada, em São José dos Campos, de porre, saiu nu pelo corredor do hotel.

Tinha uma namorada, parente de um delegado de polícia, Lindaura, que sofria nas mãos dele, pois, a cada noite, a deixava em casa prometendo voltar logo e sumia. Ela, desesperada, saía atrás dele pelos bares e botecos e, quando o encontrava, estava já de porre a cantar e tocar violão numa roda de sambistas.

Ela queria casar; ele não. A mãe termina a expulsando de casa e os dois passam a noite indo e vindo num trem, até amanhecer. Finalmente, em face de tanta pressão, casam-se, para a infelicidade dela, já que quase nunca o tem a seu lado.

Continua a levar as noites bebendo e cantando nas rodas de malandros e, para piorar, se apaixona por Ceci, uma dançarina de boate, que depois o troca por um rapaz bonito e fino, que se chamava Mário Lago.

Assim foi que, comendo mal, dormindo pouco e tomando um porre por noite, contraiu uma tuberculose que o mataria rapidamente. No dia 4 de maio de 1937, morre na mesma Vila Isabel onde nascera. Se se chamasse Raimundo, talvez tivesse completado cem anos de vida ontem, no dia 11 de dezembro.

(Publicado em 12/12/2010)

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