sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O governador e a palavra do presidente:: Maria Cristina Fernandes

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Aprovada por 88% da população do Rio de Janeiro, de acordo com o Ibope, a operação que ocupou o Morro do Alemão, no Rio, deu ao governador Sérgio Cabral (PMDB) confiança suficiente para encurralar dois presidentes. Tirou da eleita a prerrogativa de nomear os escolhidos ao anunciar que seu secretário de Saúde viraria ministro. Em seguida, carimbou no atual a possibilidade de virar um homem sem palavra se não vetar o projeto que redistribui os royalties do petróleo aprovado nesta madrugada pela Câmara.

Menos de 48 horas depois da bem-sucedida operação policial, o governador já estava em Brasília. Ao sair da reunião, à costura política necessária para tornar a indicação de seu secretário de Saúde, Sérgio Côrtes, uma escolha que contemplasse todo seu partido, Cabral preferiu a tática do fato consumado. Do encontro com Dilma Rousseff sairia com a versão de que, a muito custo, fora convencido pela presidente eleita de que precisava abrir mão de seu secretário de Saúde, Sérgio Côrtes, para o ministério. Ao desagradar ao mesmo tempo a dona da bola e o PMDB, o mais importante governador aliado do Palácio do Planalto só consumou mesmo o fato de que não se faz política sem alianças. Precisou de dois dias e de um revertério no Congresso para pedir desculpas.

O imbróglio do ministério da Saúde ainda estava por ser resolvido quando o governador fluminense resolveu novamente colocar a boca no trombone. Poucas horas depois da aprovação na madrugada de ontem, do projeto que redistribui os royalties do petróleo a partir dos critérios dos Fundos de Participação de Estados e Municípios, que prejudica as regiões produtoras, Cabral estava a postos na CBN: "O presidente Lula é um homem de palavra e deu sua palavra publicamente de que vetaria essa barbaridade. E se há alguém nesse país em cuja palavra podemos acreditar é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva". Lula pode sancionar a lei ou vetá-la, parcial ou integralmente. O governador do Rio trouxe ao conhecimento público sua consideração de que o presidente da República, ao exercer suas atribuições constitucionais, tem chances de virar um homem sem palavra.

Está claro que nem o Rio de Janeiro pode perder R$ 7 bilhões da noite para o dia nem os recursos do Fundo Social, reserva de futuro para o país, devem ficar reféns da guerra federativa. E, por isso, o veto aparece como a saída mais provável. O placar da votação (204 x 66), no entanto, deixa claro que os representantes da maioria, os mesmos que o governador do Rio já chamou de covardes e burros durante a tramitação do projeto, não vão arrefecer a pressão na próxima legislatura para que o resto do país possa se beneficiar de maneira mais equitativa dos recursos do pré-sal.

O declínio do modelo em que o tráfico de drogas no Rio está assentado, com domínio territorial e permanente recrutamento de um exército de jovens desvalidos, tem no ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, seu mais eloquente defensor.

A tese advoga que o custo de manter esse modelo eleva-se pela maior presença do Estado nas comunidades - com os combates policiais, as UPPs e a adoção de políticas públicas que abram perspectivas de futuro à juventude recrutada pelo crime. A tendência seria a de que o negócio das drogas ilícitas se aproxime mais de uma dinâmica varejista discreta e desarmada, vigente nos países mais ricos.

Essa dinâmica não impediria o tráfico do futuro de se associar às milícias, cuja carteira de negócios hoje inclui transporte alternativo, gás, água e sinal de TV a cabo pirateado, mas se impõe mesmo por oferecer proteção contra elas mesmas em aliança com policiais.

O enredo já produziu um filme, mas, ao contrário de Tropa de Elite 2, cuja semelhança com fatos e personagens reais é mera coincidência, a radiografia contida nas 282 páginas do relatório da CPI das Milícias da Assembleia Legislativa do Rio traz nomes e sobrenomes da associação do crime com o poder político. Foi aprovado há dois anos com 57 recomendações. Vão desde o indiciamento de vereadores até o efetivo cadastramento de revendedores pelo sindicato de empresas distribuidoras de gás.

Uma das sugestões de mais difícil cumprimento é a melhoria dos salários de policiais. É verdade que se baixos soldos fossem condição suficiente para maus policiais, o Brasil inteiro seria uma grande Cidade de Deus. Mas com imensos contingentes policiais ganhando menos do que R$ 1 mil, é tão difícil exigir tolerância zero com os bicos que levam às milícias quanto encontrar os milhões do tráfico que escoaram pela operação do Morro do Alemão.

Tramita no Congresso uma proposta tão radical contra os baixos soldos policiais quanto aquela que a Câmara acabou de aprovar para a redistribuição dos royalties do petróleo. É a proposta que ficou conhecida como PEC 300. O texto indexa os salários policiais de todo o país àqueles do Distrito Federal. Os Estados não blefam ao argumentar que não têm condição de arcar com uma despesa extra que ultrapassa os R$ 40 bilhões, mas o país não pode ter a ilusão de que a saída pode tergiversar a questão.

Depois de esbarrar na reação dos governadores ao piso nacional dos policiais, o Ministério da Justiça apresentou o Pronasci, que prevê, por exemplo, a concessão de bolsas para profissionais que participarem de cursos de formação profissional e um programa habitacional para a categoria. De avanço lento, o Pronasci não agradou os policiais que se aferraram à PEC 300. Esta acabou sendo desmoralizada pelos métodos de seus principais lobistas, como o líder do PDT, o deputado federal Paulo Pereira da Silva, que chegou a sugerir que o aumento do salário dos policiais fosse indexado à receita da legalização dos bingos.

O piso de R$ 4 mil não foi suficiente para transformar o Distrito Federal numa ilha de decência, mas a solução do problema que tem no Rio sua capital federal terá que enfrentar a batalha da corrupção. É a única maneira de evitar que essa audiência, galvanizada pela audiência ao vivo e em cores, não acabe cativa de um Estado policial.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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