sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O mito Lula:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

A despedida do presidente Lula transmitida ontem em cadeia nacional de rádio e televisão tem pontos comuns com dois outros documentos que já fazem parte da história política recente do país, a carta-renúncia de Jânio Quadros de 25 de agosto de 1961 e, principalmente, a carta-testamento de Getulio Vargas, de 23 de agosto de 1954. Os momentos políticos são diferentes, evidentemente, mas os três textos são narrativas de corte populista e espelham a vontade de permanecer com papel ativo na política brasileira.

O deputado federal Chico Alencar, do PSOL do Rio, reassumiu momentaneamente seu lado de professor de história para identificar algumas dessas semelhanças.

O famoso "saio da vida para entrar na História" de Getulio tem como similar um "saio do governo para viver a vida das ruas".

A presença quase mística, sempre que o "povo sofrido" estiver humilhado, como Vargas destacou, tem o sucedâneo no "onde houver um brasileiro sofrendo quero estar espiritualmente ao seu lado", e "que minha lembrança lhes traga um pouco de conforto".

O tom épico, com alguma pitada dramática, também esteve presente na carta-renúncia de Jânio, naquele agosto de 1961.

De fato, existem essas e muitas outras semelhanças, sobretudo de tom populista, embora o texto da carta-testamento seja superior em termos de estilo e ênfase.

Getulio Vargas, sabendo que, com o suicídio, transformava uma derrota em vitória política, escreveu: "E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém". E com a certeza de que saía "da vida para entrar na História".

Jânio Quadros, "vencido pela reação", deixou o governo "com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande família do Brasil", encerrando "esta página da minha vida e da vida nacional", mas, ao que tudo indica, esperava que a renúncia não fosse aceita para voltar ao governo com plenos poderes.

Todos os três colocam-se como defensores do povo. Jânio afirma na carta-renúncia: (...) "baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo".

Lula diz que se algum mérito teve foi "haver semeado sonho e esperança". "Meu sonho e minha esperança vêm das profundezas da alma popular - do berço pobre que tive e da certeza que, com muita luta, coragem e trabalho, a gente supera qualquer dificuldade. E quando uma pessoa do povo consegue vencer as dificuldades gigantescas que a vida lhe impõe, nada mais consegue aniquilar o seu sonho, nem sua capacidade de superar desafios".

Já Getulio, na sua carta-testamento, afirma: "Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo".

Tanto Lula quanto Getulio atacam "as elites". Escreveu Getulio: "À campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente".

Lula também usou a Petrobras na despedida: "Também estamos fazendo os maiores investimentos mundiais no setor de petróleo, principalmente a partir da descoberta do pré-sal, que é o nosso passaporte para o futuro".

E atacou os que governaram o país, segundo ele, com visão elitista: "Se governamos bem, foi principalmente porque conseguimos nos livrar da maldição elitista que fazia com que os dirigentes políticos deste grande país governassem apenas para 1/3 da população. E se esquecessem da maioria do seu povo, que parecia condenada à miséria e ao abandono eternos".

Getulio Vargas deixou em sua carta-testamento um registro emocionado da ligação com o povo. "Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater a vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta".

Lula foi pelo mesmo caminho: "Minha felicidade estará sempre ligada à felicidade do meu povo. Onde houver um brasileiro sofrendo, quero estar espiritualmente ao seu lado. Onde houver uma mãe e um pai com desesperança, quero que minha lembrança lhes traga um pouco de conforto. Onde houver um jovem que queira sonhar grande, peço-lhe que olhe a minha história e veja que na vida nada é impossível. Vivi no coração do povo e nele quero continuar vivendo até o último dos meus dias".

O Lula da fase de líder sindicalista defendia o fim da Era Vargas, dizia que a CLT é o "AI-5 dos trabalhadores" e ironizava Vargas como sendo o "pai dos pobres e mãe dos ricos".

Hoje, a CLT e a unicidade sindical (apenas um sindicato por categoria em cada município), marcos da Era Vargas, persistem e foram aprofundados com o reconhecimento das Centrais Sindicais e o aparelhamento do Estado, atualizando o peleguismo e o corporativismo.

E Lula tenta virar um "Vargas vivo", o que mais temia Fernando Henrique Cardoso na crise do mensalão, referindo-se à possibilidade de um impeachment transformar Lula em vítima, assim como o suicídio transformou o sentimento do povo em relação a Getulio Vargas.

A coluna volta a ser publicada no dia 4 de janeiro. Feliz Natal a todos.

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