segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O paradoxo Lula: Fenômeno político, governo modesto:: Míriam Leitão

DEU EM O GLOBO

Truques dos números oficiais e carisma do presidente inflam desempenho econômico de gestão que aumentou gastos e investiu menos do que diz

Na economia, o mito Lula não se sustenta em fatos.

Ele é um bem-sucedido resultado da repetição diária de uma versão triunfalista e de truques numéricos. Em 2010, o país teve o maior crescimento em 25 anos; mas em parte porque em 2009 caiu 0,6%, a pior recessão desde 1990.

O presidente termina o mandato com mais de 80% de popularidade, mas em outubro de 2005 apenas 31% diziam que o governo era bom ou ótimo. No primeiro ano, Lula aumentou o superávit primário; nos últimos anos, promoveu uma orgia de gastos. Consolidou um amplo programa de transferência de renda aos pobres, e fez forte doação de recursos públicos aos ricos.

Atingiu a menor taxa de desmatamento, mas fincou várias estacas no coração da Amazônia. Quem vê só a cena final, não entende o filme.

Quando lançou o primeiro PAC, em 2007, o governo disse que seriam investidos mais de R$ 600 bilhões, mas investiu menos de 1% do PIB por ano, em média. É preciso paciência para separar a fanfarra dos fatos. Apenas 9% do total é investimento público federal.

Mas o governo põe no mesmo pacote investimentos de estatais, contrapartidas estaduais, projetos privados e até o esforço das famílias. Quem pegou um empréstimo no banco e comprou um imóvel, novo ou usado, ou reformou a casa entrou na conta do PAC.

Aliás, se somar todo o investimento em logística — rodovias, portos, aeroportos — e mais os de energia — incluindo- se petróleo — dá menos do que o total de financiamentos para compra ou reforma de casa. A propósito: apenas 0,2% é de casa popular.

Aquele apartamento que você comprou com seu esforço e pagará, com juros, por 20 anos, o governo Lula incluiu hoje como ação concluída no balanço do PAC. Os financiamentos imobiliários, mesmo junto aos bancos privados, são 48% do PAC. É óbvio que dívidas das famílias não são investimento público. Para confundir mais, o governo muda o cronograma das ações para que elas não apareçam como atrasadas. Dá muito trabalho descobrir o truque embutido em cada número do governo Lula. A verdade está em estatísticas como as do IBGE que mostram que, em saneamento, subiram de 56% para 59% os domicílios com acesso a redes de esgoto. Apenas isso.

Não houve a revolução de investimento público que a propaganda diz.

Os gastos de pessoal, previdência e custeio aumentaram sempre acima do PIB, e são a pior herança que o presidente Lula deixa para a sucessora. O gasto não financeiro total da União aumentou 145% entre 2002 e 2009. O número de funcionários civis e militares aumentou em 155 mil. Só de DAS foram 3.200 a mais. De cargos em comissão e funções gratificadas foram 15 mil a mais. Criou 10 ministérios ou secretárias com status de ministério.

O governo inchou e aparelhou a máquina.

A carga tributária subiu três pontos percentuais do PIB. E o país continua tendo déficit nominal.

A projeção do Brasil no exterior se ampliou com a diplomacia presidencial, mas o país entrou em frias como a do apoio ao projeto nuclear do Irã.

Sacrificou princípios por uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, que não conseguiu.

No governo Lula foram desmatados 125 mil km² de floresta amazônica. Isso equivale a uma área 82 vezes maior que a cidade de São Paulo, ou ao território de Portugal e Bélgica somados. É 18% menos do que o total desmatado no governo anterior, mas o risco é o rumo mudar porque foram lançadas obras que levam o eixo do desmatamento para cada vez mais dentro da floresta, como a hidrelétrica de Belo Monte e a BR 319, de Manaus a Porto Velho.

O consumo em alta explica grande parte do mito Lula. As compras cresceram porque a estabilidade foi mantida, a oferta de crédito dobrou, o salário mínimo aumentou 54% em termos reais.

Além disso houve o Bolsa Família.

Milhões de brasileiros entraram no mercado de consumo, mas o marco inicial do processo de retirada de pessoas da pobreza e formação do mercado do consumo de massas foi o Plano Real. Naquela época, o total de pobres caiu de 47% para 38%. No governo Lula, caiu para 25%.

O Fome Zero foi abandonado em favor do Bolsa Família, uma tecnologia mais atualizada, testada pelo Bolsa Escola no Brasil e em programas similares no México. Teve o mérito de unificar projetos anteriores, melhorar o cadastro dos pobres e ampliar a rede de proteção social.
Mas a política exige correção urgente. Das suas distorções, a pior é a de apresentar o benefício como concessão de um líder paternalista, em vez de ser o direito do cidadão. A queda do desemprego é um dos grandes ganhos, mas o desemprego entre jovens de 18 a 24 anos ainda está na espantosa marca dos 14%. Na última PNAD, 41% dos trabalhadores ainda estavam na informalidade.

O mundo ajudou nos primeiros cinco anos, quando houve o melhor momento recente da economia mundial.

De 2003 a 2007, o mundo cresceu de forma acelerada, o fluxo de capitais para os países emergentes teve um salto exponencial, o comércio internacional dobrou e os preços dos produtos que o Brasil exporta explodiram.

O Banco Central acumulou reservas.

Isso foi fundamental para enfrentar a crise mundial que explodiu em 2008. Mas 2010 termina com um déficit em transações correntes de US$ 50 bilhões. Nos primeiros anos o Brasil cresceu menos que o mundo. Nos oito anos, cresceu menos que a América Latina e os países emergentes. Os juros eram — e ainda são — os mais altos do mundo.

O tamanho do Estado na economia voltou a crescer, e a ideia de agências reguladoras independentes foi destruída.

Não houve uma única boa reforma no atual governo. A da previdência dos funcionários do setor público foi uma grande batalha inicial. O governo Lula conseguiu aprová-la, em batalhas duras.

No final, foi muito barulho por nada.

A reforma jamais foi regulamentada, e o país voltou à estaca zero.

Só uma vez antes na História deste país houve tanta transferência de dinheiro público para grandes empresas: no governo militar. O BNDES recebeu um reforço de R$ 200 bilhões diretamente do Tesouro para emprestar às empresas. Um dinheiro que custa ao governo o dobro do que ele cobra dos grandes tomadores. A diferença de taxas é doação aos ricos.

O BNDES fez escolhas polêmicas: financiou a concentração empresarial, a compra de uma empresa por outra, sem nenhum ganho para o país ou o consumidor, nem um único novo emprego gerado. Algumas eram empresas familiares. Há desastres maiores: o banco comprou ações e emprestou dinheiro para o frigorífico Independência, que quebrou logo após receber o dinheiro. As estatais e os fundos de pensão de estatais entraram de sócios para estatizar o risco em projetos perigosos como as hidrelétricas da Amazônia, entre elas, Belo Monte. No projeto do Trem Bala está escrito que, além do dinheiro barato, haverá R$ 5 bilhões de doação para o grupo vencedor caso haja menos passageiros do que o previsto.

Lula, o metalúrgico, foi um líder de mobilização na Presidência. Usou todo o seu carisma e capacidade de comunicação para garantir o apoio ao seu governo num arco que atravessou classes sociais. Lula, o presidente, se entregou incessantemente ao esforço de autolouvação e de negação de qualquer mérito em governos anteriores. Teve sucesso impressionante em obscurecer os fatos. A História permitirá que se veja o governo Lula com seus méritos e defeitos.
Ele manteve as conquistas da estabilidade da moeda, ampliou o consumo e estruturou melhor a rede de apoio social. Aprofundou o aparelhamento e o uso da máquina pública para atender a interesses partidários e pessoais e capturou os movimentos sociais, tornando-os dependentes do dinheiro público. Fortaleceu o novo Brasil que nasceu no Real, mas preservou a sombra do velho Brasil.

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