sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Sobre o caso Cesare Battisti:: Luiz Sérgio Henriques

DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

O contexto italiano dos anos 1970, no qual se desenrolaram os episódios que levaram à condenação de Cesare Battisti, tem sido descrito com uma certa superficialidade nesta nova e acirrada batalha entre defensores e críticos da recente medida do ministro Tarso Genro, que deu refúgio político àquele militante do PAC — os Proletari armati per il comunismo. Supõe-se muitas vezes que a Itália de então fosse uma ditadura e que se justificava, contra tal ditadura, a resistência armada, ou ainda que se viviam tempos revolucionários, a serem consumados com o recurso à “crítica das armas”, pretensa antessala do comunismo. Supõe-se ainda que, hoje, tal como dito pelo ministro Tarso Genro, a Itália viva algo semelhante a um estado de exceção, incapaz de zelar pela integridade física de um prisioneiro ou, então, disposto a fazer desencadear contra ele injustificável perseguição política.

São suposições que merecem, pelo menos, alguns reparos. A Itália dos anos 1970, mesmo tendo recorrido a leis de emergência na luta contra o terror (tanto o chamado “negro”, de direita ou extrema direita, quanto o chamado “vermelho”, de esquerda ou extrema esquerda), jamais cancelou a vigência da ordem democrática e constitucional. Na verdade, havia uma “democracia de partidos” em pleno funcionamento, e mais do que isso: os anos 70 do século passado representaram, por assim dizer, o auge e o rápido declínio da possibilidade de entrada no governo de um partido tão significativo quanto o antigo PCI. E isto por uma série complexa de motivos.

Por décadas, como se sabe, este partido desempenhou importante papel na reconstrução da Itália, depois do desastre do fascismo e da guerra: o PCI, mas também o PSI e o movimento sindical representaram forças poderosas no processo de modernização e democratização de um país devastado pelo fascismo e pela guerra: fizeram com que o Estado italiano começasse finalmente a superar taras históricas, incluindo as classes subalternas na sua estrutura, legitimando-as como atores de fato e de direito da cena política. E mesmo a Democracia Cristã, sob o impacto deste desafio, não se comportou como partido tradicional da direita, ao reunir massas católicas, conservadoras ou moderadas, e legitimar, também por este lado, o regime democrático e os conflitos a ele inerentes.

Os anos 1970, vistos como o auge deste audacioso movimento de democratização, transcorreram, na política, sob a expectativa do sorpasso (a ultrapassagem) dos democratas cristãos por parte dos comunistas, que pareciam prestes a se tornarem a principal força política e eleitoral. E, naturalmente, a presença dos comunistas, no centro de um novo bloco de forças, representaria o início da via italiana para o socialismo, teorizada pela velha direção togliattiana, ou ainda o ponto de partida para a introdução de “elementos do socialismo”, na visão de Enrico Berlinguer, um dos últimos grandes dirigentes do comunismo histórico.

Este, definitivamente, não é o quadro de um estado de exceção. Bem ao contrário, tratava-se de uma sociedade e de um Estado em ebulição, nos quais se testava a possibilidade de uma transição democrática para uma sociedade de tipo socialista, sob a égide da democracia política, das liberdades e do respeito às leis. Na frase de Berlinguer, uma frase que por si só é quase um programa político ainda hoje, a democracia devia ser “um valor universal”, não um expediente tático que se atira na lata do lixo uma vez obtido o poder. Um elemento fundamental, portanto, do próprio socialismo, que não devia ter as estruturas viciadas do partido único ou do partido-Estado.

Sabe-se hoje que aquela possibilidade de transição era frágil, e por um conjunto grande de razões. Primeiro e fundamentalmente, o povo italiano, chamado a se pronunciar regularmente em eleições livres, jamais permitiu aquele sorpasso. De modo consistente e ao longo dos anos, a formação de um bloco alternativo ao da Democracia Cristã nunca se mostrou viável — e só numa eleição para o Parlamento europeu, já nos anos 1980, é que o PCI teria mais votos do que a DC, mas isso, registre-se, sob o impacto da morte em campanha do próprio Berlinguer. Em segundo lugar, eram os anos em que se iniciou a grande reestruturação econômica e política do capitalismo, depois do impetuoso desenvolvimento do pós-guerra e do compromisso entre capitalismo e democracia a que dera lugar. Os “caminhos nacionais” se estreitavam e se tornavam impraticáveis na Europa, e o próprio “eurocomunismo” de Berlinguer, que de certa forma tinha consciência do fim destes caminhos nacionais, restou dramaticamente isolado: sem o apoio dos demais partidos comunistas tradicionais (e obviamente sem o apoio da URSS) e sem os meios para agir no ambiente sob domínio dos Estados Unidos e do Pacto Atlântico.

Um terceiro elemento se juntou a este conjunto de fatores, e com ele entramos plenamente no nosso tema. Setores subversivos da direita intensificaram sua velha “estratégia da tensão”, iniciada ainda nos anos 1960, partindo para uma sequência de atentados e carnificinas que não poupavam vítimas civis e até buscavam intensificar o número destas. Era a marca do “terrorismo negro”, a de matar indiscriminadamente, como quando, já no final de 1980, explodiu-se a estação ferroviária de Bolonha — uma infame “punição” contra uma cidade símbolo do PCI e então modelo de vida cívica e de economia plural e inovadora.

A estes setores somou-se, gravemente, uma miríade frequentemente confusa de organizações de extrema esquerda, das quais a mais conhecida são as Brigadas Vermelhas, responsáveis pelo ainda hoje obscuro e sob muitos aspectos inexplicado assassinato de Aldo Moro, o político democrata-cristão mais aberto a entendimentos com o PCI. A marca deste “terrorismo vermelho” era uma certa seletividade: assassinavam-se políticos e sindicalistas, inclusive do PCI, grandes dirigentes industriais e pequenos comerciantes. Às vezes, a seletividade tinha algum requinte sádico, como quando se adotou uma nova tática para a qual se criou o vocábulo “gambizzare”. Como se sabe, “gamba” é “perna”, em italiano. Alvejar joelhos e pernas dos adversários passou a ser algumas vezes a nova tática dos que cogitavam chegar ao socialismo ou ao comunismo pela luta armada. Considero isso particularmente cruel. Uma perversão da política. Coisa de criminosos comuns.

Não se trata de “criminalizar a oposição ou o dissenso”, como hoje tantas vezes se diz a propósito de tudo e de nada. Por tudo o que dissemos, pode-se muito bem constatar que, na tarefa comum de desestabilizar o Estado de Direito e fazer retroceder a luta política na Itália, retirando o protagonismo das massas e barrando o notável processo de socialização da política então em andamento, aliaram-se objetiva e subjetivamente o terrorismo vermelho e o negro. Uma aliança que muitas vezes foi tecida com instrumentos fornecidos por setores desviados do Estado — particularmente os serviços secretos —, por lojas maçônicas como a tristemente célebre P-2, por espiões e agentes de ambos os lados em conflito na Guerra Fria e, last but not least, pela criminalidade comum das variadas máfias e camorras. Não exagero nem julgo fatos específicos, mas Cesare Battisti é uma criatura deste momento e deste contexto. Nem mais nem menos. Gente como ele cometeu crimes iguais ou semelhantes aos que lhe são imputados. Crimes contra pessoas comuns e, simultaneamente, contra a democracia e contra o Estado de Direito.

A democracia italiana defendeu-se deste assalto violento sem se desviar do regime constitucional. A atitude do PCI, então hegemônico entre as forças de esquerda, foi decisiva para que se isolassem e derrotassem os setores subversivos: a atitude de uma força de esquerda madura e responsável, atenta à defesa do seu programa fundamental, que, na verdade, era a Constituição republicana feita sob a presidência de Umberto Terracini, um grande comunista amigo de Gramsci e que, por sinal, recebeu uma pena ligeiramente superior à deste último no processone fascista contra os dirigentes do PCI nos anos 1920. A involução autoritária, objetivo nem tão oculto dos terroristas de direita e de esquerda, foi impedida, e é em momentos desse tipo que se afirma, ou não, a capacidade de direção nacional de uma grande força política, mesmo eternamente condenada à oposição pelos constrangimentos da Guerra Fria.

Hoje o PCI não mais existe, mas é perfeitamente possível afirmar que as forças que majoritariamente o compunham se encontram, ao lado de católicos democráticos, no recentemente criado Partido Democrático, depois da experiência do Partido Democrático da Esquerda e dos Democráticos de Esquerda. A Itália tem um governo de centro-direita e à sua frente está uma figura particularmente polêmica, a de Silvio Berlusconi. A coalizão no poder inclui forças que expressam um persistente e não muito disfarçado mal-estar com a própria unidade nacional, como é o caso da Liga Norte. Expressa-se nesta Liga até mesmo um racismo intraétnico contra os italianos do Sul. A luta política, pois, é duríssima, as tensões sociais são inéditas, mas nada disso autoriza a caracterizar como fascista ou pró-fascista o Estado italiano. Na presidência deste Estado encontra-se um homem do porte de Giorgio Napolitano, egresso do PCI, assim como, nos anos 1970, à frente do Estado estava Sandro Pertini, um socialista histórico com passagem relevante numa luta armada de verdade, travada por motivos históricos irrefutáveis — a Resistência contra o fascismo e o nazismo.

Deduz-se facilmente que o atual governo de centro-direita, o terceiro dirigido por Berlusconi, está imerso em contradições graves, embora não tenha chegado ao poder através de golpe de Estado e o país continue sendo, como é acaciano observar, uma democracia, apesar de todas as suas imperfeições. Gostaria de chamar a atenção para uma dessas contradições do governo Berlusconi, um fato que talvez ainda não tenha sido devidamente comentado e divulgado no nosso país.

Tal contradição, que aqui nos interessa, encarna-se num personagem: tem nome e responde por atos tão graves quanto os imputados a Cesare Battisti. Jorge Troccoli — este o personagem — foi capitão dos Fuzileiros Navais do Uruguai e contribuiu para o desaparecimento de muitos oposicionistas da ditadura uruguaia, entre os quais seis cidadãos italianos. Troccoli foi um dos agentes da Operação Condor, uma “internacional” do terrorismo de Estado em ação nos países do Cone Sul dominados pelas ditaduras militares nos anos 1970 e 1980. O curioso é que o governo de Berlusconi negou a extradição de Troccoli para o Uruguai, alegando dupla cidadania. Fora este último aspecto, o caso Troccoli tem muitas semelhanças com o de Battisti. Não faltaram pressões diplomáticas do governo uruguaio, recursos às instâncias do Judiciário italiano, etc., mas o governo de Berlusconi parece irredutível na sua decisão sobre Troccoli, “o Battisti uruguaio”, no dizer do jornal L’Unità. E se trata de um episódio recente, cujas escaramuças diplomáticas e judiciárias mais dramáticas ocorreram em 2008.

No fundo, diante de situações como estas, volto a pensar num homem como Berlinguer. Um homem de partido, sem dúvida um comunista que aos olhos de hoje se diria tradicional, mas cuja formação moral, cuja reflexividade e até certa melancolia talvez o tenham poupado de ilusões mais graves quanto às virtudes supostamente imaculadas dos seus partidários e aos defeitos pretensamente insuperáveis dos seus adversários. Um líder cujo carisma talvez residisse no anticarisma, no apelo ao que havia de mais sensato, razoável e inteligente nos seus amigos, partidários e até mesmo nos que a ele e ao PCI legitimamente se opunham. Precisamos de homens e mulheres assim, que apelem, com grande autoridade moral e sem ambiguidade, ao caráter universal de alguns valores básicos. Sem isso, o que nos espera é a agitação estéril dos sectarismos. De direita ou de esquerda.

Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.

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