“Aqueles que travamos a luta armada contra a ditadura – agravando-a - e que cometemos erros políticos graves, entre os quais seguir uma ilusão ideológica que poderia ter levado a uma ditadura de outro tipo, não temos nem interesse nem autoridade para reabrir essa Caixa de Pandora”.
(Alfredo Sirkis, vereador no Rio (PV) no artigo “Rever a anistia?”, ontem, no jornal O Globo)
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
Reflexão do dia - Sirkis
Merval Pereira :: O PSDB e o pós-Lula
DEU EM O GLOBO
A eleição presidencial de outubro é muito mais do que a primeira em 20 anos em que o nome de Lula não aparecerá na cédula eletrônica. Ela marca o fim de uma era política que tem nele o maior expoente, e que, nos últimos 25 anos, desde a redemocratização, foi muito mais influenciada por nomes do que por partidos políticos. Com a extinção das siglas partidárias pela ditadura, sumiram PTB, PSD, UDN para dar lugar a Arena e MDB, que hoje se desdobraram em vários outros partidos, todos com uma história política ou muito recente, como PT e PSDB, ou distorcida, como o próprio PTB, que Brizola tentou reerguer, mas que acabou ressurgindo no cenário político graças a uma manobra de Golbery do Couto e Silva, então chefe do Gabinete Civil de Geisel, que conseguiu que a sigla fosse para a deputada Ivete Vargas, obrigando Brizola a inventar o PDT
O DEM, novo nome da Frente Liberal, que saiu do ventre da Arena para apoiar a vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral, não resistiu à perda do poder, não chegou a se estruturar como partido político e já está quase desaparecendo.
Os grandes personagens dos últimos anos, da geração de políticos da Nova República, já morreram, caso de Tancredo Neves, Antonio Carlos Magalhães, Brizola, Ulysses Guimarães, ou continuam influentes, mas sem expectativa de poder pessoal, como Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco, Pedro Simon.
O presidente do Senado, José Sarney, é talvez o último das velhas “raposas políticas” em atividade.
O próprio Lula, que foi o protagonista dos últimos anos, pode não vir a se candidatar novamente em 2014, um pouco pela idade — estará com 70 anos —, mas mais pela própria dinâmica da política.
O governador de São Paulo, José Serra, virtual candidato tucano à sucessão de Lula, terá também nesta eleição provavelmente a última chance de chegar à Presidência da República — está com 68 anos —, embora em política seja difícil uma previsão desse tipo.
No entanto, o que é possível prever é que a era pós-Lula que se inicia em outubro tem uma geração nova de políticos que depende do resultado da eleição para definir o rumo de suas carreiras.
Caso a candidata oficial, Dilma Rousseff, vença as eleições, é muito provável, a não ser que seu governo seja um desastre, que o PT permaneça no governo por mais oito anos, o que significará quase um final de carreira para uma série de políticos do PSDB e do DEM: Tasso Jereissati, Arthur Virgílio, Agripino Maia, Rodrigo Maia, Jutahy Junior, e mesmo líderes do PMDB dissidente como Jarbas Vasconcellos.
O mais afetado por um resultado adverso será o atual governador de Minas, Aécio Neves, a quem de nada adiantará ser um senador muito bem votado e chegar a um Congresso dominado pela situação, fazendo parte de um partido derrotado mais uma vez em nível nacional.
A não ser que mude de partido, Aécio seria um senador a mais na oposição minoritária, e não teria condições políticas para pleitear com um mínimo de chances a eleição à Presidência em 2014, contra a presidenta Dilma Rousseff tentando a reeleição.
Claro que sempre é possível imaginar um cenário em que o governo Dilma seja reprovado pela opinião pública, abrindo a brecha para a volta do PSDB ao poder.
Mas mesmo assim em 2014 existe o fantasma de Lula, que pode ser chamado para restaurar a imagem do PT e, presumivelmente, continuará sendo uma liderança importante na política brasileira.
A permanência do PT no poder abrirá, por outro lado, uma clareira política para diversas lideranças também jovens do partido e seus aliados, como os governadores de Pernambuco, Eduardo Campos, e da Bahia, Jacques Wagner, ou o senador Aloizio Mercadante, ou o deputado e ex-ministro Antonio Palocci, ou o governador do Rio, Sérgio Cabral, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, ou o deputado Ciro Gomes e outras lideranças emergentes que, à sombra do lulismo, darão as cartas na política nacional nos próximos anos.
Mesmo na oposição ao lulismo há nomes novos surgindo fora do eixo PSDB-DEM, como o da ministra Marina Silva, à frente do Partido Verde.
Há quem considere mesmo que é um engano considerar que a era pós-Lula começa com sua saída do poder, pois ele continuará a ter influência incontrastável na política brasileira, a exemplo de Getulio Vargas.
Na crise do mensalão, quando parecia que Lula não se recuperaria, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso orientava a oposição a não pressionar em busca do impeachment por duas razões: o receio de uma reação dos chamados “movimentos sociais”, e a possibilidade de, destituído, Lula se transformar em um “Getulio vivo”, numa alusão à morte de Getulio, que provocou uma comoção nacional.
Na tese de que ele continuará tendo influência duradoura na política nacional, Lula será na verdade um “Getulio vivo”, controlando o “lulismo”.
O presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro, diz que toda essa mudança de geração se dará sem o PT, que considera um partido em decadência política e com uma imagem ruim junto ao eleitorado.
Todas essas digressões passam pela cabeça dos principais líderes do PSDB, que começam a se organizar para a campanha presidencial de José Serra.
Eles sabem que correm o risco de ver o partido se desmilinguir com mais uma derrota nacional, ao contrário do PT que, mesmo com todas as vicissitudes que enfrentou nos últimos anos, continua com uma máquina partidária mobilizada pela candidatura de Dilma, mesmo que ela não fosse a candidata dos sonhos da legenda.
Atribui-se ao governador paulista uma queixa permanente à incapacidade da oposição de criar fatos políticos, enquanto o PT estaria sempre em atividade, unido em torno da candidatura oficial.
A eleição presidencial de outubro é muito mais do que a primeira em 20 anos em que o nome de Lula não aparecerá na cédula eletrônica. Ela marca o fim de uma era política que tem nele o maior expoente, e que, nos últimos 25 anos, desde a redemocratização, foi muito mais influenciada por nomes do que por partidos políticos. Com a extinção das siglas partidárias pela ditadura, sumiram PTB, PSD, UDN para dar lugar a Arena e MDB, que hoje se desdobraram em vários outros partidos, todos com uma história política ou muito recente, como PT e PSDB, ou distorcida, como o próprio PTB, que Brizola tentou reerguer, mas que acabou ressurgindo no cenário político graças a uma manobra de Golbery do Couto e Silva, então chefe do Gabinete Civil de Geisel, que conseguiu que a sigla fosse para a deputada Ivete Vargas, obrigando Brizola a inventar o PDT
O DEM, novo nome da Frente Liberal, que saiu do ventre da Arena para apoiar a vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral, não resistiu à perda do poder, não chegou a se estruturar como partido político e já está quase desaparecendo.
Os grandes personagens dos últimos anos, da geração de políticos da Nova República, já morreram, caso de Tancredo Neves, Antonio Carlos Magalhães, Brizola, Ulysses Guimarães, ou continuam influentes, mas sem expectativa de poder pessoal, como Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco, Pedro Simon.
O presidente do Senado, José Sarney, é talvez o último das velhas “raposas políticas” em atividade.
O próprio Lula, que foi o protagonista dos últimos anos, pode não vir a se candidatar novamente em 2014, um pouco pela idade — estará com 70 anos —, mas mais pela própria dinâmica da política.
O governador de São Paulo, José Serra, virtual candidato tucano à sucessão de Lula, terá também nesta eleição provavelmente a última chance de chegar à Presidência da República — está com 68 anos —, embora em política seja difícil uma previsão desse tipo.
No entanto, o que é possível prever é que a era pós-Lula que se inicia em outubro tem uma geração nova de políticos que depende do resultado da eleição para definir o rumo de suas carreiras.
Caso a candidata oficial, Dilma Rousseff, vença as eleições, é muito provável, a não ser que seu governo seja um desastre, que o PT permaneça no governo por mais oito anos, o que significará quase um final de carreira para uma série de políticos do PSDB e do DEM: Tasso Jereissati, Arthur Virgílio, Agripino Maia, Rodrigo Maia, Jutahy Junior, e mesmo líderes do PMDB dissidente como Jarbas Vasconcellos.
O mais afetado por um resultado adverso será o atual governador de Minas, Aécio Neves, a quem de nada adiantará ser um senador muito bem votado e chegar a um Congresso dominado pela situação, fazendo parte de um partido derrotado mais uma vez em nível nacional.
A não ser que mude de partido, Aécio seria um senador a mais na oposição minoritária, e não teria condições políticas para pleitear com um mínimo de chances a eleição à Presidência em 2014, contra a presidenta Dilma Rousseff tentando a reeleição.
Claro que sempre é possível imaginar um cenário em que o governo Dilma seja reprovado pela opinião pública, abrindo a brecha para a volta do PSDB ao poder.
Mas mesmo assim em 2014 existe o fantasma de Lula, que pode ser chamado para restaurar a imagem do PT e, presumivelmente, continuará sendo uma liderança importante na política brasileira.
A permanência do PT no poder abrirá, por outro lado, uma clareira política para diversas lideranças também jovens do partido e seus aliados, como os governadores de Pernambuco, Eduardo Campos, e da Bahia, Jacques Wagner, ou o senador Aloizio Mercadante, ou o deputado e ex-ministro Antonio Palocci, ou o governador do Rio, Sérgio Cabral, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, ou o deputado Ciro Gomes e outras lideranças emergentes que, à sombra do lulismo, darão as cartas na política nacional nos próximos anos.
Mesmo na oposição ao lulismo há nomes novos surgindo fora do eixo PSDB-DEM, como o da ministra Marina Silva, à frente do Partido Verde.
Há quem considere mesmo que é um engano considerar que a era pós-Lula começa com sua saída do poder, pois ele continuará a ter influência incontrastável na política brasileira, a exemplo de Getulio Vargas.
Na crise do mensalão, quando parecia que Lula não se recuperaria, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso orientava a oposição a não pressionar em busca do impeachment por duas razões: o receio de uma reação dos chamados “movimentos sociais”, e a possibilidade de, destituído, Lula se transformar em um “Getulio vivo”, numa alusão à morte de Getulio, que provocou uma comoção nacional.
Na tese de que ele continuará tendo influência duradoura na política nacional, Lula será na verdade um “Getulio vivo”, controlando o “lulismo”.
O presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro, diz que toda essa mudança de geração se dará sem o PT, que considera um partido em decadência política e com uma imagem ruim junto ao eleitorado.
Todas essas digressões passam pela cabeça dos principais líderes do PSDB, que começam a se organizar para a campanha presidencial de José Serra.
Eles sabem que correm o risco de ver o partido se desmilinguir com mais uma derrota nacional, ao contrário do PT que, mesmo com todas as vicissitudes que enfrentou nos últimos anos, continua com uma máquina partidária mobilizada pela candidatura de Dilma, mesmo que ela não fosse a candidata dos sonhos da legenda.
Atribui-se ao governador paulista uma queixa permanente à incapacidade da oposição de criar fatos políticos, enquanto o PT estaria sempre em atividade, unido em torno da candidatura oficial.
Dora Kramer:: Força do hábito
Na retrospectiva do ano na política, soou algo pessimista a constatação de que 2009 acabava como começara: marcado por escândalos, ilicitudes e cenas de má conduta por parte das excelências que se "lixam para a opinião pública".
Pois 2010 nem bem completa uma semana e o Senado já nos mostra que aquela visão era até otimista. Pressupunha que tivesse havido um fecho, mas não. Sequer houve uma pausa obsequiosa a título de preliminar para o recomeço.
Dois vexames em menos de cinco dias antes mesmo da abertura dos trabalhos legislativos, convenhamos, é uma marca robusta até para um especialista no ramo como o Parlamento brasileiro.
Oito meses depois de determinar novas regras para o uso da cota das passagens aéreas, a Mesa do Senado revoga a si própria. "Não haverá acumulação (de passagens) de um exercício para o outro", dizia o ato de abril.
Na calada do quase recesso de 17 de dezembro, quando ainda chamava atenção o rescaldo da descoberta de uma quadrilha de corruptos em atuação no governo do Distrito Federal, a mesma Mesa autorizou o acúmulo das sobras de passagens de 2009 para 2010. A justificativa? Ausência de um "período de transição" entre a farra generalizada e o ordenamento administrativo da cota fixa anual.
É de se perguntar quais os termos do rito de passagem. Talvez uns dois ou três anos de farra mitigada até que suas excelentíssimas se acostumassem com o comezinho fato de que o dinheiro da compra dos bilhetes não lhes pertence e que a cota é destinada exclusivamente ao transporte entre a capital e seus Estados de origem uma vez por semana?
Evidentemente que essa história de período de transição é desculpa esfarrapada de quem foi pego em flagrante e não sabe o que dizer. O ato da Mesa foi doloso. Passado o impacto da crise que durou seis meses e só não derrubou o presidente do Senado por interferência direta do presidente da República, os senadores acharam que o caso tinha caído no esquecimento e que não haveria maiores consequências se aplicassem um pequeno golpe.
Assaz conveniente em ano eleitoral, quando é ainda mais crucial a necessidade de transporte por conta das campanhas à renovação dos mandatos ou a outros cargos.
A fim de amenizar a malfeitoria, alegou-se que os créditos seriam devolvidos para as empresas aéreas e que isso não faria sentido. Problema facilmente resolvido mediante um contrato com as companhias prevendo a devolução do dinheiro para o caixa do Senado ou o abatimento do valor na compra dos bilhetes para as cotas do ano seguinte.
Só que ali o hábito não é preservar o bom uso do dinheiro público e sim descobrir sempre uma maneira de beneficiar a corporação.
Tal como ocorreu no segundo vexame do ano, que revelou um aumento de R$ 3,7 milhões nos gastos com o pagamento de horas extras dos funcionários. Assim como as passagens de avião, as horas extras haviam sido um dos objetos da crise de 2009 por causa de pagamentos indevidos durante o recesso ou a gente que se especializou em assinar o ponto do pagamento extraordinário sem dar a contrapartida em trabalho.
Segundo a direção do Senado, a despesa aumentou, embora o número de funcionários tenha diminuído, porque o ex-diretor-geral Agaciel Maia em um de seus últimos atos concedeu um aumento de 99,42% no valor das horas extras.
Conforme a explicação fornecida aos jornais por assessores, o reajuste não poderia ser revisto sob pena de contestação judicial para caracterizar redução salarial. E daí?
A assessoria jurídica do Congresso, competente e bem aparelhada, não existe só para descobrir atalhos para justificar irregularidades, para assegurar privilégios ou para livrar senadores e funcionários de acusações. Está lá exatamente para defender o bem público. O fato, no caso, é que o exorbitante aumento foi dado e o Senado sequer cogitou discordar. Pagou, ainda que o ato tenha sido de um funcionário acusado e investigado por prevaricação.
Tão subserviente ao poder da Presidência da República, o Congresso é corajoso quando se trata de defender seu direito à transgressão. Não tem medo de nada. Nem da opinião pública e muito menos do ridículo.
A quem interessar
O ministro Hélio Costa não tem feito questão de ser discreto. Diz para ser ouvido pelos canais competentes que, se o PT não o apoiar para o governo de Minas, prefere concorrer ao Senado em aliança com o governador Aécio Neves, na chapa do vice Antonio Anastasia.
Correção
Na nota de ontem sobre a estratégia do Planalto em relação à candidatura de Ciro Gomes o texto correto é o seguinte: "Qualquer movimento ascendente do adversário (José Serra) pode ter um efeito descendente sobre o ânimo dos potenciais partidos aliados."
No lugar de "descendente" saiu "decente".
Hora de pensar o futuro
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Por Edson Pinto de Almeida, para o Valor, de São Paulo
A forma como o Brasil superou a crise financeira, emergindo em grande estilo e por isso ganhando reconhecimento internacional, deixou no ar uma certeza e algumas perguntas. A certeza é de que o país está mais forte do que muitos imaginavam, até, quem sabe, para resistir a uma eventual recidiva da crise internacional no curto prazo. Mas o que dizer do futuro, aquele que, bem ou mal, vai sendo construído, em linha com as oscilações econômicas de curto prazo - aí incluidas as crises, que roubam eventuais conquistas de crescimento - e com maior ou menor intencionalidade de governos e sociedade? O Brasil já pode falar num futuro que lhe pertence, por vontade e formulação próprias, suposição que parece fluir de interpretações mais entusiasmadas dos resultados de políticas aplicadas até agora? Ou o país do longo prazo, aquele que talvez possa ser o do desenvolvimento estabelecido, muito mais que crescimento, ainda é uma folha de papel em branco, à espera de ideias e autores? Faz falta um projeto nacional, um "plano", ou bastará o exercício da democracia, por suas vertentes econômicas, políticas e sociais, para possibilitar consensos e conferir previsibilidade aos destinos do país?
As respostas, seja entre empresários, seja nos meios acadêmicos, misturam perspectivas diversas, mas sempre acompanhadas da constatação de que o fundamental está feito: a estabilização econômica e a opção pela democracia são hoje conquistas fortificadas, e representam avanços importantes na sinalização de possíveis caminhos para o futuro.
"O grande desafio está em pensar uma nova estratégia de desenvolvimento", afirma Cláudio Salvadori Dedecca, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Os mais de 20 anos de estagnação corroeram nossa capacidade de pensar o futuro, construiu-se uma reflexão constrangida pelos problemas da crise prolongada. É necessário reorientar o campo de preocupações e os termos do debate econômico e social, reposicionar as preocupações para a construção de uma estratégia de desenvolvimento que potencialize as vantagens atuais e identifique claramente seus obstáculos. Dois deles são evidentes e siameses, as reformas tributária e política."
Como diz Roberto Teixeira da Costa, consultor e membro do conselho de administração da SulAmerica Seguros, "o futuro chegou e precisamos saber o que fazer com ele". Em sua opinião, porém, o grau de percepção no setor empresarial dessa necessária agenda de mudanças é baixo, uma vez que o debate é muito setorizado e ainda predomina uma visão paroquial em relação à necessidade de inserção global do país. "As entidades empresariais não se falam, pregam apenas para os convertidos e todos só querem o poder. Falta provocar o debate com a sociedade e os partidos políticos."
A ideia de que se possa planejar algo no longo prazo tem a ver com a consolidação do regime democrático, a partir da Constituição de 1988, e com a estabilidade macroeconômica que teve início no Plano Real, em 1994. "No passado, o Brasil tinha desafios tão grandes, problemas tão profundos e as soluções propostas eram tão divergentes que criavam uma expectativa e insegurança maiores", diz Roberto Setúbal, presidente do Itaú Unibanco. Para ele, o Brasil pode cumprir todas as melhores projeções de crescimento se mantiver a política econômica equilibrada, contrastando, assim, com outras economias, como França, Itália e Inglaterra, que terão momentos de baixo crescimento nos próximos anos.
Louis Bazire, presidente da operação brasileira do BNP Paribas, também se coloca entre os otimistas e acredita que a dinâmica de longo prazo alcançada pelo Brasil já pode ser comparada à dos países mais maduros. Estudo da área técnica do banco mostra que o Brasil tem a melhor relação de potencial de crescimento e riscos de desestabilização, se comparado a China, Rússia e Índia. As condições sustentáveis de crescimento no médio prazo com baixo risco de desestabilização da economia estariam no patamar de 4% a 5% ao ano. A partir daí, e aumentados os investimentos, especialmente em infraestrutura, o crescimento poderia passar a 7%, até 8% ao ano.
O professor Francisco Carlos Teixeira, titular de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o Brasil reúne condições para ser a quinta economia do mundo, graças ao grande potencial industrial, agrícola e de jazidas minerais. "O país vai conseguir fazer a passagem de sustentabilidade com energias limpas, mas não vai alcançar, até 2025, uma condição de bem-estar mais justo. Existirão bolsões de diferenças e desigualdades, mas não de miséria."
O Brasil precisa, porém, dar um salto de qualidade na educação. "Estaremos no Segundo Mundo próspero", imagina Teixeira, "mas não no Primeiro de ponta, por falta de tecnologia, inovação e qualidade de gerência, todos elementos que têm a ver com educação." Teixeira reproduz conclusões de estudo que coordenou, realizado pela Fundação Dom Cabral com base em análise feita por dirigentes de nove empresas (Siemens, Telefonica, Algar, TAM, Natura, Brascan, IBM, International Paper, Umicore).
O estudo aponta Estados Unidos, União Europeia e China como centros criadores de redes globais e vias preferenciais dos fluxos de riqueza no mundo, sustentados largamente nas tecnologias digitais. A China deverá atuar como modelo alternativo à Europa, aos Estados Unidos e aos países em rápido crescimento. A concorrência chinesa deve afetar diretamente a presença do Brasil nos mercados mundiais. Por isso, o país deveria aprofundar os acordos bilaterais e, ao mesmo tempo, incentivar a ampliação do Mercosul e o uso da Tarifa Externa Comum (TEC) como um escudo anti-China. Com a pressão protecionista viria "um período de oportunidades para aprofundar mecanismos institucionais no interior do bloco, incluindo um sistema monetário próprio".
"Falta um projeto para o país, no sentido mais amplo", diz Laércio Cosentino, presidente da Totvs, uma das maiores empresas da área de sistemas de gestão. Em sua opinião, "não é com eleições a cada quatro anos que vamos mudar o país". Um exemplo de projeto nacional, a seu ver, é o da China, que exige a a participação de 51% de capital local nas empresas abertas por lá. "Precisamos fortalecer o nosso mercado e o setor de tecnologia, para gerar empregos de alto valor agregado e oferecer, assim, melhor remuneração ao trabalho." A estabilidade de que o país precisa para crescer de modo sustentado também poderia ser assegurada pela confluência desses fatores.
Cosentino defende a ampliação da participação no debate sobre o futuro do país. Um fato que chamou sua atenção ocorreu durante palestra para jovens empreendedores, em Minas Gerais. Cosentino perguntou aos 900 presentes se havia alguém se preparando para atuar na política. Apenas um levantou a mão.
Esse alheamento, a seu ver, deve-se ao fato de que a iniciativa privada se descolou da área pública. "Criamos um descompasso entre o Brasil empreendedor e o setor governamental." Cosentino entende que, depois da abertura de mercado e da consolidação da democracia, "a sociedade deixou a gestão pública para trás".
"O Brasil é mais dinâmico que seus governantes", diz Glauco Arbix, professor da USP, onde coordena o Observatório de Inovação do Instituto de Estudos Avançados. Para ele, a classe política vive no tempo dos coronéis, da corrupção, e não está preparada para responder aos desafios que o país deve enfrentar.
A consolidação da democracia é sempre apontada como um dos principais fatores que levaram o Brasil a uma condição de previsibilidade, fundamental para se estabelecerem objetivos de longo prazo. Contudo, o processo, que começou com a promulgação da Constituição de 1988, ainda está incompleto e pode afetar o ritmo do crescimento e atrasar as mudanças necessárias para modernizar o país, avalia Oscar Vilhena Vieira, professor de direito constitucional da escola de direito de Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. "Temos um sistema democrático estável, comparável ao de países desenvolvidos, como Estados Unidos e Alemanha, mas o estado de direito não evoluiu na mesma velocidade", afirma. A consequência mais danosa é que a sociedade não toma a lei como razão de conduta. "O Estado não aplica a lei com a devida imparcialidade e eficiência. Isso gera desconfiança, insegurança jurídica e erosão social."
Os intermináveis debates sobre a reforma do regime tributário têm jogado para o futuro a resolução de questões que, mantidas intocadas, agravam as desigualdades. O pobre paga mais do que o rico por causa da tributação indireta. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os 10% de menor renda da população brasileira destinam 32,8% de seus ganhos para o pagamento de impostos, enquanto os 10% da faixa superior desembolsam 22,7%. "O Estado tributa mal. Tira de quem tem menos e não devolve na mesma medida. Nossa Constituição é bipolar, pois é ao mesmo tempo distributivista e regressiva. Aparentemente, é generosa e distribui, mas na prática não é", afirma Vilhena. São questões, as tributárias, que precisam ser reequacionadas no mesmo passo em que se deveria cuidar da reforma política.
O professor da FGV entende que o arranjo federativo brasileiro produz um impacto negativo sobre a governança mais eficiente. A composição do Senado é um exemplo. Cada Estado tem três senadores, independentemente do número de habitantes. "Com isso, os estados menores predominam e reforçam o poder das elites, que cobram caro para não bloquear o governo. Essa situação pode levar ao descontrole fiscal", afirma. O desenho constitucional, a seu ver, supervaloriza os pequenos estados, pois não faz justiça ao critério populacional.
Apesar dos avanços, a Constituição de 1988 reforçou, segundo Vilhena, a relação clientelista com o Poder Executivo. A capacidade arrecadatória dos estados e municípios não é compatível com as atribuições estabelecidas pela Constituição. Há uma dependência dos repasses do governo federal nas áreas de saúde, educação e segurança pública. "Os estados têm poder político no Senado, mas são pobres, não têm capacidade financeira e vão pedir ao Executivo. O poder de voto no Senado é usado como barganha para negociar", diz.
São sinais de atraso político, que se refletem sobre a qualidade do debate a respeito do futuro do país e inibem a formulação de políticas públicas renovadoras das possibilidades de desenvolvimento em sentido amplo.
De todo modo, além da consistência dos fundamentos macroeconômicos e da preservação do valor da moeda, houve, sobretudo nos últimos seis anos, expressiva melhora na distribuição de renda, como apontam vários indicadores. Em 15 anos, o trabalho infantil no país caiu 50%, a classe média saltou de um terço para 50% do total da renda brasileira e 32 milhões de pessoas ascenderam socialmente. São números que, um dia, não passavam de projeções espelhadas num horizonte distante, o longo prazo da época.
Olhando agora para a frente, Louis Bazire, do BNP Paribas, acredita que o Brasil leva vantagem em vários aspectos sobre outros emergentes. "Enquanto a China possui 20% da população mundial e 6% da terra agricultável, no Brasil as proporções se invertem, praticamente com os mesmos números."
A produção de alimentos não é a única vocação que Bazire enxerga para o Brasil. Ele acredita que, pela força e dinamismo da economia, o Brasil deve se firmar como centro financeiro da América do Sul, atraindo empresas de outros países da região para engrossarem o mercado de capitais capitaneado pela Bolsa de São Paulo.
Na visão de Oriovisto Guimarães, presidente do grupo Positivo, um dos maiores fabricantes de computadores do país, com interesses também na área educacional, o curto período de estabilidade vivido pelo país ainda não é suficiente para garantir crescimento sustentado no futuro. Para que o Brasil atinja a condição de potência econômica nos próximos 20 anos, ele defende a execução de um programa de governo, sobre o qual parece haver consenso entre seus pares, centrado na modernização do marco regulatório da infraestrutura - em especial, energia, portos, aeroportos e transportes - para atrair capitais privados, a recuperação da capacidade de investimento do governo e mais recursos para educação e tecnologia.
Glauco Arbix, ex-presidente do Ipea, lembra que é fundamental remover o obstáculo da desigualdade social. "Com a industrialização acelerada, que elevou o Brasil da condição de cafezal dos anos 1930 para oitava economia do mundo nos anos 1980, nos tornamos um dos países mais injustos e desiguais." O processo de inclusão, a seu ver, deve ser sustentado por mecanismos de inovação que abram espaço para o empreendedorismo. "Não adianta trazer para o mercado milhões de pessoas se não conseguirmos aproveitar a capacidade delas de trabalhar ou abrir seu próprio negócio. Se não completarmos esse ciclo, seremos responsáveis por um dos maiores desperdícios da história, pois corremos o risco de fazer a inclusão e depois excluir essas pessoas depois de dois ou três anos."
Para o economista Marcelo Neri, e chefe do Centro de Pesquisas Sociais da FGV-RJ, o Brasil trouxe os pobres ao mercado, nesses últimos anos, o que ajudou as empresas a saírem da crise. "Agora precisamos dar o mercado aos pobres, oferecendo educação de qualidade e outros mecanismos, como microcrédito e microsseguro."
Isoladamente, é provável que a ausência de uma educação primária pública de massa e de alta qualidade seja a principal restrição que o Brasil enfrenta hoje para sair da condição de "emergente" e ocupar lugares de relevância conclusiva entre as maiores economias, observa Renato Perim Colistete, professor da FEA/USP. "Não que tal restrição impeça o crescimento econômico, pois o Brasil se constitui num exemplo clássico de que crescimento econômico acelerado convive, e bem, com alta desigualdade. Mas para falar em crescimento sustentado, com melhor distribuição de renda e socialmente mais justo, a educação primária teria de ser elevada à condição de prioridade nacional nas próximas décadas."
"As políticas públicas voltadas à educação básica", lembra Colistete, "sempre foram extremamente limitadas, atingindo uma parcela marginal da população, apesar da consciência que se tinha, desde o século XIX, que isso representava um dos principais fatores de atraso do Brasil em relação aos Estados Unidos e Europa. Com o poder político concentrado nas mãos de poucos, a demanda por educação básica de massa nunca passou de uma bandeira de idealistas, se muito."
Hoje, segundo Colistete, a educação primária pública atinge formalmente a maioria das crianças, "mas continua tão segregadora como antes, dada a baixíssima qualidade do ensino oferecido nas escolas, resultado da baixa prioridade e do pouco caso com que continuam sendo tratados os alunos, os professores e a escola pública primária em geral".
Com a colaboração de Cyro Andrade
Por Edson Pinto de Almeida, para o Valor, de São Paulo
A forma como o Brasil superou a crise financeira, emergindo em grande estilo e por isso ganhando reconhecimento internacional, deixou no ar uma certeza e algumas perguntas. A certeza é de que o país está mais forte do que muitos imaginavam, até, quem sabe, para resistir a uma eventual recidiva da crise internacional no curto prazo. Mas o que dizer do futuro, aquele que, bem ou mal, vai sendo construído, em linha com as oscilações econômicas de curto prazo - aí incluidas as crises, que roubam eventuais conquistas de crescimento - e com maior ou menor intencionalidade de governos e sociedade? O Brasil já pode falar num futuro que lhe pertence, por vontade e formulação próprias, suposição que parece fluir de interpretações mais entusiasmadas dos resultados de políticas aplicadas até agora? Ou o país do longo prazo, aquele que talvez possa ser o do desenvolvimento estabelecido, muito mais que crescimento, ainda é uma folha de papel em branco, à espera de ideias e autores? Faz falta um projeto nacional, um "plano", ou bastará o exercício da democracia, por suas vertentes econômicas, políticas e sociais, para possibilitar consensos e conferir previsibilidade aos destinos do país?
As respostas, seja entre empresários, seja nos meios acadêmicos, misturam perspectivas diversas, mas sempre acompanhadas da constatação de que o fundamental está feito: a estabilização econômica e a opção pela democracia são hoje conquistas fortificadas, e representam avanços importantes na sinalização de possíveis caminhos para o futuro.
"O grande desafio está em pensar uma nova estratégia de desenvolvimento", afirma Cláudio Salvadori Dedecca, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Os mais de 20 anos de estagnação corroeram nossa capacidade de pensar o futuro, construiu-se uma reflexão constrangida pelos problemas da crise prolongada. É necessário reorientar o campo de preocupações e os termos do debate econômico e social, reposicionar as preocupações para a construção de uma estratégia de desenvolvimento que potencialize as vantagens atuais e identifique claramente seus obstáculos. Dois deles são evidentes e siameses, as reformas tributária e política."
Como diz Roberto Teixeira da Costa, consultor e membro do conselho de administração da SulAmerica Seguros, "o futuro chegou e precisamos saber o que fazer com ele". Em sua opinião, porém, o grau de percepção no setor empresarial dessa necessária agenda de mudanças é baixo, uma vez que o debate é muito setorizado e ainda predomina uma visão paroquial em relação à necessidade de inserção global do país. "As entidades empresariais não se falam, pregam apenas para os convertidos e todos só querem o poder. Falta provocar o debate com a sociedade e os partidos políticos."
A ideia de que se possa planejar algo no longo prazo tem a ver com a consolidação do regime democrático, a partir da Constituição de 1988, e com a estabilidade macroeconômica que teve início no Plano Real, em 1994. "No passado, o Brasil tinha desafios tão grandes, problemas tão profundos e as soluções propostas eram tão divergentes que criavam uma expectativa e insegurança maiores", diz Roberto Setúbal, presidente do Itaú Unibanco. Para ele, o Brasil pode cumprir todas as melhores projeções de crescimento se mantiver a política econômica equilibrada, contrastando, assim, com outras economias, como França, Itália e Inglaterra, que terão momentos de baixo crescimento nos próximos anos.
Louis Bazire, presidente da operação brasileira do BNP Paribas, também se coloca entre os otimistas e acredita que a dinâmica de longo prazo alcançada pelo Brasil já pode ser comparada à dos países mais maduros. Estudo da área técnica do banco mostra que o Brasil tem a melhor relação de potencial de crescimento e riscos de desestabilização, se comparado a China, Rússia e Índia. As condições sustentáveis de crescimento no médio prazo com baixo risco de desestabilização da economia estariam no patamar de 4% a 5% ao ano. A partir daí, e aumentados os investimentos, especialmente em infraestrutura, o crescimento poderia passar a 7%, até 8% ao ano.
O professor Francisco Carlos Teixeira, titular de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o Brasil reúne condições para ser a quinta economia do mundo, graças ao grande potencial industrial, agrícola e de jazidas minerais. "O país vai conseguir fazer a passagem de sustentabilidade com energias limpas, mas não vai alcançar, até 2025, uma condição de bem-estar mais justo. Existirão bolsões de diferenças e desigualdades, mas não de miséria."
O Brasil precisa, porém, dar um salto de qualidade na educação. "Estaremos no Segundo Mundo próspero", imagina Teixeira, "mas não no Primeiro de ponta, por falta de tecnologia, inovação e qualidade de gerência, todos elementos que têm a ver com educação." Teixeira reproduz conclusões de estudo que coordenou, realizado pela Fundação Dom Cabral com base em análise feita por dirigentes de nove empresas (Siemens, Telefonica, Algar, TAM, Natura, Brascan, IBM, International Paper, Umicore).
O estudo aponta Estados Unidos, União Europeia e China como centros criadores de redes globais e vias preferenciais dos fluxos de riqueza no mundo, sustentados largamente nas tecnologias digitais. A China deverá atuar como modelo alternativo à Europa, aos Estados Unidos e aos países em rápido crescimento. A concorrência chinesa deve afetar diretamente a presença do Brasil nos mercados mundiais. Por isso, o país deveria aprofundar os acordos bilaterais e, ao mesmo tempo, incentivar a ampliação do Mercosul e o uso da Tarifa Externa Comum (TEC) como um escudo anti-China. Com a pressão protecionista viria "um período de oportunidades para aprofundar mecanismos institucionais no interior do bloco, incluindo um sistema monetário próprio".
"Falta um projeto para o país, no sentido mais amplo", diz Laércio Cosentino, presidente da Totvs, uma das maiores empresas da área de sistemas de gestão. Em sua opinião, "não é com eleições a cada quatro anos que vamos mudar o país". Um exemplo de projeto nacional, a seu ver, é o da China, que exige a a participação de 51% de capital local nas empresas abertas por lá. "Precisamos fortalecer o nosso mercado e o setor de tecnologia, para gerar empregos de alto valor agregado e oferecer, assim, melhor remuneração ao trabalho." A estabilidade de que o país precisa para crescer de modo sustentado também poderia ser assegurada pela confluência desses fatores.
Cosentino defende a ampliação da participação no debate sobre o futuro do país. Um fato que chamou sua atenção ocorreu durante palestra para jovens empreendedores, em Minas Gerais. Cosentino perguntou aos 900 presentes se havia alguém se preparando para atuar na política. Apenas um levantou a mão.
Esse alheamento, a seu ver, deve-se ao fato de que a iniciativa privada se descolou da área pública. "Criamos um descompasso entre o Brasil empreendedor e o setor governamental." Cosentino entende que, depois da abertura de mercado e da consolidação da democracia, "a sociedade deixou a gestão pública para trás".
"O Brasil é mais dinâmico que seus governantes", diz Glauco Arbix, professor da USP, onde coordena o Observatório de Inovação do Instituto de Estudos Avançados. Para ele, a classe política vive no tempo dos coronéis, da corrupção, e não está preparada para responder aos desafios que o país deve enfrentar.
A consolidação da democracia é sempre apontada como um dos principais fatores que levaram o Brasil a uma condição de previsibilidade, fundamental para se estabelecerem objetivos de longo prazo. Contudo, o processo, que começou com a promulgação da Constituição de 1988, ainda está incompleto e pode afetar o ritmo do crescimento e atrasar as mudanças necessárias para modernizar o país, avalia Oscar Vilhena Vieira, professor de direito constitucional da escola de direito de Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. "Temos um sistema democrático estável, comparável ao de países desenvolvidos, como Estados Unidos e Alemanha, mas o estado de direito não evoluiu na mesma velocidade", afirma. A consequência mais danosa é que a sociedade não toma a lei como razão de conduta. "O Estado não aplica a lei com a devida imparcialidade e eficiência. Isso gera desconfiança, insegurança jurídica e erosão social."
Os intermináveis debates sobre a reforma do regime tributário têm jogado para o futuro a resolução de questões que, mantidas intocadas, agravam as desigualdades. O pobre paga mais do que o rico por causa da tributação indireta. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os 10% de menor renda da população brasileira destinam 32,8% de seus ganhos para o pagamento de impostos, enquanto os 10% da faixa superior desembolsam 22,7%. "O Estado tributa mal. Tira de quem tem menos e não devolve na mesma medida. Nossa Constituição é bipolar, pois é ao mesmo tempo distributivista e regressiva. Aparentemente, é generosa e distribui, mas na prática não é", afirma Vilhena. São questões, as tributárias, que precisam ser reequacionadas no mesmo passo em que se deveria cuidar da reforma política.
O professor da FGV entende que o arranjo federativo brasileiro produz um impacto negativo sobre a governança mais eficiente. A composição do Senado é um exemplo. Cada Estado tem três senadores, independentemente do número de habitantes. "Com isso, os estados menores predominam e reforçam o poder das elites, que cobram caro para não bloquear o governo. Essa situação pode levar ao descontrole fiscal", afirma. O desenho constitucional, a seu ver, supervaloriza os pequenos estados, pois não faz justiça ao critério populacional.
Apesar dos avanços, a Constituição de 1988 reforçou, segundo Vilhena, a relação clientelista com o Poder Executivo. A capacidade arrecadatória dos estados e municípios não é compatível com as atribuições estabelecidas pela Constituição. Há uma dependência dos repasses do governo federal nas áreas de saúde, educação e segurança pública. "Os estados têm poder político no Senado, mas são pobres, não têm capacidade financeira e vão pedir ao Executivo. O poder de voto no Senado é usado como barganha para negociar", diz.
São sinais de atraso político, que se refletem sobre a qualidade do debate a respeito do futuro do país e inibem a formulação de políticas públicas renovadoras das possibilidades de desenvolvimento em sentido amplo.
De todo modo, além da consistência dos fundamentos macroeconômicos e da preservação do valor da moeda, houve, sobretudo nos últimos seis anos, expressiva melhora na distribuição de renda, como apontam vários indicadores. Em 15 anos, o trabalho infantil no país caiu 50%, a classe média saltou de um terço para 50% do total da renda brasileira e 32 milhões de pessoas ascenderam socialmente. São números que, um dia, não passavam de projeções espelhadas num horizonte distante, o longo prazo da época.
Olhando agora para a frente, Louis Bazire, do BNP Paribas, acredita que o Brasil leva vantagem em vários aspectos sobre outros emergentes. "Enquanto a China possui 20% da população mundial e 6% da terra agricultável, no Brasil as proporções se invertem, praticamente com os mesmos números."
A produção de alimentos não é a única vocação que Bazire enxerga para o Brasil. Ele acredita que, pela força e dinamismo da economia, o Brasil deve se firmar como centro financeiro da América do Sul, atraindo empresas de outros países da região para engrossarem o mercado de capitais capitaneado pela Bolsa de São Paulo.
Na visão de Oriovisto Guimarães, presidente do grupo Positivo, um dos maiores fabricantes de computadores do país, com interesses também na área educacional, o curto período de estabilidade vivido pelo país ainda não é suficiente para garantir crescimento sustentado no futuro. Para que o Brasil atinja a condição de potência econômica nos próximos 20 anos, ele defende a execução de um programa de governo, sobre o qual parece haver consenso entre seus pares, centrado na modernização do marco regulatório da infraestrutura - em especial, energia, portos, aeroportos e transportes - para atrair capitais privados, a recuperação da capacidade de investimento do governo e mais recursos para educação e tecnologia.
Glauco Arbix, ex-presidente do Ipea, lembra que é fundamental remover o obstáculo da desigualdade social. "Com a industrialização acelerada, que elevou o Brasil da condição de cafezal dos anos 1930 para oitava economia do mundo nos anos 1980, nos tornamos um dos países mais injustos e desiguais." O processo de inclusão, a seu ver, deve ser sustentado por mecanismos de inovação que abram espaço para o empreendedorismo. "Não adianta trazer para o mercado milhões de pessoas se não conseguirmos aproveitar a capacidade delas de trabalhar ou abrir seu próprio negócio. Se não completarmos esse ciclo, seremos responsáveis por um dos maiores desperdícios da história, pois corremos o risco de fazer a inclusão e depois excluir essas pessoas depois de dois ou três anos."
Para o economista Marcelo Neri, e chefe do Centro de Pesquisas Sociais da FGV-RJ, o Brasil trouxe os pobres ao mercado, nesses últimos anos, o que ajudou as empresas a saírem da crise. "Agora precisamos dar o mercado aos pobres, oferecendo educação de qualidade e outros mecanismos, como microcrédito e microsseguro."
Isoladamente, é provável que a ausência de uma educação primária pública de massa e de alta qualidade seja a principal restrição que o Brasil enfrenta hoje para sair da condição de "emergente" e ocupar lugares de relevância conclusiva entre as maiores economias, observa Renato Perim Colistete, professor da FEA/USP. "Não que tal restrição impeça o crescimento econômico, pois o Brasil se constitui num exemplo clássico de que crescimento econômico acelerado convive, e bem, com alta desigualdade. Mas para falar em crescimento sustentado, com melhor distribuição de renda e socialmente mais justo, a educação primária teria de ser elevada à condição de prioridade nacional nas próximas décadas."
"As políticas públicas voltadas à educação básica", lembra Colistete, "sempre foram extremamente limitadas, atingindo uma parcela marginal da população, apesar da consciência que se tinha, desde o século XIX, que isso representava um dos principais fatores de atraso do Brasil em relação aos Estados Unidos e Europa. Com o poder político concentrado nas mãos de poucos, a demanda por educação básica de massa nunca passou de uma bandeira de idealistas, se muito."
Hoje, segundo Colistete, a educação primária pública atinge formalmente a maioria das crianças, "mas continua tão segregadora como antes, dada a baixíssima qualidade do ensino oferecido nas escolas, resultado da baixa prioridade e do pouco caso com que continuam sendo tratados os alunos, os professores e a escola pública primária em geral".
Com a colaboração de Cyro Andrade
Fernando de Barros e Silva:: ABC da era Lula
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
SÃO PAULO - Fazer um resumo compreensivo dos anos Lula será um dos desafios do jornalismo em 2010. É um trabalho que se situa entre o registro noticioso e a perspectiva histórica, à cata do sentido entre os acontecimentos e o legado.
Sempre haverá divergências a respeito, mas, à luz da história, a tendência é que prevaleçam as continuidades e a percepção de um mesmo processo, enquanto, no calor da disputa política, e sobretudo neste ano, devem ser destacadas as rupturas e diferenças entre Lula e Fernando Henrique Cardoso.
Nem ruptura nem continuidade, um dos aspectos importantes e ainda pouco esclarecido desse período talvez resida na inflexão do próprio Lula entre o primeiro e o segundo mandatos. A crise do mensalão é o que divide as duas fases.
Recorde-se o que foi Lula 1º. Um governo que tinha na política conservadora de Palocci a sua âncora e no mais tateava à procura de um enredo. O Fome Zero revelou ser um slogan vazio. Reformas não previstas na campanha, mas também nunca concluídas, vieram em socorro da carência de ideias: a tributária acabou duas vezes frustrada; a da Previdência, que chegou a ser aprovada, ficou suspensa no ar; e a trabalhista foi abandonada.
A expulsão dos radicais simbolizou a conversão do PT ao pragmatismo. Alguém se lembra de Babá, o ícone da resistência de esquerda?
Renascido das cinzas em 2006, Lula 2º substituiu o mensalão pelo PMDB, ao mesmo tempo em que se tornou menos dependente do Congresso. Escorado pela popularidade que o crescimento e os programas de transferência de renda lhe trouxeram, Lula criou seu próprio mito.
Na economia, o segundo mandato instalou a tensão entre a antiga ortodoxia e a ampliação do gasto público. Mais: Lula 2º vem patrocinando o avanço metódico do governo sobre espaços antes ocupados pelo setor privado. O que será desse capitalismo de Estado e qual o destino desse getulismo tardio misturado com bolsa família é algo que o processo eleitoral talvez ilumine.
SÃO PAULO - Fazer um resumo compreensivo dos anos Lula será um dos desafios do jornalismo em 2010. É um trabalho que se situa entre o registro noticioso e a perspectiva histórica, à cata do sentido entre os acontecimentos e o legado.
Sempre haverá divergências a respeito, mas, à luz da história, a tendência é que prevaleçam as continuidades e a percepção de um mesmo processo, enquanto, no calor da disputa política, e sobretudo neste ano, devem ser destacadas as rupturas e diferenças entre Lula e Fernando Henrique Cardoso.
Nem ruptura nem continuidade, um dos aspectos importantes e ainda pouco esclarecido desse período talvez resida na inflexão do próprio Lula entre o primeiro e o segundo mandatos. A crise do mensalão é o que divide as duas fases.
Recorde-se o que foi Lula 1º. Um governo que tinha na política conservadora de Palocci a sua âncora e no mais tateava à procura de um enredo. O Fome Zero revelou ser um slogan vazio. Reformas não previstas na campanha, mas também nunca concluídas, vieram em socorro da carência de ideias: a tributária acabou duas vezes frustrada; a da Previdência, que chegou a ser aprovada, ficou suspensa no ar; e a trabalhista foi abandonada.
A expulsão dos radicais simbolizou a conversão do PT ao pragmatismo. Alguém se lembra de Babá, o ícone da resistência de esquerda?
Renascido das cinzas em 2006, Lula 2º substituiu o mensalão pelo PMDB, ao mesmo tempo em que se tornou menos dependente do Congresso. Escorado pela popularidade que o crescimento e os programas de transferência de renda lhe trouxeram, Lula criou seu próprio mito.
Na economia, o segundo mandato instalou a tensão entre a antiga ortodoxia e a ampliação do gasto público. Mais: Lula 2º vem patrocinando o avanço metódico do governo sobre espaços antes ocupados pelo setor privado. O que será desse capitalismo de Estado e qual o destino desse getulismo tardio misturado com bolsa família é algo que o processo eleitoral talvez ilumine.
Ex-porta-voz de Lula diz que lulismo tem raiz conservadora
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Em artigo acadêmico, Singer avalia que Lula "obteve autonomia bonapartista
Julia Duailibi
Ex-secretário de Imprensa e ex-porta-voz do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o cientista político André Singer publicou um artigo acadêmico no qual define as raízes do "lulismo", afirmando que o fenômeno incorporou "pontos de vista conservadores", surgiu baseado no "conservadorismo popular" e concedeu ao presidente "uma autonomia bonapartista".
Publicado na última edição da revista Novos Estudos, do Cebrap, o texto Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo pretende debater o realinhamento eleitoral que teria ocorrido a partir da reeleição de Lula em 2006. Singer sugere que o subproletariado - termo usado pelo economista Paul Singer ao analisar a estrutura social do Brasil no início dos anos 80 -, que sempre teria se mantido distante de Lula, aderiu em bloco à sua candidatura depois do primeiro mandato, ao mesmo tempo em que a classe média se afastou dela.
VIA DE ACESSO
"O primeiro mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado, amoldando-se a ele, mais do que modelando, porém, ao mesmo tempo, constituindo-o como ator político", disse. "Isso implicou um realinhamento do eleitorado e a emergência de uma força nova, o lulismo, tornando necessário um reposicionamento dos demais segmentos."
De acordo com o autor, esse realinhamento só foi possível porque o subproletariado passou a ver em Lula, com o seu discurso conservador, a "manutenção da ordem" - o que não ocorrera nas eleições anteriores. "A elevação do superávit primário para 4,25% do PIB, a concessão da independência operacional do Banco Central (...) e a inexistência de controle sobre a entrada e a saída de capitais foram o modo encontrado para assegurar um elemento vital na conquista do apoio dos mais pobres: a manutenção da ordem", afirma Singer.
Esse realinhamento teria tirado a centralidade dos estratos médios da sociedade - como os estudantes e assalariados com carteira assinada, que formavam a base eleitoral do petista - e explicaria o "relativo desinteresse de Lula pelos formadores de opinião". "À medida que passou a ser sustentado pela base subproletariada, Lula obteve uma autonomia bonapartista (sem qualquer conotação militar)", diz o autor, para quem essa adesão "salvou o presidente da morte política a que parecia condenado pela rejeição da classe média." A análise sugere que o tripé Bolsa-Família, aumento real do salário mínimo e a expansão do crédito colaborou com o realinhamento.
Em artigo acadêmico, Singer avalia que Lula "obteve autonomia bonapartista
Julia Duailibi
Ex-secretário de Imprensa e ex-porta-voz do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o cientista político André Singer publicou um artigo acadêmico no qual define as raízes do "lulismo", afirmando que o fenômeno incorporou "pontos de vista conservadores", surgiu baseado no "conservadorismo popular" e concedeu ao presidente "uma autonomia bonapartista".
Publicado na última edição da revista Novos Estudos, do Cebrap, o texto Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo pretende debater o realinhamento eleitoral que teria ocorrido a partir da reeleição de Lula em 2006. Singer sugere que o subproletariado - termo usado pelo economista Paul Singer ao analisar a estrutura social do Brasil no início dos anos 80 -, que sempre teria se mantido distante de Lula, aderiu em bloco à sua candidatura depois do primeiro mandato, ao mesmo tempo em que a classe média se afastou dela.
VIA DE ACESSO
"O primeiro mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado, amoldando-se a ele, mais do que modelando, porém, ao mesmo tempo, constituindo-o como ator político", disse. "Isso implicou um realinhamento do eleitorado e a emergência de uma força nova, o lulismo, tornando necessário um reposicionamento dos demais segmentos."
De acordo com o autor, esse realinhamento só foi possível porque o subproletariado passou a ver em Lula, com o seu discurso conservador, a "manutenção da ordem" - o que não ocorrera nas eleições anteriores. "A elevação do superávit primário para 4,25% do PIB, a concessão da independência operacional do Banco Central (...) e a inexistência de controle sobre a entrada e a saída de capitais foram o modo encontrado para assegurar um elemento vital na conquista do apoio dos mais pobres: a manutenção da ordem", afirma Singer.
Esse realinhamento teria tirado a centralidade dos estratos médios da sociedade - como os estudantes e assalariados com carteira assinada, que formavam a base eleitoral do petista - e explicaria o "relativo desinteresse de Lula pelos formadores de opinião". "À medida que passou a ser sustentado pela base subproletariada, Lula obteve uma autonomia bonapartista (sem qualquer conotação militar)", diz o autor, para quem essa adesão "salvou o presidente da morte política a que parecia condenado pela rejeição da classe média." A análise sugere que o tripé Bolsa-Família, aumento real do salário mínimo e a expansão do crédito colaborou com o realinhamento.
Aliados já falam de parcerias com 'presidente Serra'
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Manifestações eleitorais tornam-se frequentes em eventos do governo
Silvia Amorim
A menos de três meses do prazo final para o governador José Serra (PSDB) decidir se disputará ou não a Presidência, as manifestações de apoio a sua candidatura têm se tornado cada vez mais frequentes em eventos oficiais do governo estadual. Nos dois últimos dias, a questão eleitoral foi mencionada quatro vezes em cerimônias de inaugurações de obras - em geral, por parlamentares e prefeitos.
Na inauguração de um parque em São Paulo ontem, o deputado estadual Bruno Covas (PSDB), ao exaltar os resultados da parceria entre o governo Serra e a gestão do prefeito Gilberto Kassab (DEM), sugeriu a vitória do tucano na disputa presidencial. "Governador, tenho certeza de que essa parceria vai se dar com o governo federal no ano que vem." Pouco antes, a corrida eleitoral foi mencionada no palanque pelo vereador Gilberto Natalini (PSDB). "Grandes mudanças ocorrerão no Brasil neste ano. E isso está nas nossas mãos", disse.
Anteontem, em visita do governador ao interior do Estado para entrega de uma unidade de saúde em Rio Claro, o prefeito Palmínio Altimari Filho (PMDB) foi direto. "José Serra é um grande expoente na sucessão presidencial", afirmou. Em seguida, "nomeou" o prefeito de Piracicaba, Barjas Negri, ministro de Serra. "Se isso vier a acontecer, ou seja, a sua vitória, a nossa região vai ser contemplada com um ministro. Torcemos para que nosso companheiro Barjas Negri volte a ocupar espaço no cenário nacional", disse o prefeito. Negri foi titular da Saúde no governo Fernando Henrique Cardoso. Após o discurso do prefeito, Serra comentou: "Hoje vi uma coisa inusitada. O prefeito lançando o Barjas para ministro."
Outra menção a uma eventual vitória de Serra foi do deputado estadual Aldo Demarchi (DEM). "Deus e a vontade da população poderão deixar que o senhor consolide a posição do Brasil no mundo."
Serra, que tem evitado falar de eleição em compromissos do governo, disse ontem que considera "normal" haver manifestações de caráter político-eleitoral em inaugurações. "Isso é normal no Brasil, tradicional", afirmou. "Não tem maior consequência. Nessa altura do campeonato, não tem tanta importância." O governador disse que não incentiva esse tipo de atitude. "É muito difícil chegar para cada pessoa e pedir "olha, não fale". A gente faz isso, mas um ou outro escapa."
Virtual candidato do PSDB ao Planalto, Serra precisa deixar o cargo de governador até o início de abril para disputar a Presidência.
Colaborou Tatiana Fávaro
Manifestações eleitorais tornam-se frequentes em eventos do governo
Silvia Amorim
A menos de três meses do prazo final para o governador José Serra (PSDB) decidir se disputará ou não a Presidência, as manifestações de apoio a sua candidatura têm se tornado cada vez mais frequentes em eventos oficiais do governo estadual. Nos dois últimos dias, a questão eleitoral foi mencionada quatro vezes em cerimônias de inaugurações de obras - em geral, por parlamentares e prefeitos.
Na inauguração de um parque em São Paulo ontem, o deputado estadual Bruno Covas (PSDB), ao exaltar os resultados da parceria entre o governo Serra e a gestão do prefeito Gilberto Kassab (DEM), sugeriu a vitória do tucano na disputa presidencial. "Governador, tenho certeza de que essa parceria vai se dar com o governo federal no ano que vem." Pouco antes, a corrida eleitoral foi mencionada no palanque pelo vereador Gilberto Natalini (PSDB). "Grandes mudanças ocorrerão no Brasil neste ano. E isso está nas nossas mãos", disse.
Anteontem, em visita do governador ao interior do Estado para entrega de uma unidade de saúde em Rio Claro, o prefeito Palmínio Altimari Filho (PMDB) foi direto. "José Serra é um grande expoente na sucessão presidencial", afirmou. Em seguida, "nomeou" o prefeito de Piracicaba, Barjas Negri, ministro de Serra. "Se isso vier a acontecer, ou seja, a sua vitória, a nossa região vai ser contemplada com um ministro. Torcemos para que nosso companheiro Barjas Negri volte a ocupar espaço no cenário nacional", disse o prefeito. Negri foi titular da Saúde no governo Fernando Henrique Cardoso. Após o discurso do prefeito, Serra comentou: "Hoje vi uma coisa inusitada. O prefeito lançando o Barjas para ministro."
Outra menção a uma eventual vitória de Serra foi do deputado estadual Aldo Demarchi (DEM). "Deus e a vontade da população poderão deixar que o senhor consolide a posição do Brasil no mundo."
Serra, que tem evitado falar de eleição em compromissos do governo, disse ontem que considera "normal" haver manifestações de caráter político-eleitoral em inaugurações. "Isso é normal no Brasil, tradicional", afirmou. "Não tem maior consequência. Nessa altura do campeonato, não tem tanta importância." O governador disse que não incentiva esse tipo de atitude. "É muito difícil chegar para cada pessoa e pedir "olha, não fale". A gente faz isso, mas um ou outro escapa."
Virtual candidato do PSDB ao Planalto, Serra precisa deixar o cargo de governador até o início de abril para disputar a Presidência.
Colaborou Tatiana Fávaro
Decreto trata desde reforma agrária até taxação de fortunas
DEU EM O GLOBO
Programa de Direitos Humanos criado por Lula invade outras áreas de ação do governo
Programa de Direitos Humanos criado por Lula invade outras áreas de ação do governo
O Programa Nacional de Direitos Humanos, criado por decreto pelo presidente Lula em dezembro, a um ano do fim do mandato, inclui iniciativas em praticamente todas as áreas de governo. Da regulação de hortas comunitárias à revisão da Lei de Anistia, da taxação de grandes fortunas a mudanças nos planos de saúde, passando pela reforma agrária e pelo financiamento público de campanhas, o programa pretende criar 27 leis.
Muito além dos direitos humanos
Decreto prevê ações em diversas outras áreas do governo
José Casado
O último ano de mandato do presidente Lula começa com um novo rol de promessas de iniciativas governamentais, sob o guarda-chuva de um “Programa Nacional de Direitos Humanos”. Resumidas em 23 mil palavras, elas ocupam 73 páginas de um decreto assinado no final de dezembro.
Pelo calendário constitucional, restam 11 meses de mandato ao presidente. Mas para cumprir apenas o que está previsto nesse decreto seria preciso, no mínimo, um novo mandato. E um novo governo, com novos aliados dispostos a confrontar boa parte das forças políticas que sustentaram o governo Lula nos últimos 84 meses.
Sob o pretexto da criação de um programa governamental dos direitos humanos, Lula alinhou uma miríade de promessas para este ano eleitoral: da regulação de hortas comunitárias à revisão na Lei de Anistia; da taxação de grandes fortunas às mudanças nas regras dos planos de saúde; da legalização do casamento homossexual à fiscalização de pesquisas de biotecnologia e nanotecnologia.
Governo sugere 27 novas leis
O decreto estabelece para os próximos 11 meses a elaboração de pelo menos 27 novas leis. E cria mais de dez mil novas instâncias burocráticas no setor público (entre ouvidorias, observatórios, órgãos “especializados e regionalizados do sistema de justiça, de segurança e de defensoria pública”, “centros de formação”, bancos de dados, comitês e conselhos federais, estaduais e municipais). Em paralelo, programa para este ano eleitoral duas dezenas de campanhas publicitárias nacionais (entre elas, uma sobre “informação às crianças e adolescentes sobre seus direitos” e outra sobre “direito ao voto e participação política de homens e mulheres”).
O plano foi coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com aval da Casa Civil, e recebeu contribuições de 17 ministérios. Na essência, tem propostas semelhantes às “diretrizes” sancionadas pelo Partido dos Trabalhadores para o programa de governo do então candidato Lula, no início da campanha eleitoral de 2002.
Seis meses depois, o candidato revogouas com uma informal “Carta aos Brasileiros”, na qual se comprometia, principalmente, a manter o status quo na economia.
Agora, pela primeira vez em três décadas, Lula não será candidato.
Na reta final do seu mandato, o presidente assinou um decreto determinando o engajamento do governo em iniciativas para dar à Presidência da República meios de exercer o poder à margem do Congresso, via “plebiscitos, referendos, leis de iniciativa popular e de veto popular”.
Taxação de fortunas volta a ser proposta
O decreto tem um pouco de tudo e até mesmo propostas de senso comum, como a edição de legislação reprimindo castigos físicos em crianças. Como plano governamental tem, também, todos os ingredientes necessários para apimentar a campanha presidencial.
Quem adotá-lo poderá subir no palanque eleitoral dizendo-se a favor da taxação das grandes fortunas; da revisão da Lei da Anistia; da flexibilização das regras para reintegração de posse de propriedades invadidas; de mudanças no regime de concessão e outorga de licenças para rádios e televisões; da fiscalização de “projetos implementados pelas empresas transnacionais”, e, até da “fiscalização” dos impactos da biotecnologia e da nanotecnologia na vida cotidiana.
Caso seja adotado por um candidato governista, este poderia ter alguma dificuldade em explicar porque nos últimos 84 meses nada disso foi posto em prática. Mas algumas das propostas de ação contidas nesse decreto presidencial podem até acabar emulando uma boa agenda de debate eleitoral.
É o caso da revisão das regras para planos de saúde, da descriminalização do aborto e do direito ao casamento gay, entre outros.
A abrangência do programa de direitos humanos sancionado pelo presidente contrasta com o modesto desempenho dos projetos da área executados pela Secretaria de Direitos Humanos. Em 2009, por exemplo, a secretaria mostrou-se mais ativa em propaganda do que em ações de proteção aos idosos.
De acordo com dados do sistema de contas governamentais, gastou R$ 8,9 milhões em publicidade, ou seja, dez vezes mais do que no Programa Nacional de Acessibilidade, voltado aos idosos e pessoas com deficiência física.
As 73 páginas do decreto, disponível na página da Presidência da República na internet, requerem de qualquer leitor um pouco mais do que o exercício da paciência: o texto árido corre entre autoelogios e construções extremamente tortuosas, como “a valorização da pessoa humana como sujeito central do processo de desenvolvimento, enfrentando o atual quadro de injustiça ambiental”.
Mas sempre “orientado pela transversalidade” — escreveram os autores—, com foco na “intersetorialidade, ação comunitária, intergeracionalidade e diversidade
Com regras para todos os lados, texto recebe críticas de diversos setores
DEU EM O GLOBO
"Usaram os direitos humanos para criar esse demônio", diz Kátia Abreu
Evandro Éboli
BRASÍLIA. Ao tratar de temas tão distintos — que variam de transgênicos a aborto, e de licençapaternidade a reforma agrária — o Programa Nacional de Direitos Humanos recebeu muitas críticas de vários segmentos da sociedade. Essa diversidade, no entanto, é elogiada pelos militantes da área.
Ex-perseguido político e colaborador do programa, o ex-deputado federal Gilney Vianna, da direção nacional do PT, defendeu o texto. Para ele, todos os temas tratados têm relação com direitos humanos. Mas, para a presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), senadora Kátia Abreu (DEM-TO), o programa discrimina o setor ruralista.
Secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Dimas Lara Barbosa considerou uma demonstração de intolerância a previsão do texto de impedir a ostentação de símbolos religiosos, como crucifixo, em locais públicos.
Petista diz que conceito é tendência mundial A variedade de temas abordados no programa é uma demonstração de modernidade, na visão do deputado petista: — Há uma tendência internacional de um conceito mais abrangente de direitos humanos.
Não é algo exclusivo do Brasil.
É coisa moderna — disse.
Kátia Abreu centrou sua análise na parte do programa que prevê a realização de audiências públicas, antes que um juiz decida se concede liminar para reintegração de posse de uma fazenda invadida. Na opinião da parlamentar, o governo do PT incluiu no texto tudo que não conseguiu realizar nestes sete anos de governo Lula.
— Usaram a máscara dos direitos humanos, um pretexto total, para criar esse demônio.
Estão ali todos os complexos do governo Lula. Não podemos permitir e aceitar passivamente isso — disse Kátia.
Dom Dimas, por sua vez, disse que a ostentação de símbolos religiosos não deveria ser tratada no programa: — Daqui a pouco vamos ter que demolir a estátua do Cristo Redentor, no morro do Corcovado, que ultrapassou a questão religiosa e virou símbolo de uma cidade. Impedir a presença desses símbolos é uma intolerância muito grande.
É desconhecer o espírito cristão e religioso da tradição brasileira — disse. — (Essa questão) absolutamente não tem vínculo com direitos humanos.
É a infiltração de uma mentalidade laicista no texto.
Direitos humanos é ter liberdade religiosa.
Advogado que atua na área de direitos humanos, Augustino Veit, integrante da Comissão de Mortos e Desaparecidos, defende a inclusão de temas variados no programa.
— O conceito de direitos humanos hoje inclui direitos sociais, políticos, civis e tantos outros.
Os programas do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), por exemplo, violam os direitos humanos. Populações tradicionais são obrigadas a deixar regiões de construção de barragem, onde tinham uma história de vida, e sobreviviam com pesca e, de uma hora para outra, perdem tudo. Isso é violação de direitos humanos — disse Veit.
Secretaria diz que programa tem chancela da ONU O líder do PSDB na Câmara, dos Deputados, José Aníbal (SP), pediu uma análise detalhada de sua assessoria, mas antecipou que o programa engloba temas demais: — É um “X tudo”.
Em nota, o ministro interino da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Rogério Sottili, afirmou ontem que a ampliação dos temas no programa está prevista em tratados e convenções da Organização das Nações Unidas (ONU). Sottili afirmou que a inclusão de assuntos variados no programa é uma demanda da sociedade civil.
“São crescentes demandas da sociedade civil organizada, que encontrou na agenda dos direitos humanos um conteúdo fundamental de suas lutas, em diferentes cenários, para exigir a efetivação de relações sociais igualitárias e justas”, afirmou Sottili na nota. O ministro interino disse também que o Brasil ratificou a grande maioria dos tratados internacionais sobre direitos humanos
"Usaram os direitos humanos para criar esse demônio", diz Kátia Abreu
Evandro Éboli
BRASÍLIA. Ao tratar de temas tão distintos — que variam de transgênicos a aborto, e de licençapaternidade a reforma agrária — o Programa Nacional de Direitos Humanos recebeu muitas críticas de vários segmentos da sociedade. Essa diversidade, no entanto, é elogiada pelos militantes da área.
Ex-perseguido político e colaborador do programa, o ex-deputado federal Gilney Vianna, da direção nacional do PT, defendeu o texto. Para ele, todos os temas tratados têm relação com direitos humanos. Mas, para a presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), senadora Kátia Abreu (DEM-TO), o programa discrimina o setor ruralista.
Secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Dimas Lara Barbosa considerou uma demonstração de intolerância a previsão do texto de impedir a ostentação de símbolos religiosos, como crucifixo, em locais públicos.
Petista diz que conceito é tendência mundial A variedade de temas abordados no programa é uma demonstração de modernidade, na visão do deputado petista: — Há uma tendência internacional de um conceito mais abrangente de direitos humanos.
Não é algo exclusivo do Brasil.
É coisa moderna — disse.
Kátia Abreu centrou sua análise na parte do programa que prevê a realização de audiências públicas, antes que um juiz decida se concede liminar para reintegração de posse de uma fazenda invadida. Na opinião da parlamentar, o governo do PT incluiu no texto tudo que não conseguiu realizar nestes sete anos de governo Lula.
— Usaram a máscara dos direitos humanos, um pretexto total, para criar esse demônio.
Estão ali todos os complexos do governo Lula. Não podemos permitir e aceitar passivamente isso — disse Kátia.
Dom Dimas, por sua vez, disse que a ostentação de símbolos religiosos não deveria ser tratada no programa: — Daqui a pouco vamos ter que demolir a estátua do Cristo Redentor, no morro do Corcovado, que ultrapassou a questão religiosa e virou símbolo de uma cidade. Impedir a presença desses símbolos é uma intolerância muito grande.
É desconhecer o espírito cristão e religioso da tradição brasileira — disse. — (Essa questão) absolutamente não tem vínculo com direitos humanos.
É a infiltração de uma mentalidade laicista no texto.
Direitos humanos é ter liberdade religiosa.
Advogado que atua na área de direitos humanos, Augustino Veit, integrante da Comissão de Mortos e Desaparecidos, defende a inclusão de temas variados no programa.
— O conceito de direitos humanos hoje inclui direitos sociais, políticos, civis e tantos outros.
Os programas do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), por exemplo, violam os direitos humanos. Populações tradicionais são obrigadas a deixar regiões de construção de barragem, onde tinham uma história de vida, e sobreviviam com pesca e, de uma hora para outra, perdem tudo. Isso é violação de direitos humanos — disse Veit.
Secretaria diz que programa tem chancela da ONU O líder do PSDB na Câmara, dos Deputados, José Aníbal (SP), pediu uma análise detalhada de sua assessoria, mas antecipou que o programa engloba temas demais: — É um “X tudo”.
Em nota, o ministro interino da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Rogério Sottili, afirmou ontem que a ampliação dos temas no programa está prevista em tratados e convenções da Organização das Nações Unidas (ONU). Sottili afirmou que a inclusão de assuntos variados no programa é uma demanda da sociedade civil.
“São crescentes demandas da sociedade civil organizada, que encontrou na agenda dos direitos humanos um conteúdo fundamental de suas lutas, em diferentes cenários, para exigir a efetivação de relações sociais igualitárias e justas”, afirmou Sottili na nota. O ministro interino disse também que o Brasil ratificou a grande maioria dos tratados internacionais sobre direitos humanos
Silvio Tendler :: Anistia x impunidade
DEU EM O GLOBO
Ao ministro da Defesa Exmo. dr. Nelson Jobim Invado sua caixa de mensagem pedindo atenção para um tema que trata do futuro, não do passado. O senhor me conhece pessoalmente e lembra-se de que, quando fui secretário de Cultura de Brasília, em 1996, o senhor era ministro da Justiça e instituiu e deu no Festival de Cinema de Brasília um prêmio para o filme que melhor abordasse a questão dos direitos humanos. Era uma preocupação comum a nossa.
Por que me dirijo agora ao senhor? Um punhado de cidadãos — hoje somos mais de dez mil — assinamos um manifesto afirmando que os envolvidos em crimes de tortura em nome do Estado brasileiro devem ser julgados e punidos por seus atos, contrários aos mais elementares sentimentos da nacionalidade. Agimos em nome da intransigente defesa dos direitos humanos.
O senhor, ministro da Defesa, homem comprometido com a ordem democrática, eminente advogado constitucionalista, um dos redatores e subscritores da Constituição de 1988, hoje em ação concertada com os comandantes das Forças Armadas, condena a iniciativa de punir torturadores.
Este gesto, na prática, resulta em dar proteção a bandidos que desonraram a farda que vestiam ao torturar, estuprar, roubar, enriquecer ilicitamente sempre agindo em nome das instituições que juraram defender. É incompreensível que o nosso futuro democrático seja posto em risco para acobertar crimes praticados por bandidos, o que reforça a sensação de impunidade.
O que está em juízo não é o julgamento das Forças Armadas, como afirmam os que as querem arrastar para o lodo moral que mergulharam.
Os chefes militares podem ficar tranquilos porque seus antecessores não irão para a cadeia pelos crimes que cometeram.
O senhor deve estar se perguntando o porquê do meu empenho nesta causa. Vou lhe contar. Despontei pra a vida adulta sob a ditadura militar.
Em 1964, tinha 14 anos e cresci sob o signo do medo. Sou de uma família de judeus liberais, meu pai advogado e minha mãe médica. Invoco as raízes judaicas porque meus pais eram muito marcados pelo Holocausto, pelos crimes nazistas cometidos contra a Humanidade. Tínhamos muito medo das soluções autoritárias.
Em 1969, um companheiro de cineclubismo sequestrou um avião para Cuba. Não tive nada a ver com isso.
Meu crime foi ser amigo — sim, meu crime foi o de ser amigo de um sequestrador.
Quase fui preso. Escapei dessa situação pela coragem pessoal de minha mãe, que driblou os imbecis fardados que foram me prender e consegui fugir de casa nas barbas da turma do Ministério da Aeronáutica.
Tive também a ajuda do coronel-aviador Afrânio Aguiar, que se empenhou até a medula para que eu não fosse preso e massacrado na Aeronáutica.
Em 1970 fui viver no Chile por livre e espontânea vontade. Em janeiro de 1971, do Chile, mandei uma carta para minha mãe. O gesto lhe custou prisão e maus-tratos. Na carta pedia a minha mãe que me enviasse livros e minha máquina de escrever. Militares do DOI-Codi arrombaram minha casa, à procura de uma metralhadora (assim entenderam o que seria “máquina de escrever”). Minha mãe foi levada para o quartel da PE na Barão de Mesquita, onde foi humilhada e um dos “patriotas” que a conduziu assumiu de forma permanente a guarda do relógio que entrou com ela na PE e não voltou para casa.
Amigos ocultos numa rede de gente decente ajudaram a tirar minha mãe daquela filial verde-oliva do inferno.
Sim, ministro, havia muita gente decente nas Forças Armadas. O que leva chefes militares e o ministro da Defesa a se pronunciarem contra a apuração de crimes? Tortura, estupro, morte, muitas vezes seguidos de roubo, são atos políticos passíveis de anistia? Os chefes militares pronunciam-se a favor do pagamento de reparações às vítimas do arbítrio como um ato indenizatório.
No meu caso, ministro, posso lhe dizer que não há dinheiro que feche essa conta. Não pedi anistia nem indenização porque acho que não sou merecedor. A reparação que peço é a punição exemplar dos torturadores da minha mãe. O senhor há de concordar que não estou pedindo muito nem nada despropositado.
Justiça, peço apenas justiça.
Bom 2010 para o senhor.
Atenciosamente,
Silvio Tendler é cineasta
Ao ministro da Defesa Exmo. dr. Nelson Jobim Invado sua caixa de mensagem pedindo atenção para um tema que trata do futuro, não do passado. O senhor me conhece pessoalmente e lembra-se de que, quando fui secretário de Cultura de Brasília, em 1996, o senhor era ministro da Justiça e instituiu e deu no Festival de Cinema de Brasília um prêmio para o filme que melhor abordasse a questão dos direitos humanos. Era uma preocupação comum a nossa.
Por que me dirijo agora ao senhor? Um punhado de cidadãos — hoje somos mais de dez mil — assinamos um manifesto afirmando que os envolvidos em crimes de tortura em nome do Estado brasileiro devem ser julgados e punidos por seus atos, contrários aos mais elementares sentimentos da nacionalidade. Agimos em nome da intransigente defesa dos direitos humanos.
O senhor, ministro da Defesa, homem comprometido com a ordem democrática, eminente advogado constitucionalista, um dos redatores e subscritores da Constituição de 1988, hoje em ação concertada com os comandantes das Forças Armadas, condena a iniciativa de punir torturadores.
Este gesto, na prática, resulta em dar proteção a bandidos que desonraram a farda que vestiam ao torturar, estuprar, roubar, enriquecer ilicitamente sempre agindo em nome das instituições que juraram defender. É incompreensível que o nosso futuro democrático seja posto em risco para acobertar crimes praticados por bandidos, o que reforça a sensação de impunidade.
O que está em juízo não é o julgamento das Forças Armadas, como afirmam os que as querem arrastar para o lodo moral que mergulharam.
Os chefes militares podem ficar tranquilos porque seus antecessores não irão para a cadeia pelos crimes que cometeram.
O senhor deve estar se perguntando o porquê do meu empenho nesta causa. Vou lhe contar. Despontei pra a vida adulta sob a ditadura militar.
Em 1964, tinha 14 anos e cresci sob o signo do medo. Sou de uma família de judeus liberais, meu pai advogado e minha mãe médica. Invoco as raízes judaicas porque meus pais eram muito marcados pelo Holocausto, pelos crimes nazistas cometidos contra a Humanidade. Tínhamos muito medo das soluções autoritárias.
Em 1969, um companheiro de cineclubismo sequestrou um avião para Cuba. Não tive nada a ver com isso.
Meu crime foi ser amigo — sim, meu crime foi o de ser amigo de um sequestrador.
Quase fui preso. Escapei dessa situação pela coragem pessoal de minha mãe, que driblou os imbecis fardados que foram me prender e consegui fugir de casa nas barbas da turma do Ministério da Aeronáutica.
Tive também a ajuda do coronel-aviador Afrânio Aguiar, que se empenhou até a medula para que eu não fosse preso e massacrado na Aeronáutica.
Em 1970 fui viver no Chile por livre e espontânea vontade. Em janeiro de 1971, do Chile, mandei uma carta para minha mãe. O gesto lhe custou prisão e maus-tratos. Na carta pedia a minha mãe que me enviasse livros e minha máquina de escrever. Militares do DOI-Codi arrombaram minha casa, à procura de uma metralhadora (assim entenderam o que seria “máquina de escrever”). Minha mãe foi levada para o quartel da PE na Barão de Mesquita, onde foi humilhada e um dos “patriotas” que a conduziu assumiu de forma permanente a guarda do relógio que entrou com ela na PE e não voltou para casa.
Amigos ocultos numa rede de gente decente ajudaram a tirar minha mãe daquela filial verde-oliva do inferno.
Sim, ministro, havia muita gente decente nas Forças Armadas. O que leva chefes militares e o ministro da Defesa a se pronunciarem contra a apuração de crimes? Tortura, estupro, morte, muitas vezes seguidos de roubo, são atos políticos passíveis de anistia? Os chefes militares pronunciam-se a favor do pagamento de reparações às vítimas do arbítrio como um ato indenizatório.
No meu caso, ministro, posso lhe dizer que não há dinheiro que feche essa conta. Não pedi anistia nem indenização porque acho que não sou merecedor. A reparação que peço é a punição exemplar dos torturadores da minha mãe. O senhor há de concordar que não estou pedindo muito nem nada despropositado.
Justiça, peço apenas justiça.
Bom 2010 para o senhor.
Atenciosamente,
Silvio Tendler é cineasta
Miriam Leitão:: Silêncio forçado
O governo periga errar 100% nas duas brigas com os militares. Recusa-se a aceitar o relatório técnico da Aeronáutica sobre a compra dos caças e submete-se às ordens dos comandantes militares de que não se investigue os crimes cometidos durante a ditadura.
Vai dizer não ao que deveria dizer sim; e dizer sim ao que deveria dizer não. O país não pode ter medo do passado, e quem entende de caças é a Força Aérea.
O governo encomendou um estudo sobre qual é a melhor proposta técnica na oferta de caças para reequipar a Aeronáutica. E pediu, claro, à Aeronáutica, que é quem entende do assunto e quem vai operar o equipamento. Se um estudo foi encomendado é para ser levado em consideração; quem encomendou tem que esperar a resposta dos técnicos antes de dar declarações favoráveis a um dos concorrentes. O presidente Lula e o ministro Nelson Jobim não esconderam suas preferências pelos franceses e o Planalto diz que a decisão é política.
Errado. A decisão precisa, antes de tudo, atender ao objetivo principal: o equipamento tem que ser eficaz na vigilância e proteção do país. Atendido esse requisito, é inevitável pensar em qual proposta é mais barata e em qual teremos mais controle da tecnologia, para não ficarmos dependentes do fornecedor.
O governo tem insinuado que o país tem que fazer uma aliança estratégica com uma potência europeia, como a França, na área militar. Contra quem mesmo? Está faltando explicitar melhor esse pensamento por que ele está meio surrealista, dado que não estamos nos armando contra um país especifico, mas apenas para que as Forças Armadas cumpram seu papel de vigilância e proteção do território e de força dissuasória.
Quanto ao que se passou no aparelho de Estado durante a ditadura, é claro que o assunto precisa ser encarado.
Não pode haver um tema tabu. Todos os regimes de força enfrentaram investigações após o seu término.
Na América Latina, todos os países que passaram pela mesma situação estão lidando com o tema, de uma forma ou de outra. O Brasil está afundado em sofismas.
A apuração do que se passou, do que aconteceu com os desaparecidos, dos crimes de tortura e morte cometidos dentro de quartéis ou por militares, é um dever para com a História, para com as futuras gerações.
Não pode ser entendido como revanchismo o que é a simples busca de informações.
Sempre que se fala nisso, os militares respondem ou que as informações estão todas disponíveis, ou que elas foram destruídas. Disponíveis não estão; se estivessem, no mínimo o país saberia como desapareceram os desaparecidos. Se foram destruídas é preciso dizer quem as destruiu, com que propósito e sob ordens de quem. Como se sabe, os militares recebem e cumprem ordens.
Uma investigação honesta e ampla não ameaça as Forças Armadas como instituição.
O que se procura saber são os eventuais culpados por crimes que foram cometidos. Quem os cometeu usou o Estado contra cidadãos e esclarecer isso não é ameaça à instituição em si. Se os atuais comandantes vetam qualquer discussão do tema, aí sim estão envolvendo a instituição, como um todo, numa questão conjuntural de tempo determinado. Na Argentina, alguns militares, inclusive o general Jorge Rafael Videla, estão presos, e o Exército continua lá exercendo as suas funções institucionais.
Há um outro sofisma presente no debate dos últimos dias: o de que se houver punição tem que ser para os dois lados, se houver julgamento, que ele recaia também sobre quem praticou crimes na esquerda armada. Os militantes de esquerda, ou os que se opuseram ao regime, mesmo os que nem pegaram em armas, foram presos, torturados, julgados, exilados, aposentados, cassados, demitidos, perseguidos. Estiveram diante de tribunais de exceção, que sequer respeitavam direitos de defesa, de recurso, de apresentação de provas. Eram julgados não por juízes, mas por militares, como se fossem criminosos de guerra. Os dois grupos não são iguais: um foi punido, o outro conta com o conluio do silêncio.
Um grupo é formado por pessoas que têm rosto, nome, endereço. O outro é formado por pessoas sem rosto, que vivem nas sombras e das sombras.
Há o argumento de que a Lei de Anistia foi para os dois lados. A lei é de 1979, seis anos antes do fim do regime, dois anos antes da explosão do Riocentro. Foi a lei possível. Agora, 25 anos depois do fim do regime militar não há razão alguma para que o poder civil se curve, com medo do veto dos militares.
O país tem uma ferida, ela permanecerá aberta, a menos que seja tratada. A conciliação não ocorrerá por efeito da farta e equivocada distribuição de indenizações — contra as quais me pronuncio nesse espaço há 15 anos — nem pelo silêncio forçado. No lançamento do livro “Direito à Memória e à Verdade”, o ministro Nelson Jobim afirmou: “Não haverá indivíduo que a este ato possa reagir. Se houver, terá resposta”. Era bravata do ministro. Recentemente, o governo gastou R$ 13 milhões numa campanha publicitária apelando às pessoas que forneçam informações que ajudem na localização de corpos e esclareçam episódios da ditadura.
Patético! As Forças Armadas são hoje democráticas e respeitosas da lei e da ordem. Não têm por que impor limites ao governo e à sociedade na investigação sobre um tempo infeliz da nossa História.
O poder civil não tem razão alguma para se deixar tutelar.
Se o país tomar a decisão de não enfrentar o passado, que seja por outros motivos, mas não por imposição dos militares. Do contrário, esta será uma democracia amedrontada.
Graziela Melo:: POETA TRISTE
Poeta triste
sou eu
Navego
Nas ondas
Do mar...
Satisfaço
meus delírios
Esqueço
dos meus
martírios
Desmancho
as dores
no ar...
Procuro
as flores
Imagino
Amores
Afetos
e sentimentos
Prolongo
os últimos
momentos
que ainda
me restam
de amar!!!
Rio de Janeiro, 07/01/10
sou eu
Navego
Nas ondas
Do mar...
Satisfaço
meus delírios
Esqueço
dos meus
martírios
Desmancho
as dores
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Procuro
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Imagino
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Afetos
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Prolongo
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momentos
que ainda
me restam
de amar!!!
Rio de Janeiro, 07/01/10
Vagner Gomes de Souza* ::Os Mosqueteiros no Rio de Janeiro
O estado do Rio de Janeiro consolidou uma política do Antigo Regime francês na distribuição de privilégios aos aliados políticos da situação. A situação reina absolutamente como se não houvesse uma oposição. Na verdade, oposição orgânica não observamos no cenário político fluminense. A melhor avaliação seria o reconhecimento de políticos oposicionistas que emergem em momentos delimitados pelos fatos. Os fatos políticos é que conduzem a chamada oposição uma vez que não se organizou em torno de uma política de frente ampla.
Atualmente, não considerando a dissidência da situação estadual que se deslocou para o PR sob a liderança de Garotinho, a oposição pode ser classificada em dois tipos: a oposição dos setores da “velha esquerda” (PSOL, PSTU, PCB-Dissidente) e a oposição dos setores liberais e da esquerda moderna (DEM, PSDB, PPS e parte significativa do PV). A base eleitoral desses dos tipos oposicionistas estaria na Capital onde Denise Frossard (PPS/PFL) foi vitoriosa nas eleições de 2006.
Consideremos que para enfrentar as raízes do Antigo Regime os filósofos iluministas estejam representados pelo Rousseau no primeiro grupo oposicionista e por Voltaire no segundo grupo. Entretanto, não há um balanço do Governo Estadual que unifique esses dois campos. Então, desenvolveremos uma análise sobre os dilemas do segundo grupo político oposicionista em construir uma candidatura de oposição.
Fizemos a opção de chamá-los de Os Mosqueteiros em respeito a essa análise do processo político de transformação burguesa que ocorre na política fluminense, mas com a continuidade dos privilégios do Antigo Regime (clientelismo, “pão e circo” no assistencialismo, ausência de oposição na imprensa, etc.). PPS, PSDB e DEM aparentam os soldados de uma política declinante uma vez que focam o debate na formação de um “palanque eleitoral” pelo olhar do individualismo partidário, ou seja, há muito cálculo de coeficiente eleitoral para a eleição de parlamentares federais/estaduais. Enfim, parte da pequena política como se fossem perder uma administração estadual.
O exemplo da política de alianças em 2008 na Capital foi uma vitória política não apenas pelo nome que a representou, mas pela condição de cumprir compromissos de uma nova postura na campanha. Os Mosqueteiros devem olhar mais para a política nacional que demonstra que mais de 65% do eleitorado fluminense não votaria na candidata lulista mesmo com o apoio declarado de dois pré-candidatos ao governo estadual.
Há uma ampla avenida política para ser trilhada se houver uma unidade com programa de reformas com um discurso que sensibilize setores das camadas médias que moram no interior. Campos, Nova Friburgo, Teresópolis, Macaé, Niterói, Angra dos Reis e Volta Redonda são exemplos de municípios onde a oposição poderá ganhar apoio eleitoral se apresentarem uma política democrática de redistribuição da ocupação do solo urbano. Aguardemos que as luzes cheguem à prática política.
[*} Militante do PPS em Campo Grande-Rio de Janeiro. Suplente do Conselho de Ética do Diretório Municipal do PPS-RJ. Mestre em Sociologia (UFRuralRJ).
Atualmente, não considerando a dissidência da situação estadual que se deslocou para o PR sob a liderança de Garotinho, a oposição pode ser classificada em dois tipos: a oposição dos setores da “velha esquerda” (PSOL, PSTU, PCB-Dissidente) e a oposição dos setores liberais e da esquerda moderna (DEM, PSDB, PPS e parte significativa do PV). A base eleitoral desses dos tipos oposicionistas estaria na Capital onde Denise Frossard (PPS/PFL) foi vitoriosa nas eleições de 2006.
Consideremos que para enfrentar as raízes do Antigo Regime os filósofos iluministas estejam representados pelo Rousseau no primeiro grupo oposicionista e por Voltaire no segundo grupo. Entretanto, não há um balanço do Governo Estadual que unifique esses dois campos. Então, desenvolveremos uma análise sobre os dilemas do segundo grupo político oposicionista em construir uma candidatura de oposição.
Fizemos a opção de chamá-los de Os Mosqueteiros em respeito a essa análise do processo político de transformação burguesa que ocorre na política fluminense, mas com a continuidade dos privilégios do Antigo Regime (clientelismo, “pão e circo” no assistencialismo, ausência de oposição na imprensa, etc.). PPS, PSDB e DEM aparentam os soldados de uma política declinante uma vez que focam o debate na formação de um “palanque eleitoral” pelo olhar do individualismo partidário, ou seja, há muito cálculo de coeficiente eleitoral para a eleição de parlamentares federais/estaduais. Enfim, parte da pequena política como se fossem perder uma administração estadual.
O exemplo da política de alianças em 2008 na Capital foi uma vitória política não apenas pelo nome que a representou, mas pela condição de cumprir compromissos de uma nova postura na campanha. Os Mosqueteiros devem olhar mais para a política nacional que demonstra que mais de 65% do eleitorado fluminense não votaria na candidata lulista mesmo com o apoio declarado de dois pré-candidatos ao governo estadual.
Há uma ampla avenida política para ser trilhada se houver uma unidade com programa de reformas com um discurso que sensibilize setores das camadas médias que moram no interior. Campos, Nova Friburgo, Teresópolis, Macaé, Niterói, Angra dos Reis e Volta Redonda são exemplos de municípios onde a oposição poderá ganhar apoio eleitoral se apresentarem uma política democrática de redistribuição da ocupação do solo urbano. Aguardemos que as luzes cheguem à prática política.
[*} Militante do PPS em Campo Grande-Rio de Janeiro. Suplente do Conselho de Ética do Diretório Municipal do PPS-RJ. Mestre em Sociologia (UFRuralRJ).