domingo, 31 de janeiro de 2010

Reflexão do dia – Hannah Arendt

“Falando em termos práticos, o governante totalitário age como um homem que permanentemente insulta outro, até todo mundo saber que este último é seu inimigo, de modo que possa, com alguma plausibilidade, ir até ele e matá-lo em autodefesa.”


Hannah Arendt, As origens do totalitarismo.

Merval Pereira:: Um processo virtuoso

DEU EM O GLOBO

DAVOS. Ao contrário do governo brasileiro, que faz questão de ressaltar os avanços alcançados no desenvolvimento do país a partir dos resultados obtidos nestes sete anos, sem olhar o que foi feito anteriormente, a visão generalizada aqui em Davos é que o país está em um processo de desenvolvimento contínuo que pode ser contado em duas décadas, o que só dá solidez às conquistas.

O professor John Coatsworth, reitor da escola de Negócios Internacionais da Universidade Columbia, em Nova York, um historiador especializado em economia da América Latina, ressaltou essa continuidade do processo de desenvolvimento do Brasil chamando a atenção para os fatores que, na sua opinião, impediram que o país continuasse seu ritmo de crescimento registrado no início do século 20.

Para Coatsworth, o Brasil parou seu crescimento, obtido ao longo dos 80 anos iniciais do século 20, devido basicamente ao protecionismo adotado como política de governo nos anos 1930, e ao descontrole da inflação durante décadas seguidas.

Sem dizer claramente, o professor de Columbia situou o encontro do Brasil com seu futuro em decisões de governos recentes: a abertura da economia, iniciada no governo Collor e aprofundada na gestão de Fernando Henrique, e no controle da inflação obtido com o Plano Real.

O Brasil, na verdade, já teve crescimentos sustentados do PIB de níveis asiáticos: de 1950 a 1959, média de 7,15%; de 1960 a 1969, média de 6,12%; e de 1970 a 1979, de 8,78%.

Ao analisar o crescimento de nossa renda per capita, o empresário Paulo Cunha mostra num estudo que, até 1980, o Brasil cresceu mais que a média mundial: de 1900 a 1980, a renda per capita brasileira cresceu em média 3,04%, enquanto a renda mundial cresceu 1,92%.

O período de maior crescimento foi o de 1950 a 1980, quando o país cresceu em média 4,39% sua renda per capita, para um crescimento médio mundial de 2,83%.

Nesse período, o Brasil figurou entre os dez países mais dinâmicos do mundo.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, para tentar rebater elegantemente uma provocação em um dos debates sobre ser a política econômica do governo Lula uma mera repetição da do governo de Fernando Henrique Cardoso, apresentou números do crescimento da economia nos últimos anos.

Disse que a média dos oito anos do governo Fernando Henrique foi de 2,5% de crescimento do PIB, enquanto o governo Lula caminha para o dobro.

Há, no entanto, nuances nesses números. O crescimento médio da economia brasileira nos cinco primeiros anos do governo Lula, por exemplo, foi de 3,8%, colocando o Brasil em 35olugar em uma relação com 39 países emergentes feita pela Austin Ratings.

A partir de 2007, o Brasil entrou em um crescimento anual em torno de 5%, mas outra vez há que se relativizar esse sucesso. Mesmo o crescimento de 6,1% de 2007 coloca o Brasil em desvantagem se considerados todos os países do mundo.

Em 2008, o país cresceu 5,1%, mas, em 2009, o crescimento será próximo de zero, ou mesmo negativo. Se se confirmar a previsão do governo de crescer 6% este ano, é possível que a média final de crescimento do governo Lula seja próxima de 4%.

Um crescimento menor, por volta de 5%, por exemplo, levaria a média do governo Lula para um patamar por volta de 3,5%, que esteve sempre abaixo da média do crescimento mundial, com o agravante de que os primeiros anos do governo Lula, antes da crise internacional, foram os mais prósperos do mundo nos últimos anos.

Um ponto positivo, que foi destacado pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, é o de que o “crescimento potencial” do Brasil, que, no início do governo Lula, era de cerca de 1,5%, hoje já está por volta de 5%, o que mostra a evolução dos investimentos públicos e privados, e a melhoria dos fundamentos econômicos.

Outra questão importante que foi levantada nos debates das perspectivas futuras do Brasil foi a competitividade da economia em relação ao mundo globalizado.

O Fórum Econômico Mundial, como faz todos os anos, lançou um ranking de competitividade dos países. A China continua predominando entre as grandes economias em desenvolvimento, se posicionando entre as 30 economias mais competitivas do mundo.

Entre os outros Brics, Brasil e Índia também registraram avanços, enquanto a Rússia perdeu nada menos que 12 posições. O Brasil ganhou oito posições, ultrapassando o México pela primeira vez no relatório, depois de ter superado a Rússia no ano anterior.

A melhora na competitividade brasileira, segundo o estudo do Fórum, embora o país esteja em 56o, superado na América Latina pelo Chile e pela Costa Rica, é fruto do setor empresarial “inovador e sofisticado”, do tamanho de seu mercado interno e da melhora na estabilidade macroeconômica.

Outras características vantajosas do Brasil são ter um dos mercados financeiros mais desenvolvidos na região e um setor de negócios diversificado, com significativo potencial para a inovação.

O estudo do Fórum Econômico Mundial aponta falhas que precisam ser corrigidas: o ambiente institucional, a estabilidade macroeconômica, a eficiência dos produtos e os mercados de trabalho.

Além, é claro, do sistema educacional precário.

Ricardo Hausmann, venezuelano e ex-ministro de governos da era antes de Chávez, e opositor claro do atual regime, hoje professor na Universidade Harvard, cobrou uma posição do Brasil em defesa dos princípios democráticos na região.

Uma consequência do reconhecimento do aumento da capacidade de influência do Brasil no mundo, a partir do princípio de que o país tornou-se, de fato, o líder regional indiscutível.

Mas isso traz também responsabilidades políticas que muitas vezes não têm correspondência nas atitudes do governo.

Sergio Fausto:: Liderança à altura

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Desde que voltamos a elegê-los diretamente, o Brasil teve cinco presidentes. Dois resultaram de acidentes históricos: Sarney, pela morte de Tancredo, e Itamar, pelo impeachment. Outro, Collor, foi um aventureiro que surgiu do nada, criou um partido de ocasião e se elegeu em circunstâncias excepcionais. Dos cinco, somente dois, Fernando Henrique e Lula, são personagens centrais da trama histórica que se desenrola no Brasil a partir da luta contra o regime autoritário.

O fato de serem líderes antes de serem presidentes deu-lhes condições diferenciadas para o exercício do poder, seja no âmbito da política interna ou externa, por meio da diplomacia. Além da legitimidade formal decorrente dos votos, contavam (Lula ainda conta) com a legitimidade substantiva que só a biografia política pode conferir. Elemento essencial para presidir um país das dimensões e da complexidade do Brasil, onde desafios do século 19 convivem com os do século 21, onde o presidente eleito não conta com maiorias parlamentares automáticas, onde os interesses de regiões e grupos dificilmente confluem, onde a sociedade é fragmentada, mas ativa e reivindicante.

Há quem atribua alternativamente mais méritos a Fernando Henrique ou a Lula por hoje nos vermos e sermos vistos como um país apto e relevante, além de democrático. É difícil, no entanto, negar, para dizer de forma neutra, que ambos ajudam a explicar o "sucesso do Brasil", tal como ele é percebido dentro e, sobretudo, fora do País. Sucesso sempre relativo, por isso as aspas. Ainda assim, reconhecendo que este não é um país para principiantes, frase famosa de Tom Jobim, e considerando as alternativas, é difícil não concluir que o Brasil se beneficiou, desde 1994, da disponibilidade de lideranças históricas com viabilidade eleitoral. E que tenham sido Fernando Henrique e Lula os eleitos, e não outros.

Em outubro haverá eleições novamente. Dos candidatos prováveis, apenas José Serra tem biografia equiparável à do atual presidente e à de seu antecessor. É o único entre os dois principais candidatos cuja liderança não terá de ser forjada a golpes de marketing eleitoral. Sua liderança precede a sua candidatura. Sua biografia se confunde com a construção da democracia e das políticas públicas que estão na base do desenvolvimento econômico e social do Brasil recente.


Secretário de Planejamento do governo Montoro, deputado federal, senador, ministro do Planejamento e da Saúde, prefeito e governador de São Paulo, Serra deixou sua marca na Lei de Responsabilidade Fiscal, no programa de controle e prevenção da aids, na ampliação do programa de saúde da família, na introdução dos medicamentos genéricos, para ficar apenas em exemplos na órbita federal. Sua candidatura é o desdobramento natural de uma trajetória pessoal indissociável da história política do País, no que ela tem de melhor.

Quando se olha pelas mesmas lentes, sobressai o artificialismo da candidatura de Dilma, produto da vontade de Lula e da escassez de candidatos no campo do PT, depois que Dirceu e Palocci foram abatidos pelo escândalo do mensalão. Que cargos eletivos disputou? Que experiência parlamentar possui? De que movimentos participou no âmbito da sociedade civil? Quando e onde foi testada nas habilidades que se requerem de uma pessoa que almeja ocupar o principal cargo político do País? De destaque, em sua biografia, além do engajamento na luta armada - experiência existencialmente significativa, mas de pouca valia na formação para a política numa sociedade democrática -, há o exercício de cargos executivos no governo do Rio Grande do Sul e no governo federal, com Lula. Numa administração marcada pela lentidão operacional, ganhou fama de eficiente. Tal eficiência, ainda que os fatos a comprovassem, recomendaria seu nome para novo posto gerencial, não para um cargo eminentemente político.

Sem experiência e liderança próprias, nem sequer em seu próprio partido, Dilma corre o risco de ser refém de uma aliança política cujo único denominador comum, além do apetite por votos e cargos, é a desconfiança recíproca de seus principais componentes, PT e PMDB, já demonstrada na temporada pré-eleitoral. O fiador da aliança, Lula, estará, em tese, fora do poder, à espera de 2014. Ficará de fato afastado ou buscará suprir o déficit de liderança da eventual presidente eleita? Se ficar afastado, vislumbra-se um governo consumido pela disputa palmo a palmo pelo aparelho do Estado. Será grande a tentação de inchá-lo ainda mais - com cargos, empresas e gastos - para pacificar os interesses em conflito. Cenário propenso a curtos-circuitos políticos e escândalos político-empresariais (reais ou fabricados pelos interesses que se sentirem alijados na disputa interna ao governo). Não haverá então Lula para sobrenadar a tudo e a todos. Na segunda hipótese, o atual presidente retém o poder de fato, deixando à sua sucessora o poder de direito. Para a democracia seria um retrocesso, por reforçar o componente personalista da nossa cultura política e tornar ainda menos transparente o processo decisório.

Nenhuma das hipóteses é boa para o Brasil. O País tem grandes desafios para atender às expectativas que nós mesmos (e o mundo) temos a nosso respeito. Parte dos desafios refere-se a coisas que sabíamos que teríamos de fazer e não fizemos - a mais urgente delas, deter o crescimento do gasto público corrente, para abrir espaço ao investimento e à redução da carga tributária, sem o que não haverá crescimento sustentado. A outra parte dos desafios não sabíamos que teríamos de enfrentar, mas o sucesso nos obriga a fazê-lo - por exemplo, definir com clareza o perfil da liderança regional do Brasil e da sua participação nos grandes temas globais, nas finanças, no clima e na segurança.

São desafios que exigem liderança à altura.

Sergio Fausto, diretor executivo do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP.

Eliane Cantanhêde:: Montando o circo

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - O Congresso reabre na terça com uma pauta fraca, baseada na regulamentação do pré-sal, e as energias políticas estarão voltadas para três questões: o destino de Ciro Gomes na campanha, o imbróglio do vice de Dilma e a ansiedade da oposição pelo sim de Aécio Neves para a chapa de Serra.

Se depender de Ciro, ele vai ser candidato a tudo. Se depender do PT, não vai ser candidato a nada. Ciro estava assanhado para disputar a Presidência enquanto à frente de Dilma nas pesquisas, mas isso é coisa do passado desde o Datafolha de dezembro. Serra se mantém na liderança, Dilma se isolou no segundo lugar, e simplesmente não há espaço para Ciro.

Se insistir, ele vai sem as bênçãos de Lula, sem alianças partidárias, sem financiadores e sem tempo na TV. Ou seja, para o buraco. Se desistir, vai para onde? Lula estimulou Ciro a mudar o domicílio eleitoral para São Paulo, mas o PT não quer nem ouvir falar na candidatura dele ao Bandeirantes. Seria perder a eleição por WO e jogar fora a chance de apresentar um nome em 2010 para ter um candidato petista de fato em 2012 e 2014.Ciro está no limbo, e Michel Temer não está melhor. Esfomeado para ser vice de Dilma, já teve de digerir o Sapo Barbudo cobrando uma lista tríplice do PMDB, e agora engole um sapo atrás do outro: o PT lança nos jornais o nome de Sérgio Cabral num dia; o de Henrique Meirelles no outro; o de Hélio Costa no seguinte. Para bom entendedor, basta. Para políticos experientes como Temer, é demais.

E o PSDB está naquela: é Aécio ou Aécio para vice de Serra. Se ele bater pé que não, vai ser até engraçado -mas engraçado para nós, da plateia. Para quem está no picadeiro da oposição, um drama.

Essas três questões estarão na superfície do debate político, ao lado da tensa montagem dos palanques estaduais. Nas profundezas, a questão é outra: a explosiva atração de financiadores de campanha.

MST e CUT vão intensificar ações até junho

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para não prejudicar partidos aliados nas eleições, movimentos sociais prometem antecipar mobilizações

Tiago Décimo

Representantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) avisaram, durante o Fórum Social Mundial Temático Bahia, em Salvador, que vão promover uma série de mobilizações pelo País, de greves a grandes ocupações, ainda no primeiro semestre. Mas vão desacelerar as ações no segundo semestre para não prejudicar os partidos aliados, como PT, PSOL e PSTU, nas eleições.

"Por ser um ano de eleições, tudo o que a gente faria no ano inteiro vai ter de ser feito nos primeiros cinco ou seis meses", informa o dirigente nacional do MST, João Paulo Rodrigues. "Além disso, é o último ano do governo Lula, que é um governo democrático, mas está deixando para trás promessas que não foram cumpridas."

Rodrigues destaca também que o movimento planeja fazer campanha grande contra a criminalização dos movimentos sociais. "Nós achamos que vamos ser vítimas de um processo eleitoral e a forma de nos vitimar vai ser criminalizando nossa luta, como fizeram em Iaras", diz, referindo-se à operação da Polícia Civil que, na semana passada, prendeu integrantes e pessoas ligadas ao MST por causa da invasão, em outubro, da Fazenda Cutrale, em Borebi (SP).

Outro tema também foi comum nos encontros e debates promovidos nos dois primeiros dias do fórum na capital baiana: a pressa. Para centrais sindicais e movimentos sociais representados nas mais de cem atividades desenvolvidas no evento, existe um consenso de que o último ano de Lula precisa ser de pressão para aprovar reformas sociais.

A ideia geral é que a eleição tende a ser acirrada e os partidos considerados aliados pelos movimentos sociais podem sair derrotados das urnas. Nessa hipótese, consideram, seria mais difícil manter diálogo com o governo federal. "A gente precisa sair da conversa retórica para ir para a prática", complementa o presidente da CUT, Arthur Henrique.

A pressa em ver aprovadas mudanças sociais mais profundas relacionadas ao governo federal contagia, também, membros do próprio executivo nacional. O secretário Nacional de Economia Solidária, do Ministério do Trabalho, Paul Singer, foi o primeiro a manifestar as ideias explicitamente durante o fórum, na última sexta-feira, ao defender a nacionalização de instituições financeiras durante a mesa O Sul-Sul como Alternativa. Ontem, foi a vez de o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, declarar que toda propriedade privada precisa ter "função social". Nos dois casos, a plateia - formada majoritariamente por integrantes de movimentos sociais - aplaudiu.

"Ninguém discute o direito de propriedade, mas está na hora de cobrar a função social da propriedade, para ampliar o número de proprietários do País", defende o ministro. "Isso tem relação com reforma agrária, com melhores condições de vida e de trabalho para a população.
Não podemos aceitar que o direito à propriedade seja maior que o direito à vida e à dignidade humana."

Para Ananias, o mesmo raciocínio vale para o lucro. "Ninguém duvida que o lucro seja importante, mas ele não pode ser demasiado, não pode ser superior ao bem comum", avalia. "E isso entra na questão da cobrança de impostos: temos de lutar para que quem tem mais pague mais, quem tem menos pague menos e quem não tem nada não pague nada, para que mais tarde também possa contribuir com a sociedade. Estamos vivendo, no País, um processo de "desprivatização" do Estado."

Para o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, as reivindicações de todos os setores são legítimas e merecem ser discutidas. "Não temos receio da conversa com os movimentos sociais", afirma. "Além disso, o presidente Lula nos determinou para, no começo deste ano, apresentar ao Congresso uma proposta de consolidação dos avanços sociais, para que, em forma de lei, eles não possam ser mudados por nenhum outro governo."

O fórum, que reuniu 10 mil pessoas nos dois primeiros dias, termina hoje.

Zander Navarro:: Quem tem medo da democracia?

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Direitos humanos não se tornam práticas sociais em função de planos e leis. É o ideal democrático, quando existente, que cria direitos

O episódio do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos encerra outras lições, além da ruidosa polêmica recente. Sugere também existir um imenso fosso político, talvez ainda ignorado. Refiro-me à insuficiente qualidade da democracia brasileira e ao desinteresse, generalizado entre os atores políticos, em aperfeiçoá-la.

Uma ordem democrática não se define somente por diversos procedimentos instituídos, como o são, por exemplo, as eleições regulares.

Primeiro, uma "democracia realmente democrática" floresce quando anima um jogo político que gradualmente entranha mais tolerância em relação aos conflitos sociais, cuja resolução assim delimitará o espaço fundador mais decisivo da política.

Define-se também pela produção irrestrita de conhecimento e informação pelos e para os cidadãos.

Sobretudo, esse ideal democrático precisa produzir sempre diversos direitos sob processos políticos que tendem a ser evolutivos. Não por outra razão, fala-se em "gerações de direitos", uma evidência do adensamento democrático contemporâneo na maior parte das nações.

A concretização desses três eixos centrais, contudo, requer outra afirmação histórica que é rara: a crescente inclusão social, ou plebeísmo, não pode abafar, de um lado, a necessidade de assegurar o pluralismo das opiniões, decorrente da diversidade organizativa e dos interesses distintos, muitas vezes opostos; de outro, não pode constranger uma cidadania virtuosa e republicana que só o enraizamento do civismo poderá ver nascer.

Essa segunda tríade -plebeísmo, pluralismo e comportamentos cívicos, quando juntos- configura a primavera democrática e a virtualidade da sociedade ideal, sob a qual se debatem racionalmente as escolhas sociais, se impede a ditadura da maioria e se limita a manipulação opressora dos fatos.

Infelizmente, o PNDH-3, não podendo se opor à infantil estridência ideológica e ao arcaísmo político de alguns, ignorou tais premissas e permitiu o contrabando, para o texto, de várias promessas absurdas, assim iludindo até mesmo quem, em posição de autoridade, deveria denunciá-las.

Um exemplo típico é a inclusão, no plano, da exigência de audiências públicas para os processos de desapropriação de terras. Ainda que existam casos experimentais promissores, a novidade, se tornada rotineira, necessariamente ameaçará a democracia, ao contrário do que tem sido dito.

A razão é simples: a democratização brasileira, especialmente nas duas últimas décadas, observou a aceleração do plebeísmo, mas em claro detrimento do pluralismo e, especialmente, da qualidade democrática expressa no civismo. Nessa equação desequilibrada, todos perdem, pois as chances de produção da "boa sociedade" se esvaem nessa incerta trajetória na qual prevalece, sobretudo, o peso de quem grita mais -nunca a racionalidade argumentativa.

Se o sumo do plano e a ampliação plebeia devem ser saudados, com entusiasmo, pelos verdadeiros democratas, o rebaixamento das outras faces compromete o futuro político.

Nesse sentido, não é ridículo, como foi pressurosamente indicado neste mesmo espaço, acentuar que aquela proposta produz mais insegurança no campo, quando os atos de desapropriação de terras já seguem minucioso ritual legal e mais não se faz porque a demanda social por terras desabou, e não por alguma inaudita violência que caracterizaria as áreas rurais.

É falso insistir que em tais situações prevalecerá a mediação serena da Justiça, e não a força díspare derivada da mobilização de organizações políticas que hoje atuam em áreas rurais. O proprietário ameaçado, incapaz de mobilizar força social equivalente para contrapor-se, simplesmente submergirá ante o poder da maioria e a nova versão plebeia de realizar a Justiça pela vontade de assembleias, como na Grécia antiga.

Essa é a intenção contida no plano, e não apontar esse desenlace decorre de inconfessáveis objetivos. Sejamos claros: se uma autoridade ministerial foi incapaz de perceber que a correlação de forças no campo inverteu-se e a ideia das audiências espelha a vontade do MST e seus acólitos, trata-se de profundo desconhecimento sobre os processos sociais rurais ou de pueril tergiversação.

Direitos humanos não se transformam em práticas sociais em função de planos e leis. Somente são concretizados se a densidade democrática se enraizar em sua plenitude, em todos os poros da sociedade, e o delicado balanço político sugerido acima se tornar realidade. O ideal democrático, quando existente, é que cria direitos, e não o inverso. Não perceber tal fato apenas ilumina intenções subterrâneas ou algum viés autoritário daqueles que desejam mudanças sem o crivo livre dos cidadãos.

Zander Navarro, 58, sociólogo, é professor associado da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador visitante do Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento da Universidade de Sussex (Inglaterra). Atualmente integra a Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

José de Souza Martins:: Em defesa do Estado-cabide

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Críticas de Stédile ao neoliberalismo ocultam a defesa do paternalismo estatal e o rancor à privatização

A declaração de João Pedro Stédile aos jornais, de que os movimentos sociais farão campanha contra o governador José Serra, provável candidato do PSDB à Presidência da República, contém elementos do maior interesse na análise desta conjuntura política. A começar do implícito reconhecimento de que os movimentos sociais estão nas mãos do PT, o que os torna postiços em relação ao que deles é próprio, pois privados de independência crítica.

A afirmação de que "o Serra seria simbolicamente a volta do neoliberalismo clássico, ia fortalecer o projeto dos americanos" é surpreendente por várias razões. A primeira pela falta de clareza: se é neoliberalismo, não é clássico; se é clássico, não é neoliberalismo. A declaração de Stédile expressa uma orientação política que tem o que negar, mas não tem o que propor. A campanha do PT e nela o engajamento do MST, portanto, será pura e simplesmente contra Serra. Não há nessa declaração a súmula de um projeto político para o País, apenas a síntese rústica do anticapitalismo popular, cuja importância eleitoral, sem dúvida, não pode ser ignorada.

Outro curioso aspecto dessa fala é o da invocação do que, em idos tempos, era chamado de "imperialismo americano", como inimigo a ser combatido porque supostamente grande causa política do povo brasileiro nos dias de hoje. Com o número de pessoas que neste país tem trabalhado e trabalha em multinacionais, essa invocação do imperialismo parece obsoleta.

Como aconteceu com o próprio Lula, que numa delas aprendeu a fazer a política da negociação e da composição, mesmo com os interesses opostos e adversos. Nisso, aliás, se pode reconhecer sua sagacidade. A menção de Stédile parece muito mais ideologia residual de um embate que sofreu grandes mudanças. Coisa de livro esgotado, que só se encontra em sebo. Na trama do referido imperialismo situa-se hoje o Brasil com seus não pequenos interesses na economia de outros países. Tampouco é nacionalista essa concepção do entrevistado, seja porque o próprio Fórum Social propõe-se a ser a Quinta Internacional Socialista, seja porque o apoio do MST a manifestação antibrasileira na Bolívia, não faz muito, não deixa dúvida a respeito.

A crítica neopopulista ao chamado neoliberalismo, no Brasil, tem se limitado a fazer dessa palavra um rótulo de insinuações acusativas para designar práticas e orientações de política econômica que, supostamente, vitimam a sociedade em nome da economia. O ônus do liberalismo econômico seria pago pelos desvalidos. Há, sem dúvida, nos países pobres, o que inclui o Brasil em largo período de sua história contemporânea, efeitos do primado do espontaneísmo do mercado desregulado que têm sido socialmente desagregadores. Nos 50 anos mais recentes, especialmente a partir do governo JK, o primado do mercado reorientou a economia agrícola, desarticulou as relações tradicionais de trabalho, como ocorreu com o colonato nas fazendas de café e com o regime de morada nas fazendas de cana-de-açúcar, expulsou trabalhadores de terra que já era terra alheia e entregou-os ao acaso das relações salariais e do emprego temporário. Foi o caso dos boias-frias, no Sudeste e no Sul, e dos clandestinos, na região canavieira do Nordeste. Embora não sejam as únicas bases de surgimento e afirmação do MST, constituíram poderoso fator na disseminação das ações dessa organização político-partidária. Não se pode ignorar os efeitos perversos do desenvolvimentismo guiado exclusivamente pela lógica do mercado. Ao qual, aliás, o PT se ajustou e com o qual se compôs, limitando-se a reparar as injustiças sociais com o esmolismo do Bolsa-Família e a predação da Previdência Social.

Não se diz que a crítica ao suposto neoliberalismo esconde a defesa do estatismo e do paternalismo de Estado e o rancor pelas privatizações. Em boa parte dos casos, elas livraram o Estado e, portanto, a sociedade, do ônus representado pela estatização de empresas falidas ou como recurso de suplência no aporte de capital onde o capital privado não tinha condições de atuar. A devolução dessas empresas saneadas ao mercado e à competição enfraqueceu o clientelismo político ao suprimir privilégios, um dos grandes passos do governo de FHC no sentido de fortalecer a representação política e o Estado democrático e republicano. Ora, justamente aí está o recuo do governo Lula que, espontaneamente refém das oligarquias e dos partidos oligárquicos, regenerou amplamente a dominação patrimonial e o clientelismo que lhe corresponde. Na companhia de sua candidata Dilma, ainda ministra, Lula não tem feito outra coisa senão distribuir recursos e afagos que viabilizam essa ressurreição do passado e do atraso como meio de obstar e condicionar o processo democrático. Não é estranho, pois, o questionamento radical da alternância de poder em palavras e atos.

A crítica neopopulista e corporativa ao neoliberalismo é a defesa radical do Estado-cabide e o temor do que a alternância de poder pode representar nesse caso com o arejamento do Estado e a retomada da ideia de sua modernização política contra a esclerose do recuo petista aos tempos da República Velha e dos candidatos continuístas, meros papagaios de pirata. A faxina do Estado assistencialista não significa a supressão de políticas sociais que se revelaram úteis na atenuação das adversidades sociais decorrentes de uma política econômica na qual o governo Lula-Dilma mergulhou de cabeça, como política de amplo favorecimento de tudo que a crítica de Stédile ao neoliberalismo pretende esconder.

Essa crítica é também crítica à tolerância, ela sim própria do liberalismo clássico, como fundamento da política democrática e moderna. Convém ter em conta que a ascensão do PT ao poder deve muito à tolerância sem cautela do PSDB e outros partidos de oposição, que em nenhum momento acharam que deveriam abrir um amplo debate público e crítico sobre o autoritarismo popular de que o PT se faria mediação e porta-voz, fundamento conservador da concepção petista de poder.

Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto)

José Arthur Giannotti :: Esquerda amenizada

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

PT e PSDB reivindicam a coroa esquerdista, mas não se dispõem a dar, de fato, uma voz aos pobres

A política brasileira tende para o bipartidarismo, uma luta entre PSDB e PT, tendo, porém, no meio o enorme fantasma guloso do PMDB. Com os pés nas duas canoas, esse partido-ônibus impede que aqueles outros dois encontrem um perfil ideológico mais definido. A ideologia fica a cargo do PV, antes de tudo para saciar a voz de nossa consciência. Marina Silva não é alternativa de governo.

A tendência para o centro não é privilégio nosso. Não foi o que aconteceu com a eleição de Barack Obama, que misturou democratas e republicanos num mesmo caldo renovador? Mas, como estamos vendo, a indefinição dura pouco, pois os republicanos e a direita americana voltam a ganhar terreno. Pagando, contudo, o preço da indefinição. Os eleitores de Massachusetts substituíram a régua liberal do senador Teddy Kennedy por um modelo da american beauty.

No Brasil, onde ainda é feio se declarar de direita, PSDB e PT disputam a coroa da esquerda. O senador Sérgio Guerra, presidente do PSDB, em entrevista à Veja semanas atrás, reivindicou essa coroa para seu partido, que se proporia de fato a alterar certas regras do funcionamento do sistema capitalista. Obviamente não diz como. Em contrapartida, o governo, que ainda se diz petista, se prepara para transformar Dilma Rousseff na garantia de continuidade de um programa reformista. Somente com ela seria mantido o esforço de trazer as classes mais pobres da população para uma sociedade de consumo.

Nisso é ajudado por alguns intelectuais. Se houve melhoria no consumo das classes mais pobres no governo de FHC, argumentam eles, isso se deu em virtude da política macroeconômica de combate à inflação, enquanto o aumento de poder econômico dessas classes, no governo Lula, ocorreu graças à determinação e visão pessoal do presidente, resultado de seu compromisso com os pobres e com suas origens populares.

Mas o cerne de uma política de esquerda se resume em tornar menos pobres as classes desvalidas ou em ajudar para que elas adquiram maior voz e poder? Ditaduras podem criar empregos e aumentar o consumo dessas classes. É o que se verifica desde o fascismo até a política de Saddam Hussein. Mais importante, contudo, do ponto de vista político, é a transferência de poder, criar partidos e associações de massa onde essas possam se expressar e fazer valer seus pontos de vista. Justiça social como conquista, não como dádiva.

Isso é tudo que o lulismo não está deixando acontecer. Mas e o "terceiro setor", os programas de democracia deliberativa e os orçamentos participativos? A experiência tem mostrado que essas inovações somente funcionam com a presença de representantes do governo, que fazem a ponte entre as reivindicações populares e os processos de decisão.

Ora, quando os governistas aparecem nesses órgãos é quase sempre para manipular e evitar que vozes dissidentes se façam ouvir.

Num artigo de grande repercussão, André Singer mostra que o lulismo conseguiu atingir as massas mais pobres - o subpropletariado tal como foi conceituado por Paul Singer - graças a uma política explícita de recomposição de renda, em particular com o programa Bolsa-Família. Aqueles que tinham votado, por exemplo, em Fernando Collor de Mello passaram a apoiar o presidente Lula, criando assim a base popular de sua sustentação política.

Cabe, entretanto, retirar as últimas consequências dessa análise. A massa desorganizada politicamente se faz ouvir pelo bonapartismo, por uma ditadura basicamente conservadora que, para fazer avançar os grandes capitais, aceita pagar preço razoável por sua sustentação política. Esse é o clássico esquema de interpretação desenvolvido por Marx no 18 Brumário, sendo conveniente que nos lembremos do texto por inteiro. Um líder provedor não assenta as bases de uma política profundamente transformadora.

Desde suas origens, no século 19, a esquerda hesitou entre privilegiar a igualdade ou a liberdade. O conceito marxista de ditadura do proletariado esperava resolver a tensão, na medida em que a ditadura - no sentido romano de delegação temporária do poder a um militar - de uma classe majoritária seria menos coercitiva que o centralismo representativo da democracia formal. Mas estamos cansados de saber que, em nome da ditadura do proletariado, sempre tem se instalado a discrição burocrática do comitê central.

No fim de sua vida, Engels já percebera que o advento do sufrágio universal alterava o funcionamento da democracia formal burguesa. Hoje fica patente que o reforço dos mecanismos democráticos se torna condição sine qua non de uma política verdadeiramente popular. Se eles não funcionam, não é porque são sorrateiramente subvertidos? Importa abrir o espaço público, criar procedimentos de discussão, assim como evitar a cristalização do poder nas mãos de grupos ensimesmados.

Acredito que uma boa análise das diferenças entre as políticas de Hugo Chávez e de Evo Morales apontaria nesse sentido. Enquanto o primeiro, alegando luta contra o predomínio burguês, não perde uma oportunidade de cercear as liberdades democráticas, o segundo faz todo o possível para que as populações indígenas tenham voz em seu governo.

Mas voltemos aos nossos problemas. Não está definido se o lulismo será bonapartista. Tudo depende de como se processará a sucessão. Se Dilma Rousseff vencer, a despeito dos sinais já dados de seu comportamento autoritário, como vai lidar com os soluços "à esquerda" do atual governo? Além disso, que compromissos manterá com PMDB? Como os velhos caciques da política nacional, os representantes do atraso, coabitarão com uma política estatizante? Sem dificuldades, a não ser que o PT se transforme. Se isso não acontecer, os velhos caciques simplesmente compartilharão dos cargos e das benesses do poder sem criar tensões que possam aprofundar novos ideais democráticos.

Por isso preocupam os novos-velhos rumos do PT. Logo depois da crise do "mensalão" o partido foi sacudido por um movimento de renovação. Quantos não declararam que o partido deveria ser refundado? Essas vozes, contudo, se calaram e os velhos burocratas, aliados a sindicalistas encastoados no aparelho do Estado, voltaram à sua direção. Quais são os compromissos desse grupo com a democracia ainda não o sabemos, mas podemos presumir que não são os mais duradouros.

Por sua vez, pouco adianta o PSDB se proclamar herdeiro da esquerda. Também ele ostenta seus caciques tradicionalistas e ainda não se definiu diante do lulismo. Se o presidente Lula conseguir impor uma campanha plebiscitária, de uma coisa estamos seguros: a questão da democracia não será posta em pauta. Pelo contrário, a tendência é acusar o adversário de ser contra o enriquecimento dos mais pobres e, na disputa, cada parte vai se apresentar como o melhor fazedor.

Note-se a última declaração de João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST, no Fórum Social Mundial. Para ele, José Serra reinstalaria o "neoliberalismo" do governo de FHC. Antes de qualquer acusação desse tipo, não seria importante, contudo, examinar o que foi o dito "neoliberalismo" desse governo e quais as possibilidades de uma política "neoliberal" pós-crise mundial? Ora, mesmo se o governo de FHC fosse basicamente liberal, todo o mundo sabe que José Serra lutou contra essa tendência da equipe econômica. Além do mais, quais são as contribuições do MST para o aprofundamento da democracia no País?

Tudo parece indicar que a campanha, que agora se inicia, será sangrenta e tenderá a ocultar os verdadeiros desafios que atualmente enfrentamos. A tendência é forçar cada candidato a se apresentar como o defensor do bolso do pobre, esvaziando o papel político que ele possa ter. Ora, o maior obstáculo a ser vencido para que tenhamos uma sociedade mais justa e igualitária não vem da péssima qualidade da democracia brasileira? Importa criar possibilidades para que as massas populares tenham voz, capacidade de decidir, controlar e higienizar os meandros do poder. Aprofundar a democracia, eis a questão. Somente assim a oposição entre esquerda e direita terá sentido.

Professor emérito de filosofia da USP e pesquisador do Cebrap. É autor, entre outros, de Trabalho e Reflexão e Origens da Dialética do Trabalho

Fortes cotado para a vice de Gabeira

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O empresário e vice-presidente estadual do PSDB do Rio, Márcio Fortes, será o nome indicado pelo partido para ser o vice na chapa do deputado federal Fernando Gabeira (PV- foto), pré-candidato ao governo fluminense.

Apesar de os tucanos ainda manterem a cautela diante do anúncio oficial, que só deverá ocorrer na próxima semana, integrantes da coligação PV/DEM/PPS/PSDB já admitem a dobradinha entre Fortes e Gabeira na disputa pela sucessão do governador Sergio Cabral (PMDB), que tentará a reeleição.

A intenção do PSDB é que Fortes tenha função estratégica nas eleições: coordenar e comandar a campanha de Serra no Rio.

Tucano alfineta Lula ao entregar estação do Metrô

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Ao som da orquestra Baccarelli, de tambores e sob chuva de papel picado, o governador de São Paulo e potencial candidato do PSDB à Presidência, José Serra, inaugurou ontem a estação Sacomã do Metrô.

Serra -cuja chegada foi demarcada pelo rufo de tambores de Okinawa- descreveu a estação como a mais moderna da América Latina.

Embora tenha enaltecido a "posição cooperativa" do presidente do BNDES, Luciano Coutinho, Serra registrou que São Paulo "é o único Estado em que o governo federal não investe no metrô".

"Não é reclamação, é uma constatação, até porque acho que não poderia ser de outra maneira", disse Serra, ao lado de Coutinho.

No discurso, o secretário José Luiz Portella agradeceu aos operários que o suportaram durante as noites que antecederam a inauguração.

A palanqueira

DEU EM O GLOBO

Dilma faz 46 eventos em 4 meses

O governo nega que seja campanha, mas, nos últimos quatro meses, a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, participou de 46 atos públicos país afora, nos quais não faltaram discursos, fotos com aliados e plateias saudando a sua candidatura à Presidência da República. Na volta do recesso, esta semana, a Justiça Eleitoral deverá julgar cinco representações da oposição, que vê nessa intensa movimentação da ministra uma campanha eleitoral antecipada.

Palanque acelerado

Em pré-campanha, Dilma participou de 46 atos públicos nos últimos quatro meses

Luiza Damé e Gerson Camarotti

BRASÍLIA - Para a oposição, é pura campanha eleitoral antecipada a maratona de eventos do presidente Lula e da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, pré-candidata do PT à Presidência, país afora. Para os governistas, tudo é agenda de governo ou, no máximo, debate político.

O fato é que, nos últimos quatro meses, Dilma participou de 46 atos públicos que serviram de palanque para apresentá-la como potencial candidata.

Uma média de 11 eventos por mês, com direito a discursos, fotos com aliados, plateia e contatos com a população.

A Justiça Eleitoral volta do recesso esta semana com o desafio de arbitrar o jogo da campanha.

O levantamento foi feito pelo GLOBO com base na agenda da ministra, disponível na página da Casa Civil na internet, em outubro, novembro e dezembro de 2009 e janeiro de 2010.

Estão incluídos inaugurações, visitas a obras, lançamentos de programas do governo federal e sanções de leis, nas quais a ministra teve papel central ou fez discursos.

As andanças de Dilma, a tiracolo do presidente ou não, já renderam nove representações da oposição no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), desde fevereiro de 2009: três foram rejeitadas, uma foi extinta e as demais não foram julgadas. Semana passada, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, cobrou ações mais rigorosas da Justiça Eleitoral para todos os níveis da disputa.

A cúpula do PT adotou um discurso preventivo contra os ataques da oposição, que tem classificado as ações de Dilma como campanha antecipada; a oficial só começa no dia 5 de julho. O presidente eleito do PT, José Eduardo Dutra, admite que o partido errou ao fazer esse tipo de cobrança quando foi oposição ao governo Fernando Henrique.

— Faz parte do jogo político recorrer ao Judiciário. Contribuímos muito para a judicialização da política.

Fizemos muita bobagem quando o PT era da oposição — reconhece, partindo já para o contra-ataque, lembrando ações do governo do tucano José Serra em São Paulo

PAC renderá mais 203 inaugurações

Dutra destaca uma campanha de televisão feita pelo governo de São Paulo sobre a Sabesp (empresa de saneamento básico do estado), veiculada em estados não atendidos por ela. O dirigente petista defende a agenda de Dilma ao lado de Lula: — Qualquer governo é formado por políticos e qualquer governo costuma fazer inaugurações. Se faz inaugurações, fala bem de si próprio.

O que a oposição queria é que Lula e Dilma ficassem dentro do Palácio do Planalto do primeiro ao último dia de governo. Isso não vai acontecer.

A estratégia foi definida por Lula há dois anos, quando ele avaliou que era preciso dar grande exposição à ministra e associá-la a fatos positivos do governo, para que ficasse conhecida e crescesse nas pesquisas. A agenda tão intensa afetou a saúde de Lula, mas ele já avisou que irá manter o ritmo de compromissos durante todo seu último ano de governo.

Foi a partir dessa estratégia que Lula batizou a ministra de “Mãe do PAC”, associou sua imagem à descoberta do pré-sal e de outras ações populares do governo como as da educação, o Luz Para Todos e o Minha Casa, Minha Vida.

Ao mesmo tempo, ela foi poupada de episódios negativos, como a crise financeira internacional, de 2008.

Lula conseguiu o que queria: elevar a popularidade de Dilma para um patamar acima de 20% e impor sua candidatura ao PT e aliados.

Mesmo quando Dilma virar candidata oficial e não puder mais participar de inaugurações do governo, Lula terá muitos palanques onde a lembrança da “Mãe do PAC” será inevitável: até o fim do ano, 203 obras do PAC podem ser inauguradas, parcial ou totalmente.

Além disso, pelo menos 178 escolas técnicas também poderão ser concluídas em pleno ano eleitoral, sendo que 51 já estão prontas.

Procurador-geral da República é contra revisão da Lei da Anistia

Márcio Falcão
da Folha Online

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, encaminhou ao STF (Supremo Tribunal Federal) um parecer se posicionando contrário a revisão da Lei da Anistia, promulgada em 1979. No texto assinado no final da tarde de sexta-feira, Gurgel defende a abertura e o livre acesso dos arquivos da ditadura militar.

Na avaliação do procurador-geral, a lei foi construída a partir de um longo debate nacional promovido na década de 70 e foi resultado do entendimento de diversos setores da sociedade civil. Segundo Gurgel, a revisão seria "romper com o compromisso feito naquele contexto histórico".

"A sociedade civil brasileira, para além de uma singela participação neste processo, articulou-se e marcou na história do país uma luta pela democracia e pela transição pacífica e harmônica, capaz de evitar maiores conflitos", afirma Gurgel.

O STF analisa uma ação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que contesta o primeiro artigo da lei que considera como conexos e igualmente perdoados os crimes "de qualquer natureza" relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Os ministros da Suprema Corte terão que decidir se cabe punição para quem praticou tortura durante o regime militar.

O procurador-geral afirma ainda que a OAB participou ativamente do processo de elaboração da lei que tinha o objetivo de viabilizar a transição entre o regime autoritário militar e o regime democrático atual.

"Com perfeita consciência do contexto histórico e de suas implicações, com espírito conciliatório e agindo em defesa aberta da anistia ampla, geral e irrestrita, é que a Ordem saiu às ruas, mobilizou forças políticas e sociais e pressionou o Congresso Nacional a aprovar a lei da anistia", afirmou.

Para Gurgel, também é importante o livre acesso aos arquivos da ditadura, impedindo que a visão restritiva da anistia crie embaraços ao pleno exercício do direito à verdade.

"Se esse Supremo Tribunal Federal reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia e, no mesmo compasso, afirmar a possibilidade de acesso aos documentos históricos como forma de exercício do direito fundamental à verdade, o Brasil certamente estará em condições de, atento às lições do passado, prosseguir na construção madura do futuro democrático", disse.

A revisão da Lei da Anistia não é consenso dentro do governo. O Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos defendem que os agentes do Estado sejam incluídos na Lei de Anistia porque a tortura seria um crime imprescritível. Para o Ministério da Defesa e a Advocacia Geral da União, no entanto, a anistia brasileira foi "ampla e irrestrita", o que perdoaria os crimes cometidos pelos agentes da repressão.

Líder comunitária confronta ministro em Fórum na Bahia

Ana Conceição - Agencia Estado

SALVADOR - No que foi a intervenção mais contundente nos debates feitos até agora no Fórum Social Temático da Bahia, a líder comunitária Valdizia Freitas, de Salvador, confrontou o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, ao lhe perguntar se ele já passou fome.

Após o debate em um painel sobre as ações do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), o Conselhão, no Hotel Pestana, um dos mais sofisticados de Salvador, Valdizia pediu a palavra e convidou o ministro e os membros da mesa a "conhecer onde moram os pobres". Depois, questionou: "Você já passou fome, ministro?" Sob o olhar um tanto perplexo dos palestrantes, ela protestou. "A gente está com fome e não acha apoio. Jovens são presos porque roubaram um pacote de bolacha. Eles vão achar emprego onde, meu Deus ?"

Contundente, ela reclamou dos políticos que a procuram em época de eleições e os culpou pela miséria em que vive sua comunidade. "Os culpados são vocês, os nossos representantes." E pediu ao ministro. "Eu gostaria, que quando o senhor voltar a Brasília, que fale para aqueles deputados que roubam, que colocam dinheiro na meia, que pensem no povo sofrido das favelas". "Eu quero ter direitos. Isso é que é cidadania." O ministro não se manifestou após a fala da líder comunitária.

Valdizia pertence à comunidade Filhos do Quilombo, de Salvador, e ajuda a administrar duas creches. Recentemente, ela ampliou suas atividades para fundar o Projeto Cultural e Desportivo Filhos do Quilombo, no qual pretende atender a 200 crianças da periferia da capital baiana. O apoio do governo, qualquer um, ao projeto é escasso. "É muita gente para pouco recurso", lamentou.

Rubens Ricupero:: Todo ano é Haiti

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

As cidades, berço da civilização, tornaram-se no Brasil o cenário da tragédia das periferias

A PASSIVIDADE com que nos resignamos a tragédias anunciadas e evitáveis tem a mesma regularidade e previsibilidade das chuvas de verão. Uma de minhas mais antigas lembranças é da nossa casa do Brás arruinada pelo Tamanduateí nas enchentes que já devastavam a zona 70 anos atrás.

As cidades, berço da civilização (a palavra vem de "civitas", cidade), tornaram-se no Brasil o cenário da tragédia das periferias. Nossa urbanização (acima de 80%) supera a de vários países europeus. Temos 115 cidades de mais de 100 mil habitantes e 18 acima de 1 milhão.

No entanto, o tema urbano está ausente do repetitivo debate sobre o país.

Nas três últimas décadas do século passado, 90 milhões de novos citadinos explodiram o sistema urbano brasileiro. Essa expansão não foi antecipada pelos governos com medidas que se adiantassem aos problemas. George Martine, um dos melhores estudiosos do fenômeno, observa que jamais houve prioridade para a oferta pública de terrenos e moradias aos mais pobres.

Abandonados e sem alternativa, esses são obrigados a morar nas áreas de risco: no município de São Paulo, quase 30% dos 2,8 milhões de baixa renda vivem em várzeas inundáveis ou encostas ameaçadas de deslizamentos, ante apenas 9% dos de alta renda.

Metade das favelas paulistas se situa em várzeas sujeitas a inundações crônicas. O problema tende a se agravar porque, enquanto os bairros ricos apresentam crescimento negativo, as únicas regiões que crescem nas metrópoles são as pobres (3,6%) e, dentro delas, as de risco (4,8%).

Comenta Martine que, apesar de sua constante expansão, as invasões e as ocupações ilegais têm sido tratadas como situações transitórias que se espera venham milagrosamente a desaparecer graças ao desenvolvimento. A ninguém ocorre que "é muito mais barato e efetivo preparar-se para o crescimento inevitável do que tentar corrigir o fato consumado". Cita exemplo de estudo sobre Curitiba, onde a remoção de 11 mil casas irregulares, menos de 3% do total, custaria o dobro da renda do imposto imobiliário do município.

Ao contrário do que se crê, os pobres não moram de graça. Em termos relativos, pagam mais pelos terrenos do que os abastados. Longe de serem espontâneas, as ocupações e os loteamentos clandestinos são objeto de lucrativa atividade de loteadores piratas.

A solução passa por duas medidas: 1ª) regulamentar e fiscalizar o mercado de terrenos das periferias a fim de proteger os pobres da espoliação; 2ª) mediante recursos de taxas sobre a valorização de imóveis, adquirir e dotar de infraestrutura glebas para vivendas populares ao longo de eixos de transporte rápido, como se fez no passado em Curitiba.

Não só faltam propostas de solução mas existe pouca consciência do problema. Nas eleições, nem se discutem os Planos Diretores das cidades e, de cada dez desses planos elaborados nos anos 70, sete foram engavetados. As tragédias que se repetem em São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, um pouco por toda a parte, deveriam nos obrigar a cobrar neste ano dos candidatos a presidente e governador ideias claras sobre como tencionam enfrentar os problemas oriundos de uma urbanização selvagem e distorcida. Mais que a herança do passado rural, o desafio e a promessa do Brasil futuro se encontram nas cidades.

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Ferreira Gullar::Casos e acasos

DEU NA FOLHA DE S. PAULO / Ilustrada

O arquiteto Sabino Barroso conta, em livro, pequenos e interessantes episódios do Rio

Sabino Barroso , meu amigo há 40 anos, companheiro de praia em frente à Farme de Amoedo, em Ipanema, de papos regados a chope no Luna; de sambar na Banda de Ipanema e dos desfiles de escola de samba muito antes da passarela na Marquês de Sapucaí -é arquiteto e colaborou com Oscar Niemeyer nos projetos de Brasília, lá no Planalto Central, quando a cidade ainda não existia. Sei, além do mais, que participou dos projetos das primeiras estações do metrô do Rio e que desfilava, tocando pandeiro, na bateria da Estação Primeira de Mangueira. Só não sabia que, além de tudo isso, era também escritor.

Por não sabê-lo, não acreditei que era ele o autor mencionado no convite que me chegou pela internet para uma noite de autógrafos. Ali estava escrito: "Arquiteto Sabino Machado Barroso". Pode não ser ele, pensei, por causa do "Machado", mas reconsiderei, já que era muita coincidência outro arquiteto chamado Sabino Barroso. E, se me mandou o convite, é porque me conhece.

Pelo sim, pelo não, decidi comparecer à Livraria Argumento e lá estava ele com a Nininha, sua companheira de tantos anos e também minha amiga, cercado de amigos quase todos meus conhecidos. Fiz muito bem em ter ido, porque pude abraçá-lo, conversar com a turma e, sobretudo, comprar o livro, que se chama "Acasos". Mal cheguei em casa, abri-o para dar uma espiada, mas não parei de ler: Sabino nos conta, nele, pequenos e interessantes episódios, acontecidos com ele ou de que teve notícia no seu círculo de amigos e parentes. São tanto mais interessantes porque, muitas vezes, envolvem personagens de uma parte do Rio, que ele há muitos anos frequenta, especialmente o ambiente da Estação Primeira de Mangueira, cuja sede e quadra de ensaios foram por ele projetadas.

Por isso, embora narre esse episódio na terceira pessoa, sei que era ele o arquiteto, ali referido, que, todas as tardes, deixava o escritório para ir vistoriar as obras, em companhia de Cartola, o famoso autor de "As Rosas Não Falam". E não é que, certa tarde, às vésperas do Carnaval, quando foi à escola buscar sua fantasia, deparou-se com uma viatura policial que o fez deter-se? Queriam saber o que fazia ali aquele cara de paletó e gravata. Teve que entrar no carro e ali o interrogaram. O que os convenceu mesmo foi quando ele disse, um por um, os nomes dos componentes da bateria da Mangueira. Mas, quando ao chegar à escola para receber a fantasia, soube que o chapéu verde, de plumas cor de rosa, que a completava, teria que ir apanhar no Pindura Saia, ali no morro mesmo. Foi e desta vez viu-se diante do revólver empunhado por um pivete.

Safou-se graças à ajuda de conhecidos que o fizeram pular para dentro de um boteco.

Num mesmo dia, passara por marginal para a polícia e, por policial, para os marginais.

Outra história que ele conta, relacionada com a Mangueira, é a do compositor Geraldo das Neves, também conhecido como Brechó, apelido que lhe puseram porque diziam que se vestia com roupas usadas compradas em um brechó. Geraldo era um excelente compositor, que acertava mais nos "sambas de quadra" do que nos sambas-enredo. Por isso mesmo, seu sonho era ter um samba-enredo seu, escolhido pela escola e cantado na avenida.

Quando isso aconteceu, entrou em delírio, convencido de que a glória havia chegado e, com ela, a riqueza: compraria uma casa na praia, um carro de luxo, arranjaria uma mulher linda e faria viagens à Europa. Ficou tudo em sonhos, já que o prêmio nunca lhe foi pago. De qualquer modo, algum dinheiro ganhou com as gravações do samba, permitindo-lhe comprar roupas novas e uma dentadura postiça, que passou a exibir nos ensaios da escola, rindo à toa. Dizem que essa dentadura teria comprado de um dentista, que as produzia em série e vendia como os camelôs vendem "óculos de grau". O cara experimenta e, se servir, compra. Dentadura de brechó!

Conta Sabino que, certa noite, durante um ensaio, foi preso. Estava devendo à Justiça, que o condenara por agressão. Foi recolhido à penitenciária, onde quase morre durante um levante de presos. Conseguiu ser transferido para um hospital-presídio. Solto, passou maus momentos, tendo que dormir na rua, até que seu samba-enredo foi escolhido pelo júri da escola. Mas, numa noite em que não compareceu ao ensaio, correu a notícia de que havia morrido na emergência de um hospital, vítima de uns marginais, que jogaram do alto de uma escadaria em Santa Teresa.

Seu corpo foi velado na quadra da escola e enterrado à batida ritmada do "surdo". Conheci Geraldo das Neves e cheguei a saber de cor um de seus sambas.

Gustavo Krause::Nabuco, o Grande

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Paixões e contradições são a fita métrica dos grandes homens. Elas não faltaram a Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910). Suas exéquias, curiosamente, fornecem elementos para leitura da vida fecunda do admirável personagem.

Em Washington, no dia 17 de janeiro de 1910, morreu o Embaixador e, segundo a biógrafa Ângela Alonso, “Seu caixão desfilou numa carreta de artilharia”, com honras de chefe de Estado, concedida, pela primeira vez, a um estrangeiro.

Na ex-capital do Império, o já demolido Palácio Monroe abrigou a urna funerária. A cidade do Rio de Janeiro parou para reverenciar o intelectual monarquista que marcou profundamente a vida da corte.

No Recife, lenda e história do maior dos abolicionistas repousam no cemitério de Santo Amaro, levado pelos “marinheiros descendentes dos escravos que ajudara a libertar (...) Os braços abolicionistas o devolveram ao seu palco principal, o Teatro Santa Isabel, onde fora nada menos que um astro”.

Compreender a personalidade vária, complexa, a estética e as fascinações políticas de Nabuco exige muito esforço por conta do que revela Roberto Cavalcanti de Albuquerque, um dos seus maiores estudiosos: “Transborda, contudo, este construto bipolar (razão e imaginação, razão e sentimento)”, porque “nela a ‘impressão aristocrática’ (inglesa), a ‘impressão literária’ (francesa), a ‘impressão artística’ (italiana), a "impressão da civilização material" (estadunidense) como que interferem no evoluir do seu pensamento político, impedindo que o liberal que ele sempre foi se completasse no republicano”.

Felizmente, Nabuco esteve longe de ser uma unanimidade. Quincas, o Belo, com a distinta elegância distribuída pelo porte incomum, na época, de quase 1,90m, versátil e progressista, não escapou do vapor maligno do atraso e da inveja. Com autoridade de respeitado intelectual e denso historiador, José Almino de Alencar registra: “O personagem Nabuco contribuía para a fúria do ressentimento provinciano”.

Estou convencido de que o melhor caminho para conhecer Nabuco é o que ele traçou na magistral obra autobiográfica Minha Formação, corajosa e fiel exposição de grandezas e fraquezas, angústias existenciais e inquietações intelectuais de um espírito elevado cujo ponto altíssimo está escrito no capítulo Massangana: “A verdade é que sinto cada dia mais forte o arrocho do berço: cada vez sou mais servo da gleba brasileira por essa lei singular que prende o homem à pátria com tanto mais força quanto mais infeliz ela é e quanto maiores os riscos e incertezas que ele mesmo corre”.

Em Nabuco, o coração, mesmo preso à terra, balançava entre a pátria e a civilização do outro lado do oceano, telúrico e cosmopolita que era.

Na linha das apaixonadas contradições, a polêmica expressão “saudade do escravo” do abolicionista exprimiu, antes de tudo, a alma do artista bem como “a fusão humana e social com negro”, espécime que se considerava, absorvida “no leite preto que me amamentou”.

De outra parte, não surpreendem os reveses eleitorais que amargou. Eis o que Nabuco pensava sobre política: “Em minha vida, vivi muito da política com P grande, isto é, da política que é história (...) Mas para a política propriamente dita que é a local, a do País, a dos partidos, tenho esta dupla incapacidade”.

De autoria do senador Marco Maciel, nabuquiano confesso, o projeto 3642/08 foi sancionado pelo vice-presidente José de Alencar, no exercício da presidência, e transformado na Lei 11.946 de 15/06/09 que instituiu 2010 como o “Ano Nacional Joaquim Nabuco”.

Para mim, Nabuco foi a personalidade brasileira mais importante do século XIX e para Gilberto Freyre “o grande brasileiro do seu tempo e de todos os tempos”.

Por fim uma sugestão: que tal produzir um filme tendo como enredo a vida de Joaquim Nabuco? Estou certo de que os patrocinadores não faltarão com generosos recursos em justa homenagem a quem já foi julgado pela história e como incentivo à elevação do padrão cultural do povo brasileiro.

» Gustavo Krause é ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente