domingo, 14 de novembro de 2010

Os bons exemplos:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

Um levantamento inédito feito pela Macroplan, empresa brasileira de consultoria, em parceria com pesquisadores do Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália), mostra o Brasil na 55 aposição no ranking mundial dos governos eletrônicos, junto com Índia e China.

Publicado pelo Centro Global de Tecnologia da Informação e Comunicação em Parlamentos, das Nações Unidas, o estudo identifica que o Brasil ainda tem um longo caminho pela frente na construção da democracia eletrônica, e critica as práticas das diversas instâncias governamentais, desde a federal às municipais.

Um projeto de lei de acesso a informação pública já foi aprovado pela Câmara e está parado no Senado, devendo ser apreciado somente pelo futuro plenário que teve 2/3 renovados nas eleições de outubro.

A moderna democracia digital permite que a sociedade acompanhe passo a passo a atuação dos funcionários públicos, e previsivelmente encontra resistências entre deputados e senadores.

A legislação de acesso à informação, ferramenta indispensável para o exercício de uma democracia moderna, hoje é um assunto que mobiliza todos os governos, como já registrei algumas vezes aqui na coluna, com comentários do professor brasileiro Rosental Calmon Alves, da Universidade de Austin, no Texas, especialista no assunto.

Há 20 anos, era assunto apenas dos Estados Unidos e dos países escandinavos. Os países europeus demoraram muito, mas em, alguns casos, os países pós-comunistas da Europa do Leste foram mais rápidos do que os da Europa Ocidental porque estavam instalando uma democracia nova e esses conceitos eram necessários.

O projeto de lei brasileiro, que a presidente eleita Dilma Rousseff enviou ao Congresso quando era Chefe da Casa Civil, previa que a Controladoria Geral da União, e não uma agência reguladora, assuma o controle do processo de acesso às informações.

Em todos os países, o conflito instala-se quando um cidadão quer saber quanto um ministro gastou na viagem, e em que ele gastou, ou como os parlamentares usaram suas verbas, e esses casos não podem ser decididos por um representante do governo, mas sim da sociedade, e por isso as leis mais modernas preveem uma agência independente, como o México, que é o país que tem a melhor legislação.

Embora a lei ainda não exista, e por isso mesmo o país esteja tão atrasado nesse processo, o estudo da Macroplan identificou, na categoria interatividade e participação, o site da Câmara dos Deputados do Brasil (e-democracia) como um dos destaque, ao lado do inglês No. 10 e-petitions e TID +,da Estônia.

O site brasileiro é um espaço virtual criado para estimular cidadãos a contribuir para o processo legislativo federal por meio do compartilhamento de ideias e experiências.

Entre outras coisas, o e-democracia permite aos usuários apresentar normas legislativas, construídas de forma colaborativa para subsidiar o trabalho dos deputados na elaboração de leis.

Mas o estudo mostra também que existem, no entanto, inúmeras experiências nas quais o nosso executivo e legislativos podem se espelhar para avançarmos na construção de um Estado aberto.

As melhores práticas na categoria transparência da ação parlamentar foram desenvolvidas nos Estados Unidos Open Congress, Capitol Words for you e Open legislation.

Nesse último, destaca-se o sistema de busca legislativa do Senado do estado de Nova Iorque, que tem um design das tradicionais ferramentas de busca da internet, como o Google, e permite ao usuário realizar buscas facilmente a partir de temas, autores de proposições, votos recentes e comissões.

Uma vez acessada a legislação, o usuário pode comentar sobre o conteúdo. O estudo também aponta como destaque, no Reino Unido, os sites They work for us e BBC Democracy Live.

As aplicações da web 2.0 no setor governamental têm sido o mote recorrente nos recentes congressos e noticiários de inovação em governo.

Um dos primeiros atos do presidente Barack Obama quando assumiu a Casa Branca foi publicar um memorando chamado “Transparency and Open Government”, que afirmava o comprometimento da sua administração em criar um nível sem precedentes de transparência no governo, garantir a confiança pública e estabelecer um sistema de participação e colaboração.

O site data.gov lançado pela administração federal dos EUA resulta dessa política. No ar desde 2009, é um repositório de dados oficiais, e permite o desenvolvimento de aplicativos por terceiros.

Atualmente, existem mais de 600 aplicativos de utilidade pública desenvolvidos por programadores externos.

No Poder Legislativo, um dos mais célebres exemplos foi localizado pelo estudo da Macroplan, na Assembleia Legislativa da região de Catalunha (Espanha), com o a seção Parlamento 2.0 no site que agrega links do legislativo em diversos canais de interação como, por exemplo, YouTube, Facebook e Twitter.

Na mesma seção, são oferecidos links para os blogues dos parlamentares, serviços de subscrição personalizada e uma seção de perguntas a serem direcionadas ao presidente do parlamento, com respostas publicadas on-line.

O livre acesso à informação pública pressupõe que os sites tenham informações relativas às despesas da instituição, como salários de pessoal, gastos ou processos de licitação que devem ser apresentados de maneira mais detalhada e acessível possível.

Finalmente, investir em ferramentas do tipo 2.0, pois estes se tornaram os canais de participação, trazendo mais abertura, transparência e democracia para a administração pública, promovendo um diálogo público colaborativo.

No ambiente legislativo, esse projeto irá demandar do deputado ou do senador que esteja apto a responder aos questionamentos em tempo hábil e de maneira apropriada, que esteja preparado para se relacionar de modo colaborativo com os cidadãos, não apenas quando do processo eleitoral, mas no desenvolvimento das atividades parlamentares.

Caso contrário, resultados diametralmente opostos àqueles que motivam a utilização de ferramentas 2.0 certamente vão aparecer, distanciando ainda mais os cidadãos da instituição

Insegurança legislativa :: Dora Kramer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A combinação de uma situação inusitada no Supremo Tribunal Federal com uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral e uma alteração na legislação eleitoral feita pelo Congresso em dezembro de 2009 criará uma circunstância inédita para Câmara dos Deputados que toma posse em fevereiro de 2011.

Pela primeira vez, uma legislatura será iniciada sem que se saiba realmente quem são os deputados eleitos nem qual o tamanho exato da representação de cada partido. Tudo por conta da Lei da Ficha Limpa, que serviu para a impugnação de várias candidaturas, mas não previu as consequências.

"Ninguém pensou nisso. O Congresso saiu legislando de qualquer maneira, em cima dos joelhos e acabou criando um problema para o Judiciário", diz o ministro do STF Marco Aurélio Mello, que considera "inconcebível" o fato de a Câmara e as Assembleias Legislativas tomarem posse sem ter as respectivas composições definidas. "Nunca se viu nada igual, é a insegurança jurídica total."

O TSE só saberá na semana que vem quantos são os eleitos em estado de indefinição, mas Marco Aurélio considera impossível que todos os casos sejam resolvidos a tempo, porque os impugnados ainda podem recorrer ao STF. Além disso, a Justiça entra em recesso em 20 de dezembro e só retorna das férias coletivas na véspera da posse dos deputados, marcada para 2 de fevereiro. "Não podemos sair batendo carimbo, precisamos julgar caso a caso."

Enquanto não se souber exatamente quantos deputados tiveram suas candidaturas definitivamente impugnadas não será possível definir a exata composição da Câmara nem das Assembleias Legislativas. Isso também afeta a escolha das Mesas Diretoras, compostas pelo critério de proporcionalidade entre as bancadas.

Os deputados federais e estaduais eleitos são definidos pelo número de votos válidos recebidos, divididos pela quantidade de cadeiras existentes. Esse resultado dividido depois pelo número de votos válidos dados a cada legenda define o tamanho das bancadas.

Há três problemas a serem solucionados. Um deles é a nomeação pelo presidente da República de um novo ministro do Supremo, a fim de resolver o impasse provocado pelo julgamento do caso Jader Barbalho, de modo a não se repetir o empate.

Outro problema é a resolução do TSE determinando que os deputados com a candidatura em suspenso não sejam diplomados em 17 de dezembro. Na opinião de Marco Aurélio, o tribunal "foi adiante da lei" ao baixar essa resolução. Ou seja, extrapolou.

A questão que parece ainda mais complicada diz respeito a uma alteração na Lei Eleitoral feita no fim de 2009 pelo Congresso, dizendo que os votos anulados em virtude da inelegibilidade do candidato não irão para os partidos.

Isso altera o que diz o Código Eleitoral de 1983, que computa para as legendas os votos dos candidatos. Haveria, então, um conflito de normas a respeito do qual o TSE só pode se pronunciar se algum partido ou tribunal regional fizer uma consulta.

Se não houver contestação, vale a nova regra. Quer dizer, partidos que tiverem "puxadores de voto" impugnados perderão representantes e terão suas bancadas reduzidas. Exemplos: se Paulo Maluf for recusado em definitivo, o PP perde os 497.203 votos dados a ele e se Anthony Garotinho perder a vaga, o PR fica sem os 694.862 votos.

Ao mesmo tempo, outros deputados inicialmente não eleitos assumirão as vagas.

Confusão que na expectativa do ministro Marco Aurélio Mello só se resolve em meados de 2011, fazendo com que a Câmara e as Assembleias que abrirão os trabalhos em fevereiro não sejam necessariamente as mesmas do restante da legislatura de quatro anos.

Jogo do poder. O PMDB decidiu que Michel Temer não deve renunciar à presidência do partido e sim acumular o posto com a Vice-Presidência. Não há impedimento legal e uma razão pragmática se impõe: como vice Temer fortalece o partido e como presidente do partido se fortalece como vice.

Realinhamento :: Rubens Ricupero

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Aos poucos, e após ilusões dos primeiros tempos,0000 a diplomacia de Obama volta ao realismo de poder

O apoio de Obama a um lugar permanente para a Índia no Conselho de Segurança da ONU consagra a posição indiana de principal aliado estratégico dos EUA no sul da Ásia. O presidente protesta não ter a intenção de conter os chineses.

Contudo, a Índia fecha ao sul, objetivamente, muralha de alianças em torno da China, que parte ao norte do Japão e da Coreia do Sul. O arco passa por Cingapura, Indonésia, Vietnã, Malásia e todos os que olham para o poder naval dos EUA como proteção contra o poderio chinês, tentado a se afirmar nas ilhas disputadas por Pequim com os vizinhos.

Aos poucos, a diplomacia de Obama volta a uma posição de realismo de poder, após ilusões bem-intencionadas dos primeiros tempos: a mão estendida ao Irã, o anúncio do fechamento de Guantánamo, a continuação da guerra no Afeganistão.

Uma delas tinha sido a proposta da "parceria para plasmar o século 21", na qual a China teria de ajudar a carregar o fardo global dos EUA. A falta de colaboração chinesa nas questões centrais -aquecimento global, manipulação da moeda, superavit comercial- levou os EUA a reagir na mesma moeda: venda de armas a Taiwan, recebimento do dalai-lama, oferta de mediação sobre as ilhas em disputa, agora a conclusão da aliança com a Índia.

Os resultados comerciais da visita a Nova Déli e o apoio indiano às emissões monetárias para estimular a economia dos EUA aportam raro sucesso diplomático a um presidente com mãos praticamente vazias em política externa. A ponto de que seus adversários já o consideram como foi Jimmy Carter entre Nixon e Reagan: um fugaz interlúdio de fraqueza entre presidentes dispostos a utilizar plenamente a superioridade militar americana.

Pode ser que a concentração dos EUA no combate ao terrorismo não passe de outro interlúdio fugaz, agora estratégico, entre adversários de longo prazo, a União Soviética no passado, a China no futuro.

O alinhamento da Índia se completa na véspera da comemoração dos 50 anos da reunião inaugural do Movimento Não Alinhado de Tito, Nasser e Nehru. No mundo dominado por Moscou e Washington, a maneira de criar um espaço próprio era, para os fundadores do movimento, a recusa do alinhamento.

Desaparecido o bipolarismo, esses países se realinharam de acordo com seus interesses, o Egito como principal intermediário no Oriente Médio, os sucessores da Iugoslávia aderindo à Europa e à Otan, a Índia como potência regional de reequilíbrio na zona de encontro de China, Paquistão, Afeganistão e Irã.

Os interesses que ditam a recomposição do quadro estratégico mundial parecem escapar ao Brasil, surpreendido com a falta de apoio da China, Rússia e Índia no acordo sobre o urânio do Irã. Se quiser evitar desgastes gratuitos, o país precisa entender que esses países agem por realismo estratégico nacional.

A primavera dos radicais na América Latina :: Jorge Castañeda

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Morte de Kirchner, eleição de Dilma, derrota de Chávez e novos governos centristas no Chile e Colômbia mudaram paisagem latino-americana e causarão problemas a Obama

Obviamente, as eleições americanas de meio de mandato roubaram a atenção da maioria das pessoas nas semanas que passaram, mas vários acontecimentos importantes na America Latina podem ter consequências quase do mesmo alcance, ao menos para a própria região.

Primeiro, sem nenhum alerta visível, o ex-presidente da Argentina Néstor Kirchner, que poderia voltar ao cargo, morreu de ataque cardíaco, tumultuando a situação política de seu país. Ele estava programado para entrar no ringue na disputa presidencial em dupla com sua mulher, a atual presidente Cristina, conforme haviam organizado para 2011: em vez de submetê-la a uma batalha eleitoral desgastante pela reeleição, a ideia era ele concorrer (e vencer, é claro) graças a seu absoluto controle da velha máquina peronista - incluindo sindicatos, governadores, fundos de pensão, bancos estatais, etc.

Agora, ela mesma terá de concorrer. Sua popularidade subiu depois de ter atingindo níveis terrivelmente baixos um ano atrás. Haverá um voto de simpatia para uma governante enviuvada, mas há ameaças no horizonte também. Estas se devem principalmente às investigações de acusações de corrupção contra a dupla presidencial e isso agora será um instrumento tentador não só para a oposição aos Kirchners, mas também para fogo amigo: peronistas rivais de Cristina, que poderiam não ter ousado atacar seu marido, mas não temem a viúva.

Segundo ponto, há muitos na Argentina e no exterior que sinceramente acreditam que, embora Cristina tenha construído uma carreira política própria, o poder conceitual e político provinha de seu marido, e pensam que ela era, na melhor hipótese, uma porta-voz esporadicamente eloquente. Esses observadores acreditam, com algum fundamento, que com Kirchner ausente, ela encontrará grande dificuldade e a era do casal chegará ao fim em breve.

Esse cenário não é implausível e a simpatia pelo morto não dura para sempre (exceto no caso do próprio Juan Domingo Perón). Isso alteraria o equilíbrio geopolítico na América Latina já que, para todos os fins práticos, os Kirchners vinham sendo apoiadores vigorosos, embora talvez não discípulos, da Aliança Bolivariana para a América Latina (Alba), que atualmente liga o líder cubano Fidel Castro aos presidentes Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Daniel Ortega (Nicarágua) e Rafael Correa (Equador) numa aliança de esquerda.

Fator Dilma. A Alba pode substituir sua perda argentina por um ganho brasileiro, Dilma Rousseff, que assumirá a presidência do Brasil em breve, foi eleita na esteira do sucesso de Luiz Inácio Lula da Silva e é amplamente vista como sua herdeira política. Sua vitória carrega um enorme impacto simbólico na condição de primeira mulher presidente do Brasil. Mas ela pode não se revelar tão moderada e moderna quanto Lula.

Ela vem de uma linhagem classicamente populista da política brasileira, uma seguidora de Leonel Brizola, o carismático governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que foi um político muito mais estatista e nacionalista do que um líder sindical de esquerda como Lula. Dilma tampouco tem o mesmo controle que Lula sobre seu partido, o Partido dos Trabalhadores. Ela precisará que seu mentor cuide da legenda ou cederá às exigências de sua base partidária - o que Lula nunca fez.

A despeito de seu pendor para o exibicionismo, Lula é um pragmático. Será realmente surpreendente se Dilma não se mostrar mais ideológica, nacionalista e, talvez, populista em política econômica e externa. Isso também alterará o equilíbrio na América Latina.

Finalmente, após a derrota eleitoral legislativa de Chávez, em setembro, ele lançou novas atividades repressivas contra sua oposição.

Ele nacionalizou (sem indenizar) uma fábrica de vidro de propriedade americana que fornece garrafas para a cervejaria Polar. A companhia Polar, por sua vez, foi responsabilizada por Chávez de fornecer boa parte do financiamento e apoio à oposição.

Valentões, supostamente associados ao governo, sequestraram e mataram três líderes da associação comercial venezuelana Fedecámaras, há duas semanas, e - como se temia - Chávez caiu em cima dos principais vitoriosos nas eleições de setembro. Maria Corina Machado, fundadora do grupo de vigilância eleitoral Súmate, recebeu mais votos do que qualquer outro candidato ao Congresso.

A empresa de seus pais, antes uma próspera companhia siderúrgica venezuelana, a segunda maior do país, foi expropriada na semana retrasada por Chávez, de novo sem indenização. Restam poucas dúvidas de que essa foi, ao menos em parte, uma forma de represália.

Então, em que pé esses acontecimentos momentosos deixam a América Latina? Dado o enfraquecimento do presidente Barack Obama, que estava especialmente engajado na América Latina para além de ocasiões formais e simbolismos, essas tendências poderão se contrapor ao que vimos até o ano passado.

Vitórias eleitorais de políticos pragmáticos, centristas, como os presidentes Sebastián Piñera, do Chile, e Juan Manuel Santos, da Colômbia, podem ter sido apenas um breve interlúdio antes de um retorno do populismo radical à região. Isso promete ainda mais problemas para Obama. / Tradução de Celso Paciornik

É ex-Chanceler do México, professor da Universidade de Nova York e bolsista na New America Foundation

Recôndita (des)harmonia? :: Pedro S. Malan

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

"Pode-se argumentar, como muitos fazem, que nossa democracia não precisa de República, que aos trancos e barrancos vamos construindo a inclusão política e social, e que preocupação com honestidade política, bom governo, valores cívicos e instituições respeitadas é moralismo pequeno-burguês." Mas, como o autor da citação (José Murilo de Carvalho), espero que haja um número crescente de brasileiros que discorde dessa posição. Os eleitores dirão.

As linhas acima concluíram meu artigo de janeiro de 2010 neste espaço. Bem, dos 135,8 milhões de potenciais eleitores brasileiros, 55,7 milhões disseram Dilma, 43,7 milhões disseram Serra e 36,4 milhões ou se abstiveram de votar, ou anularam seu voto, ou votaram em branco. Maioria é maioria e teremos, pelos próximos quatro anos, uma presidente de todos, e não apenas dos 41% (do total de potenciais eleitores) que a sufragaram explicitamente nas urnas.

O processo eleitoral e seu resultado mostraram que existe sim uma "opinião pública" no Brasil. Que esta não é "esquálida", como Hugo Chávez denomina a oposição que se lhe faz. "Eu não sou um indivíduo, eu sou o povo", diz ele. Por aqui tivemos nosso presidente afirmando, pouco antes do primeiro turno: "A opinião pública somos nós."

Porém, dois domingos atrás, nas suas primeiras declarações - lidas - já como presidente eleita, Dilma Rousseff deu a entender que estaria preparada para deixar de lado os discursos de palanque, e a excessiva dependência, tanto de Lula quanto do sistema de "marquetagem" política, para efetivamente se dedicar a governar o País em nome de todos - em princípio, até 2014.

Afinal, como disse o presidente do PT em entrevista ao jornal O Globo no domingo passado: "(No PT) não existe esse negócio de definir projeto de poder por número de anos. (...) Normalmente, são vertentes autoritárias que trabalham com projetos de poder de longo prazo. O nazismo é que trabalhava com um projeto de décadas."

Mas o presidente do PT sabe que seu partido usa o discurso da "comparação de dois projetos para o País". Um seria o projeto de um "novo modelo", que reúne desejos que ou não haviam ocorrido antes a nenhum outro partido político ou que ninguém, nunca antes, havia sido capaz de implementar com tanta sabedoria, engenho e arte.

Existe um problema no debate, a meu ver, simplório e equivocado, desse discurso maniqueísta dos dois projetos: o bom e o mau. Problema que é, em boa parte, das oposições, como muito bem situado no contexto atual por José Alvaro Moisés em seu artigo de domingo passado no caderno Aliás deste jornal (Qual Oposição?).

Mas existe também um problema não resolvido, interno ao lulo-petismo e bem expresso, desde o início, pelo ex-ministro José Dirceu, o ex-capitão do time, o grande operador político do governo (enquanto lá esteve) e dos bastidores do PT até o presente. Vale lembrar que a resposta do PT - em nota oficial de março de 2004 - ao escândalo Waldomiro Diniz (hoje prescrito e arquivado) foi a de propor... mudanças na política econômica do governo Lula!

Mais de 20 meses depois, em entrevista concedida no dia 27 de novembro de 2005, Dirceu, além de dizer que Lula é "personagem difícil", e "estar indo devagar na implantação de um governo de esquerda", reconheceu que "deveria ter saído do governo quando Lula optou, perto do final de 2004, por seguir o caminho defendido por Palocci". Não o fez porque ainda esperava mudanças. Afinal, como notou (em 23 de novembro de 2004) Teresa Cruvinel, sempre muito bem informada sobre esses assuntos, "o PT tem dois objetivos agora: reconquistar a coordenação política do governo para o ministro José Dirceu e mudar os rumos da política econômica".

Há muita gente no PT que acha que esses rumos vêm mudando desde que Antônio Palocci e Paulo Bernardo tiveram sua proposta - de contenção da velocidade de crescimento das despesas primárias do governo - derrotada ao final de 2005. É público e notório quem disparou o tiro de misericórdia na proposta. Como notou Merval Pereira, "nem nos tempos do todo-poderoso José Dirceu a Casa Civil tinha a audácia de ir tão longe no enfrentamento da política econômica". O silêncio de Lula à época foi revelador do que viria.

A presidente eleita sabe que tem uma tarefa hercúlea pela frente a partir de agora. A presidente eleita sabe que as lideranças políticas de um governo, por meio de suas posturas, suas ações e seus critérios na escolha de suas equipes, emitem poderosos sinais sobre os limites do que constituem comportamentos e inaceitáveis no trato da coisa pública. A presidente eleita sabe, espero eu, ainda que - como o presidente atual - tenha dificuldade política em reconhecê-lo de público, que o Brasil de hoje não começou a ser construído em 2003.

A presidente eleita sabe que a escolha do núcleo duro de seu governo e de seus 37 ministros será um momento definidor das expectativas quanto aos próximos quatro anos. Aguarda-se, com especial interesse, o anúncio da composição completa da equipe econômica da presidente eleita - a quem desejo boa sorte.

O grande risco que corremos é o do excesso de complacência e voluntarismo. O Brasil - e seu futuro governo - tem desafios incríveis à frente. Nas questões de infraestrutura (física e institucional). No nível (excessivo), na composição (distorcida) e na eficiência (precária) tanto do gasto público quanto da arrecadação tributária. Na deficiente qualidade de nossos níveis educacionais, quando comparados aos níveis - muitíssimo melhores - de países que conosco competem. Na necessidade de lidar com questões de longo prazo nas áreas previdenciária, trabalhista e tributária - e pensando no longo prazo.

Em suma, tarefas que exigem mais ação consistente e menos discursos de palanque - que, esperemos, sejam muito menos frequentes a partir de agora.

Economista, foi Ministro da Fazenda no governo FHC

Ah, se não fosse a realidade! :: Ferreira Gullar

DEU NA FOLHA DE S. PAULO/ Ilustrada

Ninguém imagina que Lula deixe dona Marisa em São Bernardo para instalar-se na alcova de Dilma

Dilma está eleita e, a partir de 1º de janeiro de 2011, será a presidente do Brasil.

Nunca imaginou que isso pudesse acontecer, nunca sonhou com isso, nunca o desejou e, não obstante, terá em breve, nas mãos, o mais alto posto político do país. Um milagre? Um passe de mágica? Se pensamos assim, o mago é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Inicialmente, apesar de sua indiscutível popularidade, dava a impressão que superestimara seu prestígio, não iria elegê-la.

De fato, como acreditar que uma mulher que nunca se candidatara a nada, destituída de carisma e até mesmo de simpatia, fosse capaz de derrotar um candidato como José Serra, dono de uma folha de serviços invejável, tanto como parlamentar quanto como ministro de Estado, prefeito e governador?

Não obstante, aconteceu. Para espanto meu e de muita gente mais, 56% dos eleitores preferiram votar em alguém que eles mal conhecem do que eleger um político conhecido de todos, contra o qual não pesa qualquer suspeita ou acusação desabonadora. E por que o fizeram? Porque o presidente Lula mandou.

E não foi só o pessoal mal informado que recebe Bolsa Família, não. Empresários, banqueiros e intelectuais famosos também apoiaram sua candidatura, porque Lula mandou. Mas não estou aqui para chorar sobre o leite derramado e, sim, para tentar ver o que pode acontecer em consequência disso.

Advirto o leitor de que não parto do princípio de que vai dar tudo errado, que o governo de Dilma Rousseff está condenado ao fracasso. Nada disso. Como muita gente, diante desse fato inusitado, nunca visto na história brasileira, pergunto: e agora?

Sempre se faz tal pergunta quando um presidente da República, seja ele quem for, assume o mandato. Ocorre que, pela primeira vez, pouco se sabe da pessoa eleita e, mais que isso, eleita porque alguém mandou. A pergunta que está na cabeça de todos -dos que votaram contra e dos que votaram a favor- é: quem vai governar, ela ou Lula?

É uma questão razoável, não só porque ela nunca governou nem mesmo um município, como porque Lula, sabendo disso, deve temer pelo que venha a fazer. E temerá, com razão, já que o fracasso dela, como governante, será debitado inevitavelmente na conta dele, responsável pela mágica que a pôs na Presidência da República.

Estará, assim, criada uma situação também inédita na história do poder central do Brasil: como Dilma não é responsável por ter sido eleita -e ocupar o lugar que só não é do Lula porque a lei não permite uma segunda reeleição-, talvez não possa fazer no governo senão o que for aprovado por ele.

Isso lembra, até certo ponto, a situação vivida por Cristina Kirchner, eleita presidente da Argentina graças à popularidade do marido, Néstor Kirchner, recentemente falecido. Enquanto vivo, era ele quem governava, sem maiores vexames para ela, uma vez que, casados, podiam até na cama discutir e acertar as medidas governamentais que ela tomaria no dia seguinte.

Já o caso de Lula e Dilma será mais complicado, pois ninguém imagina que ele deixe dona Marisa dormindo em São Bernardo para instalar-se na alcova da presidente Dilma, no palácio da Alvorada.

Nem se acredita, tampouco, que optem por um relacionamento clandestino para, em encontros secretos, disfarçados -ele de peruca loura e ela vestida de homem, bigode e barbas-, discutirem a volta da CPMF ou o que fazer com o MST.

Fora daí, o jeito seria divorciar-se e casar com Dilma, mas tendo o cuidado de deixar claro que se tratou de uma paixão repentina, fulminante, e não de um romance secreto que só então veio à tona. Tal solução tem o perigo de manchar a reputação dos dois, por oferecer aos maldosos a chance de sussurrar que a candidatura de Dilma teria origens sexuais. É risco demais, não dá.

A alternativa, então, talvez seja Dilma nomeá-lo chefe da Casa Civil, lugar antes ocupado por ela. Minha dúvida é se Lula, que se acredita o maior estadista brasileiro de todos os tempos, aceitaria função tão subalterna, especialmente depois dos escândalos que envolveram Erenice Guerra, a substituta de Dilma no cargo.

É problema dele. Apenas constato que, se é fácil, com truques mágicos, fazer acontecer o impossível, difícil é resolver os problemas reais.

Social-democracia no horizonte óbvio:: Wilson Figueiredo

DEU NO JORNAL DO BRASIL (online)

A categoria política do tipo considerado social-democrata, que não se deu conta do papel histórico que lhe coube, acaba de ser localizado na América Latina como quem não quer nada, por ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Indícios e provas estão reunidos no seu livro Xadrez internacional e social-democracia e na entrevista concedida ao jornal O Globo (de 1 de agosto), quando já estava nas ruas a campanha eleitoral enrolada em questões pessoais dos candidatos. Ninguém ainda, neste e nos países vizinhos, havia chamado a atenção para os traços da social democracia disfarçados em semelhanças e diferenças universais.

O presidente Lula não presta atenção nem desconfia. Não é dado a pequenas diferenças. Pelas características que a teoria aponta e a prática desconhece, a social-democracia ainda se apresenta em estado bruto nos países latino americanos. Fernando Henrique soltou o verbo sem brigar com os ventos, mas não transpôs o atoleiro de acusações pessoais em que transitaram com dificuldade os dois candidatos no segundo turno da sucessão presidencial. E, para não sair salpicado, o ex-presidente deixou para depois uma página da qual a História do Brasil vai precisar. Na hora de conferir palavras e fatos, muitas soluções que começaram com Fernando Henrique e foram aproveitadas pelo seu sucessor, estarão na vitrina da social democracia. A concorrência vai levar um tranco.

No modo henriquino de avaliar o que se passou, sem entrar em discussões intermináveis, a social democracia não associou as soluções práticas a teorias nunca antes com bom trânsito por aqui. O PT e Lula se limitaram a depreciar como neoliberalismo o que o PSDB plantou em seus dois governos, o PT irrigou com mão boba e ainda sobrou para fazer de Lula credor do terceiro mandato. O próprio partido da social-democracia no Brasil trata ornitologicamente seus representantes, dirigentes e militantes como tucanos de plumagem discreta, para não melindrar nem provocar ninguém num país sem direita assumida (mas por aí o tempo todo).

Faixa ampla da sociedade também não consegue se situar claramente por dever muito ao passado e sacar contra o futuro, pela elementar incapacidade de distinguir onde começa a direita e onde termina a esquerda, tanto pelas diferenças quanto pelas semelhanças. O PT nem se lembra de que sua razão de ser era abrir uma picada para o socialismo. O presidente Lula fez, em carta equivalente à de Pero Vaz de Caminha, uma curva maior e passou longe do que falta. Lidos o livro ou a entrevista do autor Fernando Henrique, o horizonte fica mais óbvio e melhor entendido o passado recente. Já se vê, com melhores olhos, o Brasil no futuro imediato, sem o véu da fantasia lulista. O petismo já pode caber no leque de variedades do PMDB, com o qual a presidente Dilma Rousseff se abanará em breve.

Uma pena que se tenha perdido a melhor oportunidade, mas o que tiver de acontecer, quando tiver de acontecer, acontecerá. A questão da social-democracia é que se pode debitar à fatalidade pelas razões apontadas com elegância por Fernando Henrique: falta clareza suficiente a propostas e resultados, cada qual para seu lado.

É por aí que o ponto de vista do ex-presidente Fernando Henrique ganhou suficiente clareza. Já o presidente Lula precisará esperar, porque não há como agregar ao exercício do poder o reconhecimento do futuro. Se os partidos não fossem entre nós apenas formalidades legais, e a social democracia uma resignação disposta a esperar a apalavra da História, os oradores social democratas se sucederiam na tribuna parlamentar para mostrar que não é mera coincidência, mas materialização da social democracia o que se fez e se faz na confusão.

A pedagogia por um fio:: José de Souza Martins

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

A limitação da controvérsia aos erros materiais e técnicos poupa os responsáveis pelas provas - há problemas de formulação e de conteúdo no elenco de perguntas apresentadas aos candidatos

Toda controvérsia sobre a prova do Enem recaiu exclusivamente sobre erros de qualidade na apresentação física do material aos inscritos. O noticiário diz que nos cadernos amarelos havia questões repetidas e faltantes. Nas folhas de respostas dos testes os cabeçalhos de ciências humanas e de ciências da natureza estavam trocados, o que pode ter induzido os examinandos a erro. Numa empresa privada, um descaso desses acarretaria em demissão dos responsáveis.

Mesmo que se alegue que a restrita parcela dos que se consideraram prejudicados poderá fazer novo exame, há que levar em conta que o princípio básico de uma prova dessas é probabilístico, todos se defrontando com dificuldades iguais. Se as questões da prova substitutiva forem diferentes das questões da prova defeituosa, como terão que ser, fica anulado esse princípio regulador.

A reação do governo federal no sentido de minimizar o acontecimento é deplorável, sobretudo em face do fato gravíssimo do ano passado, em que o sigilo das provas foi violado e seus resultados oferecidos à venda por uma quadrilha. A inépcia já recomendaria cautela redobrada neste ano, que não houve nem mesmo na revisão final do texto antes de encaminhá-lo à gráfica. O caso ficou mais complicado com os dois indevidos pronunciamentos que sobre ele fez o próprio presidente da República. São justificativas de tipo corporativo, que nada justificam.

A limitação da controvérsia aos erros materiais e técnicos poupa os responsáveis pelo teor das questões de outra e mais importante avaliação crítica das provas, que deveria ser a dos educadores. Há problemas de formulação e de conteúdo no elenco das questões apresentadas aos candidatos. No que diz respeito às ciências humanas, uma notória tendência ao materialismo vulgar perpassa várias questões, reduzindo ao econômico problemas sociais complexos da sociedade brasileira. Essas provas, como acontece com as dos vestibulares, acabam sendo interpretadas como indicadores do que deve ser um bom programa de ensino médio, coisa que estão longe de ser.

A inclusão de temas controvertidos, que comportam distintas interpretações, não é norma de prudência em testes objetivos de múltipla escolha, que pressupõem respostas incontroversas. No entanto, na folha rosa, a questão 2 propõe ao examinando que escolha a formulação indicativa do que é a estrutura fundiária brasileira com base nas Estatísticas Cadastrais do Incra, de 1998. A estrutura fundiária não permanece necessariamente a mesma tanto tempo. Além do dado antiquado, um dos intervalos vai de 100 ha a 1.000 ha, o que sugere extremos, mas não a gradação no tamanho das propriedades e, portanto, o que é a efetiva estrutura fundiária. Essa estrutura é dinâmica e não pode ser definida com base no recorte de um único ano, sobretudo em face de anos de reforma agrária. Sem contar o erro, na questão 25, quanto ao ano da abertura dos portos por dom João, com a chegada da Família Real a Salvador, em 1808, e não em 1810.

A questão 6, relativa à Guerra do Contestado (conflito ocorrido em Santa Catarina, de 1912 a 1916), a atribui ao surgimento na região de "uma série de empreendimentos capitalistas", quando, na verdade, o que chegou foi o complexo de atividades econômicas de um só empreendimento - o do empresário americano Sir Percival Farqhuar, contratado pelo governo para construir a ferrovia estratégica para o Rio Grande do Sul. A proposição ou as alternativas não mencionam uma única vez o fato de que a guerra se originou, no plano imediato, de um conflito de divisas entre os estados do Paraná e de Santa Catarina - daí o seu nome. Mas que, no essencial, foi um movimento messiânico e milenarista, ou seja, de natureza religiosa.

Para a prova de redação, de 30 linhas, foi indicado o tema "O trabalho na construção da dignidade humana", com base em dois textos de apoio, um deles sobre a escravidão contemporânea, estereotipado e frágil, impropriamente conceitual. Nele não se faz nenhuma referência ao que é, reconhecidamente, próprio desse regime de trabalho, que é de escravidão temporária por dívida.

O tamanho do problema pode ser medido não só pelas reações no âmbito da Justiça mas também pelos movimentos de estudantes na internet e nas ruas, em andamento ou em esboço. Foram 3,5 milhões de jovens que compareceram às provas. De certo modo colocaram seu destino e seu futuro nas mãos de funcionários do governo ou por ele designados. Os resultados das provas do Enem abrem e fecham portas. O preenchimento de 83 mil vagas em universidades e instituições federais depende desse exame, parcial ou totalmente. Se as provas tivessem sido realizadas em outubro, como foram as do ano passado, teriam ocorrido entre os dois turnos das eleições. É pouco provável que não afetassem o resultado eleitoral. O que indica que somos frágeis não só na avaliação do rendimento escolar dos estudantes, mas também de competências políticas. Tudo está sempre por um fio.

José de Souza Martins é professor emérito da FFLCH-USP e autor de ‘A aparição do demônio na fábrica’ (Editora 34)

Currículo de desigualdades :: Roseli Fischmann

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS

O Enem se propõe a ser um instrumento mais igualitário, em nível nacional, mas tem lidado mal com questões administrativas

A crise desencadeada pelo Enem é proporcional à sua relevância na vida de tantos jovens que querem ingressar nas universidades públicas ou conseguir acesso a um dos programas de apoio do governo para o ensino privado. Classificar estudantes, mais do que medir competências, é uma árdua equação entre as expectativas de cada jovem e da sociedade, as políticas públicas, os direitos de todos e as heranças históricas ocultadas pelo tempo.

Na Colônia não havia ensino superior, já que não interessava a Portugal emancipar o Brasil pela educação; é um período de mais de 300 anos, dos 510 após Cabral. Para cursar ensino superior, ia-se a Coimbra; se aqui tivesse estudado com jesuítas, haveria fácil equivalência de estudos, porque era dirigida pela mesma Companhia de Jesus, com verbas do Padroado Régio.

A vinda da Família Real em 1808 trouxe a necessidade de "civilizar" a nova sede da Corte, criando-se a Escola de Anatomia. Após a Independência, o primeiro curso seria o de Direito, com a criação das duas primeiras faculdades nessa área, a do Largo de São Francisco e a de Olinda, em 1827. Dessa época, registra-se a ausência do poder público na oferta do ensino de primeiras letras, em um prenúncio dos equívocos que percorreriam nossa história. Os estudantes que poderiam candidatar-se aos cursos superiores provinham de escolas mantidas por ordens religiosas católicas, ligadas à então igreja oficial e subsidiadas pelo Império. Ou recebiam instrução dada por preceptores, em seus lares. O Império criou o mecanismo de "exames parcelados", que, organizado por província, aos poucos substituiu e desestruturou o ensino regular, pois era determinante para concorrer ao ensino superior. O parcelamento de exames, sem exigência de frequência, abreviava o caminho.

Tardiamente, na década de1930, começaram as universidades do País. O desenvolvimento da pesquisa, articulada com ensino e extensão, passou a estruturar a tríplice missão das ainda poucas universidades. As vagas limitadas impunham processo seletivo rigoroso, em fases eliminatórias de provas escritas e orais.

A crise de 1968 teve no vestibular um de seus temas mais candentes. O exame era ainda eliminatório, com nota mínima para aprovação em cada disciplina. Esse critério elevou o rendimento dos estudantes, havendo, aos poucos, mais aprovados do que vagas. Era a figura do excedente que reivindicava, pela aprovação, o direito à vaga inexistente. O governo militar resolveu a situação alterando o critério de eliminatório para classificatório, com o que, formalmente, não mais haveria excedentes. Foram criadas universidades federais pelo Brasil, necessidade antiga, esperando resolver a demanda. Com o critério classificatório, somado ao sistema de provas objetivas, o acesso à universidade ganhou novos contornos.

Ao mesmo tempo, nos anos 1970 o ensino obrigatório passou de quatro para oito anos, eliminando o gargalo do exame de admissão e atribuindo identidade ambígua ao ensino médio. O ensino privado viveu a abertura de facilidades para a criação de cursos de ensino superior, com o que se ampliaram vagas, mas atreladas a mensalidades.

A leva seguinte de mudanças no ensino superior viria com a Lei nº 9394/96. Houve a abertura para instituições privadas utilizarem a denominação "universidade", com base na criação de programas de pós-graduação stricto sensu reconhecidos pela Capes. Era uma sinalização de abertura do mundo da pesquisa. Mas o vestibular continuava classificatório e, com a ampliação de vagas e níveis, houve a possibilidade de maior proximidade da população com a ideia de cursar uma universidade.

Já a partir de 2003 surgem outras propostas, seja de ampliação, como o Reuni, reestruturando e ampliando as universidades federais, seja a resposta aos custos das particulares, com o Prouni e o Fies, alvos também de processos seletivos.

O marco de um debate mais consequente em relação ao efetivo questionamento da relação entre acesso à universidade e desigualdade, contudo, chegaria apenas com a proposta de ações afirmativas, erroneamente simplificadas como "oferta de cotas". O que se coloca nesse debate é a desigualdade criada historicamente por um tipo de seleção que privilegiou os privilegiados, fragilizando a democracia.

O Enem se propõe a ser um instrumento mais igualitário, em nível nacional, mas tem lidado mal com questões administrativas, da dificuldade de reconhecer os estudantes que, por razão de crença, guardam o sábado (bastaria realizar o exame em dois domingos) a problemas com gráficas e sigilo. Tem méritos relevantes, no sentido de buscar um caminho nacional mais igualitário para o acesso às oportunidades educacionais no ensino superior, de forma, também, a valorizar o ensino médio não como curso "de passagem", mas com valor em si, parte da educação básica e da formação do cidadão. Resta, agora, ajustar as diversas falhas que, pela extensão da proposta do Enem, provocam tanta comoção, para o que é indispensável aprender as lições do passado.

Roseli Fischmann é professora do programa de pós-graduação em Educação da USP e da Universidade Metodista de São Paulo

Progresso mal-educado – Entrevista: Simon Schwartzman

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Desenvolvimentistas achavam que a educação no Brasil melhoraria junto com a economia. Não foi assim

Ivan Marsiglia


O MEC ainda não passou na prova do Enem. Desde que o Ministério da Educação apresentou sua proposta de reformulação do Exame Nacional do Ensino Médio, uma sucessão de erros, tentativas de fraude e problemas de organização tirou a paz dos estudantes e abalou o nome do ministro Fernando Haddad nas bolsas de apostas para permanência no cargo na futura gestão Dilma Rousseff.

Em outubro de 2009, o principal instrumento de avaliação dos conhecimentos do ensino médio do governo federal foi cancelado após uma reportagem do Estado revelar que a prova tinha vazado. Em dezembro do mesmo ano, o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pelas provas, divulgou o gabarito errado e seu presidente pediu demissão. Em janeiro de 2010, o sistema online do MEC para candidatura a vagas nas universidades federais usando o Enem travou e estudantes levaram até 14 horas para fazer a inscrição. Em fevereiro, um equívoco na digitalização das redações levou à divulgação errada das notas de 915 estudantes. Em agosto, vazaram dados pessoais de inscritos nos anos de 2007, 2008 e 2009. E, nessa semana, erros no cartão de resposta fizeram a Justiça do Ceará suspender o exame liminarmente - decisão derrubada apenas na sexta-feira pelo Tribunal Regional da 5ª Região. Desempenho nota zero.


Para o sociólogo mineiro Simon Schwartzman, os problemas operacionais e logísticos do Enem escondem a questão que realmente importa. "É a própria ideia do Enem, desse tamanho e com essa escala, que precisa ser discutida", diz o pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), que foi presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 1994 e 1998 e diretor para o Brasil do American Institutes for Research de 1999 a 2002.


"O correto seria voltar à ideia inicial do exame, menor e focado na avaliação de competências, não de conhecimentos", defende o especialista.


Na entrevista a seguir, Schwartzman afirma que os ideólogos do desenvolvimentismo no Brasil sempre minimizaram a importância da educação, considerando-a mero corolário do crescimento econômico. E que a superação do gigantesco atraso educacional do País passa não pelo "grande projeto", que nunca vem, mas por investimentos específicos e esforços simultâneos em diversas frentes.

Como entender a sucessão de problemas na principal prova de avaliação do MEC?


É a própria ideia do Enem que precisa ser discutida. Os problemas operacionais e logísticos que ocorreram são acidentes de percurso, embora não aleatórios - pois quando se tenta fazer algo desse tamanho, com tal escala, está sujeito ao que ocorreu. Falta estrutura ao Inep, que tem demasiadas funções, não possui um quadro de pessoal forte e se meteu a fazer um projeto muito grande, ambicioso demais.

O que deve ser discutido no Enem?

A questão é: precisamos de um Enem desse tipo? Na experiência de outros países, existe algo semelhante? A resposta é não. Em sua origem, nos anos 90, o Enem era uma maneira de obter um padrão de referência para o ensino médio. Um teste de competência, não de conhecimento - em que se analisa nos alunos a capacidade de raciocínio, o uso da língua, a capacidade de expressão e a de resolver questões. Mas se transformou em uma prova de conteúdo, longa, exaustiva, um vestibular nacional.

Com esse mesmo argumento, de que o sentido original da prova se descaracterizou, a antropóloga Eunice Durham defendeu o fim do Enem. O sr. concorda?

O correto seria voltar à ideia inicial, focar o exame em competências, e não em conhecimentos. Imagino que esse tamanho de prova, feita em dois dias, tenha sido uma exigência das universidades. O governo deve ter feito um movimento para convencê-las a considerar a prova em seu processo de seleção e elas responderam: "Então coloquem no Enem tudo o que a gente gostaria de avaliar". Está errado.

Não é assim em outros países?

Europeus e americanos têm sistemas antigos e bem estabelecidos de avaliação do ensino médio. Na França há o baccalauréat (que existe desde 1808, dura cerca de uma semana e inclui provas orais), os ingleses têm o que chamam de A-Level (Advanced Level General Certificate of Education, aplicado desde 1951) e nos EUA existe o SAT (Scholastic Assessment Test, que começou em 1901). Em geral, esse tipo de prova exige que o estudante apresente certo nível de conhecimento da língua e de matemática, para então oferecer diversas opções: geografia, artes, ciências, etc. Depois, as universidades usam os resultados em função dos interesses de cada departamento. O ponto fundamental é que não se manda todo o mundo estudar tudo. Esse é um problema da educação média brasileira: os vestibulares das universidades mais competitivas criaram uma tal pressão em cima do ensino médio que resulta nesse currículo maluco que temos,com 14 matérias. Outra diferença é de logística: na Inglaterra são cinco as instituições encarregadas de preparar as provas, os examination boards. E, nos EUA, o SAT é aplicado por computador, várias vezes por ano. O estudante se inscreve, marca uma hora, vai lá e responde questões em progressão de dificuldade. Por que não adotar uma tecnologia dessas no Brasil? É maluquice juntar 3,5 milhões de pessoas em salas de aula no mesmo dia para responder às provas com caneta.

Por que, após oito anos de governo FHC e oito de Lula, o Brasil ainda não encontrou um rumo claro para a educação?

Faltou prioridade. Durante muito tempo, boa parte da esquerda brasileira cultivou a ideia de que a educação se resolve sozinha quando a economia estiver bem. Se você pegar a obra de Celso Furtado, o grande teórico do desenvolvimento no Brasil, vai ver que ele não escreveu uma linha sobre educação na vida. O contrário do que diziam os pioneiros do tema nos anos 30: se você resolver a educação, o resto vem. A verdade é que a educação exige um investimento específico, próprio, ainda que sem relação clara com o mercado de trabalho. O exemplo sempre citado é o da Coreia do Sul, que nos anos 60 tinha um nível educacional parecido com o brasileiro e, com investimento pesado em educação básica, média e superior, atingiu um alto patamar de qualidade para toda a população.

Consta que na Coreia do Sul o enfoque foi na qualidade e não na infraestrutura: as escolas muitas vezes eram grandes galpões onde os estudantes aprendiam em período integral com professores de alto nível e bem pagos. O que se pode tirar da experiência coreana?

Acho que dá para tirar algumas lições. No Brasil, o governo federal sempre colocou mais dinheiro na educação superior. Até hoje é assim. Como a classe média alta a queria para os seus filhos, o pensamento foi: "Vamos dar universidade gratuita para esse pessoal que pressiona muito; o povão que não pressiona, deixa para lá." E nunca houve uma política nacional para a educação básica e média. Até porque ninguém sabia muito bem o que fazer. Não houve um esforço intelectual de se pensar quais seriam os conteúdos, como se monta o sistema, como se equacionam os problemas.

O ministro Paulo Renato universalizou o ensino básico. Fernando Haddad retomou investimentos em escolas técnicas, nas universidades federais e fez o Prouni. Como o sr. avalia essas duas gestões?


A coisa mais importante da gestão Paulo Renato foi a criação do Fundef, que depois virou Fundeb - e equacionou o financiamento da educação fundamental. Foi essa norma que estipulou a distribuição de recursos conforme o número de alunos. No ensino superior, não acho que ele tenha conseguido muita coisa: o ensino privado cresceu sozinho, pois o sistema público continuou fechado e elitista, tal como foi pensado na reforma de 1968, ainda no período militar. Embora tenha criado o Provão e estimulado uma gestão mais responsável dos recursos pelas próprias universidades, Paulo Renato enfrentou greves e grande resistência política. No caso do governo Lula, houve a criação de algumas universidades, mas em boa parte apenas no papel: instituições que já existiam e apenas mudaram de nome. A política do atual governo tem sido a de dar tudo o que as universidades públicas querem, sem pedir nada em troca. Houve um esforço no Reuni, quando se estimulou que elas a aumentassem o número de vagas, criando cursos noturnos. Mas sem clareza sobre em que áreas, de que maneira, para que tipo de público. E teve o Prouni, uma política que faz sentido, de se usar as vagas do setor privado para responder um pouco à demanda. Curiosamente, antes de Lula, essa ideia de subvencionar o estudo no setor privado era um tabu, não se podia fazer no Brasil.

Por que o sr. diz que, sem parcerias privadas, a universidade pública ‘se acomoda’?

Nós temos no Brasil uma situação em que as universidades são repartições públicas. É o caso da USP. Elas recebem uma porcentagem fixa dos impostos do Estado e não se preocupam em ir além. Não contam com um sistema de incentivos ou busca de resultados - nem acadêmicos, nem de eficiência no uso dos recursos. Em outros países, as universidades públicas são obrigadas a mostrar o que estão fazendo, justificar o que gastam e, em contrapartida, têm flexibilidade para pagar mais ou menos ao professor de acordo com o seu desempenho. Um modelo de gestão muito mais ágil.

O foco do Brasil hoje deveria ser a educação básica ou a pesquisa de ponta?

Esse é um falso dilema. Uma não pode ser sacrificada pela outra. A educação é uma fronteira ampla de trabalho. Não se pode esperar que um ministro, uma única cabeça, saiba o que fazer. Precisamos de gente competente trabalhando em diversos níveis, em todo o País. Nossa educação básica continua com um desempenho péssimo internacional, em qualquer comparação que se faça. Na pesquisa de ponta, o que temos no Brasil é uma política de valorização da pesquisa acadêmica, que teve um papel importante, formou gente, desenvolveu a pós-graduação - mas relegou a segundo plano a pesquisa aplicada, ligada às política empresarial e pública. É um sistema muito voltado para dentro dele mesmo.

O sr. diz que a educação nunca esteve na órbita do desenvolvimentismo brasileiro. Tanto a presidente eleita, Dilma Rousseff, quanto seu adversário no segundo turno, José Serra, são considerados desenvolvimentistas. Se é assim, quando haverá o grande projeto que diminua o gap histórico do País na educação?

Não existe "grande projeto". É preciso trabalhar muito e em várias frentes. O Brasil tem boas experiências, que podem ser aprofundadas. Na educação básica, Minas Gerais aplica uma política de contratos de gestão nas escolas, em que se definem metas e se avaliam resultados. Vários estados do País já adotam o período de seis horas nas escolas - que é o tempo necessário às crianças. Precisamos falar de programas e métodos de ensino. É intolerável que um menino de 8 anos em uma escola não saiba ler e escrever, quando há metodologia estabelecida para isso. As faculdades de pedagogia não ensinam como se ensina: ficam discutindo teorias sociológicas ou sei lá o quê. Há que se aumentar o salário dos professores e criar sistemas que associem desempenho a remuneração. A hora é esta.


Entrevista Sérgio Guerra: 'Primeiro, 45% dos brasileiros disseram não'

DEU EM O GLOBO

Sérgio Guerra faz um balanço da derrota da oposição e demonstra preocupação com os rumos do futuro governo Dilma

Duas semanas após a terceira tentativa frustrada dos tucanos de voltarem ao poder central do Brasil, o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), admite que seu partido precisará passar por ampla reestruturação. O PSDB, diz, passa a impressão de que é um partido de um pequeno grupo. Nesta entrevista ao GLOBO, concedida na manhã de quinta-feira em seu gabinete no Senado, Guerra fala de sua preocupação com os rumos do futuro governo Dilma Rousseff, a começar pela ação articulada pelo ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, de deixar pronto um projeto de regulação da mídia. Ele minimiza a nova disputa entre mineiros e paulistas pelo comando do PSDB — seu mandato termina em maio —, mas reconhece que, se o partido tiver mais de um candidato à Presidência da República em 2014, não terá como fugir das prévias.

Adriana Vasconcelos

O GLOBO: Qual a estratégia da oposição daqui para a frente?

SÉRGIO GUERRA: Não pode ser outra a não ser se recompor e se reestruturar. Ao longo especialmente do segundo turno, os partidos de oposição trabalharam em conjunto. A avaliação nossa é que a eleição trouxe bons resultados.

Apesar da derrota para a Presidência?

GUERRA: Primeiro, 45% dos brasileiros disseram não. Não foi apenas preferência à candidatura de José Serra, mas também negação ao nome de Dilma Rousseff e ao ‘status quo’, o que inclui o presidente Lula. Segunda conquista, indiscutivelmente importante, foi a eleição de dez governadores: oito pelo nosso partido e dois pelo DEM, em governos relevantes como Minas, São Paulo, Paraná, Goiás, Pará, Rio Grande do Norte e Santa Catarina. Sensato é ponderar, refletir e montar um projeto para o futuro.

Que tipo de oposição pretendem fazer? Pontual, radical?

GUERRA: A oposição radical, não sabemos fazer. Um dia desses, o presidente Lula disse que sofreu oposição radical. É a maior piada do mundo. Muita gente acha que a gente não fez oposição. Discordo. Nós fizemos oposição do tamanho que tinha de ser, nem radical, nem moderada.

O senhor fala em reestruturação do partido, Aécio Neves em refundação, o que seria isto?

GUERRA: Aécio falou em refundação e sugeriu que seja nomeado um pequeno grupo para tratar de definir um novo posicionamento diante dos problemas do país. Esse grupo inclui o próprio Aécio, (o ex-presidente) Fernando Henrique Cardoso, (o senador) Tasso Jereissati e José Serra. Mas é apenas o começo de uma reavaliação mais voltada para programas partidários. A reestruturação a que me refiro é outra, muito mais geral.

Isso significa que o PSDB precisa ser menos paulista?

GUERRA: O PSDB deve ser reconstruído e ganhar um caráter nacional, reestruturando não apenas seu pensamento, mas também a sua linguagem, ganhando organização e conteúdo para que o partido seja mais forte do que as pessoas. É preciso que o partido defina metas e objetivos, antes mesmo das pessoas, por mais relevantes que elas sejam, definirem as suas. A impressão é que o partido é comandado por um pequeno grupo, ainda que de excelente qualidade.Quanto mais abrir para a participação, colaboração, melhor.Há clara falta de sintonia entre o partido e setores sociais emergentes e organizados, que não têm canal com o PSDB.

A quais setores se refere?

GUERRA: O PSDB ganhou as eleições nos centros brasileiros.Foi a regra. Perdeu as eleições nos grotões, nas áreas menos críticas do país. Não falo do Nordeste contra Sul, nem do Sudeste contra o Centro-Oeste. Em todas as regiões, este fato se deu.O eleitorado mais dependente, menos crítico, votou no PT. O mais crítico e menos dependente tende a votar no PSDB.

O que levou a oposição a perder mais uma vez a disputa presidencial?

GUERRA: Vamos ser sinceros, o prestígio e a força de um cidadão brasileiro, pobre, que se constituiu na maior liderança do país: Luiz Inácio Lula da Silva. O resto é conversa.

‘A máquina pública foi usada na campanha e no segundo turno’

Foi uma luta desigual?

GUERRA: A principal marca da eleição foi uma desproporção dos meios que sustentavam as duas campanhas. Não me refiro apenas à questão de financiamento, mas de máquina de poder.É rigorosamente seguro dizer que a máquina pública foi usada. Na précampanha, na campanha e no segundo turno.

Mas o decisivo para a vitória de Dilma não foi a alta popularidade de Lula?

GUERRA: O presidente Lula não cresceu nesta eleição, diminuiu. O Lula contrariou todos os limites e foi o principal responsável pelos desequilíbrios desta campanha. Na hora em que o presidente é multado pela Justiça Eleitoral, e acha graça da multa, dá um exemplo dramático ao país inteiro no sentido de desrespeito à lei.

O resultado do segundo turno não era conhecido ainda e tucanos paulistas, como Xico Graziano, já responsabilizavam o senador Aécio pela derrota. Como o senhor vê isso?

GUERRA: A palavra do Xico foi desautorizada pelo partido no mesmo dia. O Xico é um bom quadro, mas fez uma declaração infeliz. Não vai ser a palavra dele, por mais relevante que ele seja, que vai firmar o conteúdo e a forma do partido. Há um sentimento hegemônico hoje no PSDB que é o da unidade. Ninguém manda mais no PSDB. Todos querem atuar, querem ter o seu papel e vamos ter de criar canais para que isso aconteça.

Tudo indica que em 2014 o PSDB poderá se dividir novamente entre dois nomes à Presidência: o mineiro Aécio Neves e o paulista Geraldo Alckmin...

GUERRA: O que vai acontecer no futuro, não sei. Mas desde que o partido redefina seu rumo e sua organização, vai se sobrepor a disputas que não devem se dar. Não vai demorar para termos clareza sobre o nosso candidato e a campanha que vamos fazer.

Qual o critério para a escolha, no caso de haver mais de um candidato?

GUERRA: Prévias são convenientes, necessárias e devem ser organizadas.Temos a aprovação do partido para fazê-las. Devemos fazer recadastramento de todos os filiados.

Defende que seja antecipada a escolha do candidato?

GUERRA: Nas eleições municipais, o possível candidato do partido já estará escolhido e deverá aparecer, andar, se comunicar, interagir e colaborar com as campanhas municipais.

Acredita nos rumores de que Aécio poderá deixar o PSDB se não tiver garantia de que será o candidato em 2014?

GUERRA: Eu nunca vi Aécio falar em outra coisa que não fosse relativa ao partido. Agora vejo ele muito empenhado em ter um papel no partido.

Qual deverá ser o destino do Serra? Ele pode disputar novamente a Presidência em 2014?

GUERRA: Não sei qual será o caminho do Serra, mas logo depois da confirmação do resultado das eleições ele mesmo disse que estava dando apenas um até logo. Acredito que continuará tendo um papel ativo no partido, não necessariamente como candidato à Presidência.

Na campanha, o presidente Lula sugeriu que setores da oposição pudessem ser dizimados. O senhor teme que isso tenha continuidade com a Dilma?

GUERRA: Temo. É a ameaça da venezuelização do Brasil. Se a política do presidente Lula for adotada por sua sucessora Dilma e for a da hegemonia, em vez da política da democracia, nós vamos ter um destino muito complicado. É o pior dos cenários, é o que menos desejo.

Isso encaixa com o modelo de regulação da mídia defendido pelo ministro Franklin Martins?

GUERRA:
Evidente que se encaixa, é coerente. Hegemonia no Congresso, centralização fiscal, redução do papel dos estados e municípios, secundarização do Judiciário, ataques ao Tribunal de Contas da União. É a rota do retrocesso e espero que não prevaleça, porque é insensata.

Como a oposição poderá se contrapor a isso?

GUERRA: A pergunta não deve ser feita à oposição, mas à democracia.Como é que a democracia vai sobreviver? Nós afirmamos lá atrás que a vitória da Dilma poderia ser um risco para a democracia. E, se essa política prevalecer, será um risco para a democracia.

Na hora em que o presidente é multado pela Justiça, e acha graça, dá um exemplo dramático de desrespeito à lei
Sérgio Guerra

Ninguém manda mais no PSDB. Todos querem ter o seu papel, e vamos ter de criar canais para que isso aconteça

Sérgio Guerra

Dúvidas entre o público e o privado :: Suely Caldas

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A solução para o caso do Banco Panamericano deixou no ar dúvidas e suspeitas relacionadas com a velha e surrada prática política brasileira de misturar o público e o privado, numa troca de favores vantajosa para os atores e ruinosa para os brasileiros que alimentam o caixa dos governos pagando impostos.

O presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, tem razão ao dizer que o empréstimo de R$ 2,5 bilhões do Fundo Garantidor de Crédito (FGC) ao Grupo Silvio Santos não envolve recursos públicos. Criado em 1995 com dinheiro de bancos, justamente para dar solução privada, e não pública, de socorro a instituições financeiras em dificuldades, o FGC não chegou a ser usado nos anos 90, porque ainda não havia acumulado capital suficiente para cobrir a onda de quebradeira de bancos que se seguiu à queda brusca da inflação. Patrimônio reunido em 15 anos, foi possível agora ao fundo cumprir seu objetivo pela primeira vez. Assim, o BC agiu corretamente ao induzir o Grupo Silvio Santos a negociar um empréstimo com o FGC: evitou aplicar dinheiro público num banco privado que praticou fraudes. Feita a ressalva, vamos às dúvidas e suspeitas brotadas com a revelação do caso.

Os fiscais do BC detectaram que desde 2006 a direção do Panamericano praticava fraudes contábeis nos balanços, registrando, indevidamente, como receita carteiras de crédito vendidas a outros bancos, além de truques com cartões de crédito. Ao longo de cinco anos, portanto, a direção do banco conseguiu enganar quatro empresas de auditoria que avaliaram seus números, uma agência de classificação de risco (em julho a Fitch elevou sua nota) e o próprio BC.

Mas a "traição" maior foi contra a Caixa Econômica Federal, que em 2009 injetou R$ 739,2 milhões na compra de 49% das ações do capital votante, sem ali colocar um único diretor para fiscalizar o sócio privado. Aí começam as dúvidas e suspeitas de conluio entre o público e o privado. Até que a Caixa venha a público dar explicações convincentes, os brasileiros e donos de seu capital têm direito a duvidar e indagar: afinal, qual estratégia de negócios justifica colocar tanto dinheiro num banco médio que não faz operações típicas de interesse e expertise da Caixa? Note-se que a estatal não se limitou a comprar carteiras de crédito como autorizou o governo na travessia da crise financeira. Quase adquiriu o controle acionário, o limite máximo (49% das ações) para não estatizar o Panamericano. Por quê? Negócio lucrativo? Socorro disfarçado?

Convocada para dar explicações à Comissão de Constituição e Justiça do Senado, na quarta-feira, a presidente da Caixa, Maria Fernanda Ramos Coelho, poderá esclarecer e convencer. Ou não.

Na segunda dúvida entra em cena o empresário Silvio Santos, que na semana passada surpreendeu o mundo dos negócios ao revelar sua aversão ao banco, cujo endereço ele desconhece, mas que lhe trás, segundo disse, o maior lucro entre suas 44 empresas. Acompanhe, leitor, a cronologia dos fatos relatada na última quinta-feira pelo presidente do BC, Henrique Meirelles:

Em 8/9/2010 o Banco Central comunicou ao Panamericano ter identificado fraudes na fiscalização.

Em 14/9/2010 o banco pediu ao BC tempo para uma resposta detalhada.

Em 22/9/2010 a direção do banco reconheceu a inconsistência de seus balanços e pediu prazo para entregar documentos. Neste mesmo dia 22/9 Silvio Santos foi recebido pelo presidente Lula, no Palácio do Planalto, em audiência-surpresa e não agendada previamente.

Em 13/10/2010 o controlador Silvio Santos informa ao BC que negocia empréstimo com o FGC.

Segundo Silvio Santos, o tema da conversa na audiência com Lula foi o apoio do governo ao programa Teleton, do SBT. Lula não citou o Teleton e negou ter tratado do banco. Então, qual a razão da improvisação e urgência da audiência? Para tratar de apoio a um programa televisivo realizado anualmente? Será mesmo?

Por fim, se o desenrolar do caso ocorreu entre setembro e outubro, a divulgação só agora obedeceu a conveniências do calendário eleitoral?

Jornalista, é professora da PUC-Rio

Petrobras fecha 43 contratos com marido de diretora indicada por Dilma

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Petrobras tem 43 contratos com marido de ministeriável

Negócios saltaram em 2007, quando Graça Foster assumiu diretoria da estatal

Engenheira é cotada para assumir cargo no 1º escalão do governo Dilma; Petrobras nega que haja favorecimento

Fernanda Odilla

BRASÍLIA - A empresa do marido de Maria das Graças Foster, nome forte para o primeiro escalão do governo Dilma Rousseff, multiplicou os contratos com a Petrobras a partir de 2007, ano em que a engenheira ganhou cargo de direção na estatal.

Nos últimos três anos, a C.Foster, de propriedade de Colin Vaughan Foster, assinou 42 contratos, sendo 20 sem licitação, para fornecer componentes eletrônicos para áreas de tecnologia, exploração e produção a diferentes unidades da estatal.Entre 2005 e 2007, apenas um processo de compra (sem licitação) havia sido feito com a empresa do marido de Graça, segundo a Petrobras.

A C.Foster, que já vendeu R$ 614 mil em equipamentos para a Petrobras, começou na década de 1980 com foco no setor de óleo e gás, área hoje sob a responsabilidade de Graça Foster.

Funcionária de carreira da Petrobras, Graça é cotada para um cargo no primeiro escalão do governo dilmista, como a presidência da Petrobras, a Casa Civil, a Secretaria-Geral da Presidência ou outro posto próximo da presidente eleita, de quem ganhou confiança.

Foi por indicação de Dilma que Graça ganhou, a partir de 2003, posições de destaque no Ministério de Minas e Energia, Petroquisa e BR Distribuidora e, há três anos, assumiu a diretoria de Gás e Energia da Petrobras.

Antes de a C.Foster firmar esses 42 contratos com a Petrobras, a relação de Graça com a empresa do marido, Colin Vaughan Foster, já havia gerado mal-estar.

Em 2004, uma denúncia contra a engenheira, relacionada ao suposto favorecimento à empresa do marido, foi encaminhada à Casa Civil.

O então ministro José Dirceu pediu esclarecimentos ao Ministério de Minas e Energia, sob o comando de Dilma. A fonte da denúncia não é identificada nos documentos obtidos pela Folha.

Na ocasião, foram listados dois contratos da C. Foster com a estatal: um de 1994, e outro, de 2000.

Coube à própria Petrobras elaborar um ofício com explicações sobre duas investigações internas envolvendo Graça no período em que ela era gerente do Cenpes (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Petrobras).

Sem detalhar as apurações, a Petrobras informou no ofício que durante as entrevistas "surgiram críticas contundentes" a Graça Foster e alguns empregados agregaram "denúncias de irregularidades nos negócios com a C.Foster".

O documento diz ainda que foram encontradas "evidências de que houve prejuízos à Petrobras", mas não revela o tamanho nem os responsáveis por ele.

A Petrobras informou no documento que a "comissão não encontrou provas de má-fé ou intuito de auferir vantagens financeiras".

Em defesa de Graça Foster, a estatal destacou ainda no documento que a engenheira informou ao assumir o cargo que se casou com o dono da C.Foster em 1994, depois de 13 anos de namoro.

TEMPERAMENTO

O ofício diz que "não ficou caracterizada a existência de prática de crime ou improbidade administrativa", mas enfatizava o temperamento difícil da engenheira.

"Cumpre agregar que nas declarações prestadas, verificou-se que Maria das Graças era objeto de restrições por grande parte do pessoal de seu setor, dado principalmente, como veio externar a comissão, "o modo com que tratava seus subordinados"", diz o ofício da Petrobras para a Casa Civil.

Assim como a presidente eleita, a diretora da Petrobras carrega a fama de dura, exigente e agressiva.

Se vingar a ideia de Dilma de "desidratar" a Casa Civil, aumentam as chances de Graça ser nomeada ministra. A avaliação da equipe de transição é a de que a diretora da Petrobras não tem jogo de cintura para chefiar um superministério.

Estados vão pressionar Dilma por mais dinheiro

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A briga dos Estados e municípios por mais dinheiro atingirá níveis inéditos em 2011. Quatro temas na agenda legislativa que envolvem mudanças na distribuição de dinheiro público estarão em debate: distribuição dos royalties do petróleo, reforma tributária, Lei Kandir e revisão dos índices do Fundo de Participação. Se o governo tiver sucesso em suas ambições, Estados e municípios mais pobres terão mais recursos para sem que as áreas mais desenvolvidas percam. É certo, porém, que haverá mais pressões sobre o cofre federal, para contrariedade da presidente eleita, Dilma Rousseff, que gostaria de elevar os investimentos. O tema mais imediato é articulação dos governadores por R$ 7,2 bilhões referentes à Lei Kandir, que trouxe perdas para aos Estados ao desonerar exportações de produtos básicos e semielaborados. Para estrategistas do governo, porém, a Lei Kandir é tema menor na agenda de relacionamento com os Estados em 2011. O grande trunfo é a distribuição dos royalties do petróleo, bolo estimado em R$ 50 bilhões.

Dilma enfrentará pressão de prefeitos e governadores por mais dinheiro

Lu Aiko Otta / BRASÍLIA

A briga dos Estados e municípios por mais dinheiro atingirá níveis inéditos em 2011. Quatro temas na agenda legislativa que envolvem mudanças na distribuição de dinheiro público estarão em debate: distribuição dos royalties do petróleo, reforma tributária, Lei Kandir e revisão dos índices dos Fundos de Participação.

Dependendo de como for conduzido, o debate pode cair no impasse de sempre. Se o governo tiver sucesso em suas ambições, Estados e municípios mais pobres terão mais recursos sem que as áreas mais desenvolvidas percam dinheiro. É certo, porém, que haverá mais pressões sobre o cofre federal, para contrariedade da presidente eleita, Dilma Rousseff, que gostaria de aumentar os investimentos.

Lei Kandir. O tema mais imediato é a articulação dos governadores por R$ 7,2 bilhões referentes à Lei Kandir. Essa lei isentou do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) as exportações de produtos básicos e semielaborados. Como a medida trazia perdas aos cofres estaduais, a União concordou em compensá-las até 2002, prazo depois estendido até 2006. Agora, mesmo sem lei, os Estados continuam pressionando por dinheiro.

A tendência é que o governo federal inclua no Orçamento de 2011 os mesmos R$ 3,9 bilhões pagos este ano. "É difícil ser mais do que isso", disse o deputado Walter Pinheiro (PT-BA), eleito senador e cotado para ocupar algum posto de destaque no Executivo ou no Legislativo em 2011. "Mas podemos negociar alguma alteração depois de março." Março é o mês em que o Congresso começa efetivamente a funcionar, depois de definida a ocupação dos postos-chave na Câmara e no Senado.

Royalties. Na cabeça dos estrategistas do governo, a Lei Kandir é um tema menor na agenda de relacionamento com os Estados em 2011. O grande trunfo nas mãos da presidente eleita, Dilma Rousseff, é a distribuição dos royalties do petróleo, um bolo estimado em R$ 50 bilhões.

A ideia é partilhar esse dinheiro com todo o País, e não só entre os Estados e municípios produtores, como é hoje. As áreas mais pobres tendem a ser mais beneficiadas, de forma a reduzir as desigualdades regionais.

Um assessor palaciano acha que, mal comparando, o dinheiro do petróleo fará com as prefeituras e Estados o que o governo Lula fez com as famílias: um grande contingente sairá da pobreza, sem que os mais ricos sejam prejudicados.

Na distribuição dessa riqueza, a discussão não é em relação a quem ganha e quem perde, e sim quem ganha mais ou deixa de ganhar. Não há perda.

"Entendemos que não dá para se mexer em receitas que já se têm, que os Estados já incorporaram às suas contas", disse o governador reeleito de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB). "Mas é impossível pensar que os royalties vão ser apropriados só por alguns."

Se o dinheiro do petróleo for capaz de criar um clima positivo de negociação com os governadores, Dilma terá uma oportunidade de ouro de destravar a reforma tributária. Sem mudar o ICMS, ela não conseguirá cumprir sua promessa de desonerar os investimentos. Tampouco será possível resolver o problema dos créditos acumulados pelos exportadores, um fator que agrava a perda de competitividade dos produtos brasileiros, já prejudicados pelo dólar barato.

"Dedo na ferida". Mas, ao contrário do pré-sal, a reforma tributária imporá perdas de arrecadação para algumas unidades da Federação. "Se os Estados querem ajuda, vão ter de colocar o dedo na ferida", comentou Pinheiro.

Eduardo Campos acha que os políticos estão devendo à sociedade uma reforma tributária e que o atual período de crescimento econômico é propício a essa agenda. "O primeiro ano de governo é o momento certo para esse debate", adicionou o secretário de Finanças do Sergipe, João Andrade.

Fundos. O ideal, do ponto de vista dos técnicos, seria conjugar as duas discussões. Assim, eventuais perdas com reforma tributária poderiam ser contrabalançadas com uma distribuição mais generosa dos royalties. No entanto, há dúvidas se isso seria viável do ponto de vista político. Na reforma tributária proposta por Lula, as perdas dos Estados seriam compensadas com recursos da União.

É também dos cofres federais que poderão sair recursos para viabilizar uma nova distribuição dos recursos dos Fundos de Participação dos Estados (FPE). Da arrecadação do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), 22,5% são divididos com governos estaduais. Os critérios do FPE, porém, foram questionados no Supremo Tribunal Federal (STF) por um conjunto de Estados e a corte deu prazo para uma nova definição até o final de 2012.

João Andrade faz parte de um grupo de trabalho que elabora uma proposta de novos critérios para o FPE. Com a nova distribuição, alguns Estados terão perdas, que poderiam ser compensadas pela União, segundo explicou. Pela proposta em estudo, o governo federal teria ainda outra contribuição a dar. "A União vem batendo recordes de arrecadação com base em receitas que não são partilhadas", disse. "É preciso ampliar a base da partilha." / Colaborou Eugênia Lopes

Crise no Enem abala emocional de vestibulando

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Vítimas de erros do Enem, estudantes vivem dias de revolta e tensão

Clarissa Thomé / RIO, com evandro Fadel, Liège Albuquerque e Carmem Pompeu

Revolta, decepção, tensão e insegurança são alguns dos sentimentos vividos nos últimos dias por boa parte dos 3,3 milhões de estudantes que participaram do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no final de semana passado. Em sua maioria adolescentes, eles se tornaram as maiores vítimas do imbróglio judicial em que a edição 2010 do Enem se transformou, por causa dos problemas nas provas de sábado.

A possibilidade de a disputa se arrastar na Justiça fez crescer a desilusão com o Enem - visto por muitos como a melhor chance de obter uma vaga numa universidade federal - e, ao mesmo tempo, deixou-os ainda mais inseguros por causa da pressão do calendário de vestibulares que tem início a partir deste final de semana.

O que está em jogo não é pouco. Das 84 universidades e instituições federais que usam a nota do Enem, 36 dependem exclusivamente do exame para selecionar seus alunos para 2011. Juntas, respondem por 48.458 cadeiras - ou 53% de todas as vagas oferecidas pela prova do Ministério da Educação (MEC).

A maioria dos candidatos a essas vagas mal teve tempo de refletir sobre a situação. No Rio de Janeiro, mais de 90 mil alunos fazem provas no feriado prolongado para as universidades federais mais procuradas do Estado - a Fluminense (UFF) e a do Rio de Janeiro (UFRJ). Para driblar a tensão provocada pelas falhas no exame e a incerteza se as instituições manteriam os planos de aproveitar as notas do Enem, escolas do Rio fizeram sessões de relaxamento, aulões de hidroginástica e até ioga.

"Os alunos já estavam preparados para as provas do ponto de vista do conteúdo; faltava o lado emocional. Essa indefinição fez o estresse dos estudantes aumentar", afirmou Mely Fonseca, diretora pedagógica do Colégio Santa Mônica, na Taquara, zona oeste. "Eu foquei toda a minha preparação no modelo de prova da UFRJ, que é inteiramente discursiva, porque já esperava essa bagunça", desabafa Brunna Rebelo, de 17 anos, que presta vestibular para Publicidade.

Centenas de estudantes extravasaram sua ira contra o MEC participando de ruidosos protestos nas ruas da capital fluminense durante a semana. O mesmo ocorreu em Minas Gerais, no Ceará e no Rio Grande do Sul.

Desconfiança. No Paraná, os estudantes iniciam hoje o vestibular da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o mais concorrido do Estado, para o qual o Enem terá peso de 10%. Um deles é Matias Augusto Ramos Lima, que tenta Medicina e foi vítima dos problemas com o caderno amarelo do Enem. "Fui muito prejudicado e confesso que não estou seguro para fazer o vestibular", afirma.

A estudante Nina Thais Silva Monteiro, que tenta vaga em Engenharia Química, diz que não se sente prejudicada. "Mas estou frustrada; o que espero é que se defina logo essa situação."

Marjorie Podlecki, que disputa uma vaga em Psicologia, relata ter presenciado irregularidades na prova do dia 6 que refletem a perda de credibilidade do Enem. Ela própria confessa ter usado relógio na prova.

Sua amiga Mychelle Jung diz ter ouvido celulares tocando, além de muita conversa entre os fiscais. "O Enem teve um ano para se preparar e aconteceu o que aconteceu", ponderou ela, que pretende cursar Enfermagem e também recebeu o caderno amarelo com problemas.

Já Nina diz ter ido ao banheiro e encontrado duas estudantes conversando, sem a presença de fiscais. "Elas pararam quando cheguei, mas, quando viram que não era um fiscal, continuaram conversando", disse.

O estudante Paulo Bernardo Lindoso Lima disse ter ficado desmotivado com o exame por conta dos problemas nas provas em Manaus. No ano passado, ele publicou artigo num jornal local, assustado com a fragilidade da segurança do exame. Neste ano, nova decepção. "A facilidade para quem queria colar era absurda. Eu levei meu lanche num saco e poderia ter colocado ali uma calculadora e ninguém nem deu bola quando eu abri o pacote para comer."

A Joaquim Cardoso ::João Cabral de Melo Neto

Com teus sapatos de borracha
seguramente
é que os seres pisam
no fundo das águas.

Encontraste algum dia
sobre a terra
o fundo do mar,
o tempo marinho e calmo?

Tuas refeições de peixe;
teus nomes
femininos: Mariana; teu verso
medido pelas ondas;

a cidade que não consegues
esquecer
aflorada no mar: Recife,
arrecifes, marés, maresias;

e marinha ainda a arquitetura
que calculaste:
tantos sinais da marítima nostalgia
que te fez lento e longo


(O engenheiro, 1942-1945)