sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Dor contratada:: Míriam Leitão

DEU EM O GLOBO

Os economistas mostram que o erro é investir pouco na prevenção e gastar muito para remediar. Os meteorologistas descrevem encontros de fenômenos naturais que os tornam mais potentes. Os climatologistas alertam que vai piorar. Os urbanistas apontam erros do passado. Um conservacionista viajou pelo Brasil e viu a insensatez. Assim se contrata a dor presente e futura.

Cada especialista no seu ângulo registra um pedaço do erro. Eles juntos produzem uma zona de convergência de tragédias futuras. O Brasil é bom na emergência: os poderes se juntam, os diagnósticos são precisos, as soluções são prometidas, o dinheiro aparece, a generosidade brota, a imprensa se concentra. Cessou o momento extremo e tudo volta ao leito do rio dos adiamentos.

Marcelo Seluchi, meteorologista do Inpe, explicou ontem a coincidência dos fenômenos que vitimaram a Região Serrana do Rio:

- A Zona da convergência do Atlântico Sul produz umidade concentrada. Isso piorou pela nebulosidade da Serra, mas houve também o que a gente chama de Sistema de Bloqueio, que deixou essa umidade sobre o Rio e São Paulo. São fenômenos naturais, mas as grandes catástrofes estão ficando mais frequentes.

Chuvas, tempestades, enchentes sempre existiram, tragédias já marcaram o passado em eventos históricos, mas o que está convergindo são os avisos de especialistas de diversas áreas de que é perigoso insistir no mesmo padrão de comportamento. A presidente Dilma ontem sobrevoou a tragédia e disse que a população pode esperar medidas fortes. Que sejam também permanentes.

Do Japão, o climatologista Carlos Nobre mostrou empolgação com o sistema de alertas e prevenção de enchentes e deslizamentos em encostas que será criado no Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) usando computadores e sabedoria do Inpe:

- Remover as pessoas de áreas de risco é mais difícil, mas é possível e factível um sistema de alertas efetivo. E esta será uma das minhas mais importantes tarefas no MCT.

Aumentou a volatilidade do clima, os fenômenos estão mais ativos, os extremos mais frequentes. Isso é evidente para qualquer leigo e uma constatação científica. Portanto, é mais do que repetição, é um movimento de piora constante. A cada nova tragédia, ela pode ser pior. Não tem volta, a humanidade já contratou uma parte da mudança climática. O que nos cabe agora é tentar mitigar seus efeitos, se adaptar aos seus rigores, evitar a continuação dos erros.

- O que tem sido observado globalmente é uma exacerbação dos ciclos naturais, isto é, extremos climáticos têm acontecido com mais frequência, há maior volatilidade do clima. No Brasil, faltam estudos de longo prazo do clima contemporâneo para sermos mais conclusivos, mas é bom nos prepararmos para este aumento de volatilidade. Vamos desenvolver e implementar tão rápido quanto possível formas de reduzir riscos de desastres através do sistema de alerta. No longo prazo, esse aumento da volatilidade vai mexer profundamente com os usos da terra, principalmente nas áreas de risco e cidades. Há um limite para obras de engenharia. É preciso fazer a paisagem rural e urbana voltar a responder de maneira mais natural aos fenômenos climáticos - disse Carlos Nobre.

É como declarou ontem a presidente Dilma após visitar os locais da tragédia na Região Serrana. Cabe às autoridades atender às emergências e prevenir com política habitacional, drenagem, saneamento:

- Porque se o terreno aqui é uma camada fina sobre rocha e há deslizamento quando chove, que deslize, mas que não morra gente.

O sinal da presidente é exato: em vez de culpar a natureza, precisamos nos preparar. Para lidar com fenômenos que ela descreveu como "montanhas que se dissolveram."

Foi o que viu também o conservacionista Miguel Milano. Ele acaba de voltar de uma viagem de 5 mil quilômetros, de carro, pelo interior do Brasil. Foi do Sul até a Bahia e passando por São Paulo, Minas, Rio, visitou o Vale do Paraíba e voltou pelo Espírito Santo, onde já pegou, na virada do ano, áreas alagadas:

- De propósito, fugi das grandes vias e viajei por dentro. Vi morro derretendo, vi todo o tipo de irregularidade. Não há áreas de preservação permanente, reserva legal, vegetação em declives. Vi encosta desmoronando por causa de erosão. Fiquei lembrando do que estudei de hidrologia florestal nos meus tempos de estudante, há décadas. Um desses estudos mostrava que a diferença entre o pico da cheia e o da seca nas áreas vegetadas é de sete vezes. Nas áreas degradadas, é de 20 vezes. A vegetação é proteção, atenua o impacto das chuvas, reduz o volume e o tempo do escorrimento, protege contra o vento e tem o efeito de transpiração, ou seja, as árvores bombeiam parte da água de volta para a atmosfera. Fui vendo isso e pensando na loucura do Brasil, que não só não respeita o Código Florestal como quer, a esta altura, mudá-lo.

No meio da mudança climática é estranho propor reduzir proteção das margens dos rios, dos picos dos morros, dos terrenos íngremes e diminuir as áreas de reserva legal. Mas é isso que o Congresso Nacional está votando na mudança do Código Florestal.

A presidente Dilma disse que agora é a hora de resgatar, amparar e cuidar das pessoas. Depois, reconstruir e prevenir.

É o triste momento de contar os mortos. Eles já passam dos 480. É também hora de ver que caminhamos no sentido contrário ao que manda a razão e a sensatez.

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