domingo, 9 de janeiro de 2011

Gambiarra jurídica:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

O caso da extradição do ex-terrorista italiano Cesare Battisti, que foi um dos chefes da organização de extrema-esquerda PAC (Proletários Armados pelo Comunismo) e é condenado à prisão perpétua na Itália por quatro assassinatos, pode gerar uma crise institucional entre o Judiciário e o Executivo, mas também colocar o Supremo Tribunal Federal, mais uma vez, em situação de desmoralização diante da opinião pública, pois existe a possibilidade de haver novamente um empate entre seus membros.

O julgamento da extradição, no fim de 2009, terminou com um placar de cinco a quatro, com o Supremo acatando o pedido do governo italiano, aceitando a tese de que Battisti deveria ser extraditado porque fora condenado por crimes comuns, e não políticos.

Mas, também por cinco votos a quatro, os ministros decidiram que caberia ao presidente da República a decisão final, embora a discricionariedade de seu ato tivesse que se restringir aos termos do tratado de extradição existente entre Brasil e Itália.

Dos cinco ministros que votaram assim, Eros Grau se aposentou recentemente, restando em plenário os ministros Cármen Lúcia, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio Mello.

Se nenhum deles mudar de posição, e do mesmo modo agirem os outro quatro ministros que votaram entendendo que a decisão do Supremo era terminativa, teremos novamente um empate, como aconteceu com relação à Lei da Ficha Limpa.

Os ministros Dias Toffoli e Celso de Mello se consideraram impedidos de participar do julgamento, e o 11ºmembro da Corte ainda não foi nomeado pelo presidente e dificilmente o será até que o caso seja julgado, a partir da volta do recesso, em 1 de fevereiro.

Será, sem dúvida, uma situação caricata, que tornará ainda mais confuso o quadro atual, onde o Executivo faz todo tipo de manobra para tentar manter o ex-terrorista protegido pelas leis brasileiras.

Depois que o presidente Lula autorizou a permanência no país de Battisti, utilizando-se de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), o presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, indeferiu o requerimento da defesa do italiano para a expedição de alvará de soltura. O processo foi remetido ao relator ministro Gilmar Mendes, que oficialmente só tomará conhecimento dele em fevereiro, ao fim do recesso.

O caso é mais complexo porque o Supremo já declarara nulo o ato do Ministério da Justiça dando refúgio a Battisti. Foi aprovado o voto do relator Cezar Peluso, que considerou o refúgio ilegal, por entender que os crimes atribuídos a Battisti são "comuns, hediondos e não políticos".

O fato é que o governo agora, ao negar a extradição, acabou renovando os argumentos do refúgio, alegando a possibilidade de perseguição política que o Supremo não reconheceu no primeiro julgamento.

Baseando-se no tratado de extradição, como determinou o Supremo, a AGU utilizou, para sustentar a decisão de manter Battisti no país, o seu artigo 3º, que diz que é suficiente o presidente ter "razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados".

Resta ainda a discussão de fundo: se a decisão do Supremo tem caráter terminativo ou não.

Sem dúvida, é contraditório que uma Suprema Corte seja consultada sobre uma extradição, faça o exame do assunto de maneira aprofundada, e depois decida que o ato é meramente autorizativo.

Além do mais, não se pode desqualificar o refúgio, dizer que não havia perseguição política nem outra justificativa para sua concessão, e depois deferi-lo nos termos do tratado, que foi como Presidência da República interpretou a decisão do Supremo.

Se o Executivo tiver que assumir uma posição meramente política, deve fazê-lo quando encaminha (ou não) o pedido de extradição.

A polêmica começou logo no dia seguinte à votação, quando o relator, o mesmo Cezar Peluso, disse que não tinha condições intelectuais para redigir a ementa com a decisão do Supremo, ressaltando, com ironia, o que considerava incongruência da decisão de extraditar o italiano, mas permitir que o presidente da República não cumpra os acordos internacionais firmados pelo país.

A palavra-chave na votação foi "discricionário". Os ministros que votaram a favor de que cabia ao presidente da República a decisão final sobre a extradição consideraram que ele tinha poderes "discricionários" para decidir, e o ministro Eros Grau se recusou, na ocasião, mesmo instado pelo presidente do Supremo, Gilmar Mendes, a incluir em seu voto a decisão de que o presidente deveria seguir o tratado de extradição firmado com o governo italiano.

Dias depois, questionado pelo governo italiano por uma questão de ordem, Eros Grau admitiu que seu voto não dava poderes "discricionários" ao presidente da República, mas limitava sua decisão ao tratado de extradição existente.

Tudo indica que há um consenso na Itália sobre as medidas adotadas durante o período de combate ao terrorismo, dentro de um sistema democrático que o terrorismo queria destruir - medidas aprovadas pelo Congresso.

Como já escrevi aqui, não corresponde à "soberania brasileira" avaliar decisões do Poder Judiciário de um país democrático.

Que simbolismo há por trás desse personagem para que o governo tente fazer uma gambiarra jurídica, deixando para o último dia do mandato a decisão, e legando para a sucessora um rastro de crise institucional?

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