sábado, 8 de janeiro de 2011

Utopia ou projeto político? :: Marcelo Mário de Melo

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

São muito comuns, em rodas de militantes e ex-militantes, geralmente participantes da luta contra a ditadura de 1964, as afirmações sobre a importância da utopia como fermento indispensável à mobilização popular em torno de transformações que levem à justiça social. Ou, ao menos, a um alargamento de oportunidades que reduza substancialmente o quadro das injustiças e desigualdades atuais nos terrenos político, econômico e social.

Discordo de tal formulação. Utopia, etimologicamente, é o não lugar, o não existente. E simbolicamente representa a prefiguração de um modelo ideal de perfeição, como o céu dos católicos ou a sociedade comunista idealizada como paraíso terrestre. Utopia alimenta tirania. Os arautos da utopia se arrogam à condição seres superiores, verdadeiros arcanjos, acima dos controles dos simples mortais. Psicologicamente, a utopia funciona como uma tábua de salvação romântica para quem viu cair por terra projetos políticos salvadores e não divisa a construção de outros, considerando as velhas exigências e as novas realidades. Preferencialmente, projetos mais realistas e menos utópicos.

Não se diga que a ausência de grandes mobilizações populares, nos dias atuais, decorre da ausência de utopia. Porque as mobilizações do passado não se deram pelas interferências ou virtudes dessa carcomida senhora. O envolvimento de parte da população brasileira na defesa das "reformas de base" propostas no pré-64, não se deu por aderências utopistas, mas por identificação de interesses e um trabalho de agitação e propaganda e elaboração intelectual que vinha desde a redemocratização de 1946. A questão da reforma agrária sensibilizava largas parcelas da população rural. A reforma educacional atraía os estudantes, que não dispunham de nenhuma representação na estrutura universitária. Os cabos e soldados das Forças Armadas se mobilizaram pelo direito de votar e realizar o casamento civil. Os analfabetos queriam ter o direito de voto para influir na ampliação das suas conquistas. Segmentos empresariais tinham interesse em políticas protecionistas e no alargamento do mercado interno.

Questões como a queda do socialismo real, o esgotamento da social-democracia na Europa, a derrota dos movimentos guerrilheiros, atingiram os círculos comunistas, socialistas, esquerdistas e democráticos como problemas político-ideológicos, político-psicológicos e, até, político-psiquiátricos. Mas não afetaram as massas com essa conotação. Porque isto é uma problemática dos círculos de vanguarda, da intelectualidade, da militância. Que se encanta por teses, produz documentos políticos, funda partidos, faz congressos, forma tendências e promove rachas. As massas se mobilizam centradas nos seus interesses concretos, ligados à sobrevivência nos diversos níveis. Assim se aproximam das vanguardas. Quando estas deliram ou se descolam dos seus interesses, elas, simplesmente, se afastam e as deixam seguir sozinhas a sua viagem - ou a sua utopia. Às vezes, apostam suas fichas em salvadores da pátria ou demagogos de plantão. É assim que as coisas funcionam. Pragmaticamente. Sem utopia nenhuma.

O convencionalismo político expresso da hipertrofia da atuação eleitoral e na governabilidade a qualquer preço está impedindo a utilização de vertentes de pressão popular que poderiam inclinar a balança para o aprofundamento democrático, o aprimoramento das instituições republicanas e o revigoramento da representação civil em todos os níveis.

Novas realidades políticas, econômicas, sociais, demográficas e comunicativas apontam para as possibilidades de novos caminhos, permitindo a construção de um programa de mobilização popular sensato, sensível e fundado nos interesses reais das massas. É fundamental que essas realidades aflorem nos rincões da militância. É disto que necessitamos. E não de novas utopias salvadoras.

Precisamos romper com o pensamento utópico e fazer um esforço de atualização. Rejeitando as teias do trio tenebroso: mito, dogma e utopia. Numa atuação política que conjugue os olhos abertos, os pés na terra e o espírito revolucionário.

» Marcelo Mário de Melo é jornalista

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