quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A esfinge do levante egípcio:: Cláudio Gonçalves Couto

Ainda são muito incertas as consequências do levante de massas que convulsiona o Egito e pode levar à derrubada do regime autoritário de Hosni Mubarak. A principal razão para isto é que as forças de oposição - que hoje se escoram na grande insatisfação popular para abalar a estrutura de poder vigente - são muito dispersas e diversificadas. É mais fácil galvanizar uma efêmera aliança negativa entre elas (para derrubar o atual governo) do que erigir coalizões capazes de conduzir adiante projetos de poder mais consistentes. E, para quem, otimista, vê na atual movimentação um desabrochar da democracia num país árabe, um alerta: a mais estruturada das organizações políticas de oposição não é laica, mas religiosa: a Irmandade Islâmica.

Poder-se-ia não ver aí necessariamente um problema, já que organizações de cunho religioso podem desempenhar um papel importante em processos de democratização. Foi este o caso da Igreja Católica e de suas Comunidades Eclesiais de Base no Brasil e em outros países da América Latina. Por estas bandas, em particular no Brasil, a militância política católica operou ao mesmo tempo como um anteparo aos abusos do regime contra os direitos humanos e como um celeiro de lideranças políticas de oposição às ditaduras. Também na Europa do pós-guerra as igrejas tiveram um papel importante na estruturação das novas democracias nascentes, em especial ao dar bases organizacionais aos Partidos Democratas Cristãos de países que haviam sucumbido ao fascismo, como a Itália e a Alemanha.

Há muitas diferenças importantes, contudo, entre a América Latina dos anos 80, a Europa do pós-guerra e o Egito de hoje. A primeira delas, que conta para o problema da influência da religião na política, é que tanto latino-americanos como europeus experimentaram a derrubada dos regimes autoritários num contexto social já bastante secularizado, em que propostas de submissão do Estado à autoridade religiosa estavam fora de questão. Certamente, isto não impede que o discurso religioso circunstancialmente invada a esfera da política secular (como ocorreu na última eleição presidencial brasileira), ou que elementos incompatíveis com o caráter laico do Estado subsistam (como os símbolos religiosos presentes em repartições públicas), mas há uma grande distância entre isto e um assalto da religião ao Estado, com o consequente aniquilamento das liberdades individuais e da democracia.

Não existe democracia sem que haja secularização

As sociedades do oriente médio - e, em particular, as sociedades árabes - não alcançaram este mesmo grau de secularização. Há organizações, intelectuais e amplos setores da população que consideram não apenas aceitável, mas indispensável, que a religião paute o Estado. Por isto, é realmente preocupante o fato de a mais bem organizada força de oposição no levante egípcio ser a Irmandade Muçulmana. Num percuciente e oportuno artigo publicado ontem no Valor, Gerald F. Seib observa que inicialmente esquerdistas seculares lideraram o governo instaurado no Irã após a derrubada do Xá, mas logo foram substituídos por uma teocracia, amparada por sua vez num plebiscito nacional em que a população decidiu transformar o país numa república islâmica. São precedentes como este que servem de alerta e explicam a preocupação de Israel, dos governos europeus e dos Estados Unidos.

Não é casual que o presidente Barack Obama, apesar de reconhecer que o regime de Mubarak já não tem como continuar, sinaliza que este ainda poderia ser um condutor confiável da transição para uma nova situação - minimamente estável e ainda favorável aos interesses ocidentais na região. Todavia, dado o clima causado pela mobilização e pela resistência do governo (ontem foram mais de 600 feridos nos confrontos de rua), deverá ser difícil para o presidente egípcio ficar no cargo por mais alguns meses e encaminhar sua própria transição. Por isto, embora Obama tenha publicamente instado Mubarak a permitir a mudança, é mais provável que sua sinalização real dirija-se ao exército. Afinal, no Egito, assim como na Argélia, na Turquia (caso historicamente mais relevante) e em outros países de maioria muçulmana, foram os militares a força política capaz de preservar o Estado secular num contexto social mais amplo bem desfavorável à secularização.

Tradicionalmente esta imposição manu militari da secularização redundou em autoritarismo, o qual foi frequentemente aceito como um mal menor que a teocracia; o caso relativamente recente mais importante foi o da Argélia, quando as potências ocidentais comemoraram o golpe militar que reverteu um resultado eleitoral favorável a um partido islâmico - vitória da "civilização" autocrática sobre a "barbárie" democraticamente eleita. No caso egípcio parece que se abre um espaço para que os militares se apresentem como um guia seguro da transição e como garantidores de um futuro caráter secular do Estado - arranjo similar ao existente na Turquia, onde mais recentemente até mesmo a vitória de um partido moderado de orientação islâmica já pode ser aceita, mas ainda com a presença das forças armadas assegurando os limites seculares da política.

Nas democracias vigentes em sociedades mais secularizadas, tais quais as latino-americanas, essa presença das forças armadas como garantidoras de certos limites para o funcionamento do sistema político é sempre vista como tutela, algo a se lamentar. É assim no Brasil, em que a Constituição de 1988 confere aos militares a função de garantir "os poderes constitucionais" e a "lei e a ordem" internas; foi assim também no Chile pós-Pinochet. Entretanto, nas sociedades islâmicas, muito pouco secularizadas, paradoxalmente a tutela militar parece ser a única forma de assegurar ao menos a secularização do Estado e, consequentemente, algum grau de democracia.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP. A titular da coluna, Maria Inês Nassif, está em férias

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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